Os juízes e desembargadores gaúchos vão receber,
individualmente, R$ 38,3 mil de auxílio alimentação. O poder judiciário outorga
privilégios a si mesmo.
Jacques Távora Alfonsin // www.cartamior.com.br
O site da Radio Guaíba deste 6 de novembro publica:
“Os juízes e desembargadores gaúchos vão receber, individualmente, R$ 38,3 mil
de auxílio alimentação retroativos a 2011. Cumprindo a decisão do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul publicou
em sua última edição do Diário Oficial o ato administrativo que garante o
repasse. O valor é proporcional aos R$ 799 reais por mês de subsidio
alimentação para os meses desde 2011 e valerá para os salários futuros. Os
juízes tem salários a partir de R$ 22,2 mil reais.”
A Zero Hora destaca que esse auxílio vai se
estender ao Ministério Público e à Defensoria. Nesse jornal, o escândalo da
notícia se comprova ao lado da nota. Apesar do déficit orçamentário do Estado,
previsto para 2016, subir a R$4,6 bilhões, o presidente da Famurs, Luiz Carlos
Folador, “está pedindo ao relator do Orçamento na Comissão de Finanças, Marlon
Santos, quatro emendas, sendo R$80 milhões para financiamento do transporte
escolar, R$120 milhões para custeio dos hospitais de pequeno porte, R$100
milhões para acessos asfálticos e R$4 milhões a mais para o Fundo de
Assistência social.”
Resposta do relator: “Estamos repartindo miséria. É
muito difícil contemplar todos os pedidos.” Miséria seletiva, então, como a
história tem repetido. Como sempre, os tais auxílios ao Poder Judiciário passam
longe dela.
Se necessidades públicas como aquelas cuja
satisfação é inadiável, reivindicadas pelo presidente da Famurs - transporte
escolar, hospitais de pequeno porte, acessos asfálticos, fundos de assistência
social - forem comparadas com benesses salariais estendidas a essas carreiras
jurídicas, podemos retirar algumas conclusões dessa desigualdade imoral:
A primeira, mais do que óbvia, explica e justifica a
inconformidade e até a indignação do povo com vantagens salariais levadas a um
tal patamar, acrescentadas a quem já é tão bem remunerado. Como explicar isso a
pessoas que recebem o bolsa família para mal poder se alimentar, outras que se
socorrem do programa Minha Casa, Minha Vida para poder adquirir casa própria,
um sem número de desempregadas, de sem-teto e de sem-terra, lutam diariamente
para simplesmente sobreviver, não faltando, para tanto, o preconceito
generalizado de que se encontram nessa situação por sua única e exclusiva
responsabilidade?
Seria justo medir quanto dinheiro as políticas
sociais responsáveis por manter toda essa multidão viva, nem que seja num
padrão básico de dignidade, estão perdendo com o auxílio moradia e o auxílio
alimentação pagos a quem agora está “legalmente” (!?) habilitado a
recebê-los.
A segunda pode ser vista nas razões de serem
utilizados subterfúgios para aumentar o valor dos salários de carreiras
jurídicas, sonegando indiretamente o imposto de renda e dessa forma lesando
toda a população carente de serviços públicos. Isso envergonha, e muito, as/os
integrantes honestas/es e probas/os dessas carreiras, ao ponto de se obrigarem
a renunciar aos tais penduricalhos.
Conforme reconheceu o próprio desembargador Túlio
Martins, presidente do Conselho de Comunicação Social do Tribunal de Justiça do
Estado, de acordo com o site da Guaíba “admite que a medida causa antipatia da
sociedade. A reserva de simpatia da
população com o Poder Judiciário se desgasta. Eu não acho que nós percamos
credibilidade, porque isso vem do trabalho e das decisões. Mas não é nem um
pouco simpático, aumento de salário de quem ganha mais é sempre difícil, e
aumento de salário indireto, com nome de auxílio, é menos simpático ainda. A
perda do ponto de vista da imagem do Poder Judiciário é evidente”.
Perde credibilidade sim, pois é exatamente no
trabalho e nas decisões da magistratura que o povo avalia a conduta pessoal de
quem representa esse Poder. O Judiciário é um servidor do povo, trabalha por
ele, para ele e com ele. De qual autoridade vai se valer quando está subtraindo
de quem serve parte substancial dos recursos necessários para garantir o gozo e
o exercício de direitos humanos fundamentais sociais devidos como prioritários,
pelo Poder Público, como condição de vida e liberdade?
É preciso sublinhar-se a gravidade dessa falta.
Trata-se do reconhecimento de uma pura e simples simulação. Os auxílios, seja o
de moradia, seja o de alimentação, de auxílio só tem o nome, como o próprio
desembargador reconhece, nisso se comprovando, pois, a existência de um vício
legal, de forma e conteúdo, diuturnamente enfrentado pelo Poder Judiciário e
por ele, paradoxalmente, punido, civil e penalmente.
Pode e deve punir o que ele mesmo faz? O art. 167,
parágrafo primeiro, inciso II do Código Civil, por exemplo, retira todo ou
parte de qualquer efeito de negócios jurídicos nos quais se verifique
simulação. Ela é suficiente para serem declarados nulos, quando “contiverem
declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira”.
Bem, vão afirmar as/os as/defensoras/es desses
auxílios: isso só vale para negócios jurídicos e lá no Direito Privado. Para
contrariar-se essa desculpa nem há necessidade de se lembrar que o Direito
Privado tem de ser interpretado em harmonia com a Constituição Federal.
“Cláusula não verdadeira”, igualmente, constitui ilícito passível de rejeição
em qualquer contexto, não exclusivamente jurídico. Assim, a simulação é imoral
também e, justamente por enganar e mentir, ela obriga o Poder Judiciário a não
se socorrer dela, pelo artigo 37 da mesma Constituição, seja a pretexto do que
for, independentemente de outra qualquer consideração.
Esse Poder está sujeito ao princípio constitucional
da moralidade, não simulando, não enganando e não mentindo. Nos artigos 171 a
179 do Código Penal, aliás, quando esse trata dos crimes de estelionato e
outras fraudes, não faltam disposições semelhantes para demonstrar que a
simulação não é somente um ilícito jurídico civil e privado. Se assim fosse,
toda essa crise política vivida atualmente no país, já teria sido vencida sem
qualquer cogitação dos ilícitos morais responsáveis pela sua eclosão.
Numa das famosas bem aventuranças louvadas por
Jesus Cristo, disse ele: “Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados” (Evangelho de São Lucas, capítulo 5, versículo 6). É uma
lástima, mas o Poder Judiciário brasileiro, com as exceções de sempre - ainda
bem - à vista dos privilégios outorgados a si mesmo, não está muito interessado
em se saciar desse pão, beber dessa água, nem reparti-lo/a nas casas onde mora,
muito menos nos tribunais onde trabalha.
Créditos da foto: Carlos Humberto/SCO/STF
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