Em meio ao declínio de quase toda a economia real e
encolhimento do PIB, o lucro dos bancos explode e bate recordes ainda
superiores aos verificados nos últimos anos. Qual é a relação entre os juros
altos, os mecanismos que geram dívida pública e o impressionante lucro dos
bancos no Brasil?
por Maria Lucia Fattorelli // http://www.diplomatique.org.br/
Sacrifícios sociais e econômicos para servir ao
pagamento de juros e encargos da dívida pública têm sido uma regra no Brasil há
décadas. Investigações sobre a natureza dessa dívida revelam que os elevados
juros constituem, historicamente, o principal fator responsável por seu
crescimento. O mais grave é que tais juros são aplicados sobre dívidas geradas
por meio de diversos mecanismos meramente financeiros, sem contrapartida alguma
ao país. A isso denominamos sistema da dívida.
Esse debate se torna imprescindível diante da atual
crise econômica seletiva: por um lado, rigoroso ajuste fiscal com corte de
gastos e de investimentos públicos, privatizações e aumento de tributos. Por
outro, novo ciclo de alta dos juros, aumentando a exigência de recursos para
alimentar o sistema da dívida e provocando a paralisação de setores vitais da
economia. Simultaneamente, em meio ao declínio de quase toda a economia real e
encolhimento do PIB, o lucro dos bancos explode e bate recordes ainda
superiores aos verificados nos últimos anos.
Qual é a relação entre os juros altos, os
mecanismos que geram dívida pública e o impressionante lucro dos bancos no
Brasil? No presente artigo debateremos alguns desses aspectos.
1. Juros no Brasil – por que são tão elevados?
A política de elevadíssimos juros praticada no
Brasil provoca dano às finanças públicas e à economia como um todo, e decorre
de equivocada política monetária praticada pelo Banco Central do Brasil
(Bacen).
Para as finanças públicas, os juros elevados têm sido
historicamente o principal fator de crescimento da dívida pública brasileira
interna, que já supera R$ 3,58 trilhões (julho de 2015).
Enquanto diversos países do mundo praticam taxas de
juros negativas para remunerar a dívida pública, ou seja, um índice que nem
sequer cobre a inflação do período, o Brasil garante atualização monetária
mensal e cumulativa, baseada em índice divulgado por instituição privada1 que
engloba variação cambial (que não deveria interferir na dívida interna) e
expectativas inflacionárias (que nem ao menos se verificam na prática). Acima
dessa atualização garantida, ainda pagamos generosos ganhos reais, o que torna
os juros pagos pelo Brasil os maiores do mundo. Esse disparate não tem
justificativa técnica, econômica, política ou moral.
A taxa básica de juros – Selic – é definida pelo
Copom,2 influenciado pelas opiniões de representantes do mercado financeiro,
convidados para reuniões convocadas pelo Bacen; ou seja, o setor que ganha com
as taxas é o mesmo que dita seu patamar, em evidente conflito de interesses. A
recomendação desses especialistas é adotada pelo Copom sem nenhum crivo ou
debate por parte do Congresso. A taxa passa a vigorar como “lei” e ponto final.
Desde as eleições de outubro de 2014, a Selic já subiu 30%, saltando de 11%
para 14,25% ao ano.
Os títulos da dívida interna são vendidos por meio
de leilões realizados pelo Bacen, do qual participam somente umas poucas
instituições privilegiadas – os chamados dealers–, que só compram os títulos
quando as taxas alcançam o patamar que desejam. É por isso que as taxas
prefixadas acabam ficando ainda mais elevadas que a Selic e são as maiores do
mundo.
O resultado desse fenômeno é o acelerado
crescimento da dívida pública, em razão do perverso mecanismo de emitir novos títulos
da dívida para pagar juros.
O novo ciclo de elevação da Selic provoca também a
alta das já abusivas taxas de juros cobradas pelos bancos, afetando todos os
setores da economia que dependem de crédito.
O Bacen absorve moeda dos bancos e entrega-lhes, em
troca, títulos da dívida interna que rendem os maiores juros do mundo. Essa
operação recebe o nome de “operação compromissada”,3 ou “operação de mercado
aberto”, e pode durar de um ou alguns dias a meses. Atualmente, cerca de R$ 1
trilhão em títulos da dívida estão sendo utilizados nessas operações. O que
isso significa? Que R$ 1 trilhão poderiam estar no caixa dos bancos, e estes,
certamente, não iriam querer deixar esse dinheiro parado, sem render. O óbvio
seria destinar esses recursos para empréstimos, aumentando a oferta, o que
provocaria uma forte queda nas taxas de juros. Os bancos entrariam em
competição para oferecer taxas menores, o que levaria a uma redução ainda maior
nas escorchantes taxas cobradas pelo setor financeiro no Brasil. Pois bem, a
atuação do Bacen impede que isso aconteça e garante aos bancos a generosa
remuneração dos títulos da dívida, sem risco algum. A justificativa que tem
sido dada para essa atuação é o “combate à inflação”, o que não se aplica, pois
o tipo de inflação que temos no Brasil decorre do excessivo aumento do preço de
tarifas4 e de alguns alimentos.5
Vivemos uma ciranda financeira no Brasil, um dos
países mais ricos do mundo, onde faltam recursos para áreas essenciais como
educação, saúde, saneamento básico e infraestrutura, mas não faltam recursos
para os abundantes juros que tornam o país o mais lucrativo do mundo para os
bancos. Em 2014 tais lucros superaram R$ 80 bilhões e no primeiro semestre de
2015 cresceram ainda mais (ver gráfico).
A crise econômica é seletiva. Não existe crise para
os bancos, que se beneficiam da política monetária e contam com injustificadas
benesses tributárias que precisam ser revistas.
2. Mecanismos que geram dívida pública no Brasil
A irrestrita liberdade para o exercício da política
monetária, aliada à completa ausência de limites para os prejuízos e erros, tem
permitido práticas que geram bilhões de dívida pública sem nenhum benefício ou
contrapartida ao país.
Alguns exemplos caracterizam o que denominamos
sistema da dívida, ou seja, a usurpação do instrumento do endividamento
público. Em vez de representar ingressos para completar os recursos necessários
aos investimentos estatais, o endividamento público se transformou em um
sistema que continuamente subtrai e desvia recursos estatais para o setor
financeiro privado, propiciando enormes lucros aos bancos.
2.1. Geração de dívida pública para pagar juros
A modalidade de transformar juros em capital, sobre
o qual incidirão novos juros em cascata, constitui uma ilegalidade histórica do
nosso endividamento público. Trata-se do anatocismo, que provoca a
multiplicação da dívida por ela mesma. Essa ilegalidade tem sido agravada ao
longo dos anos por causa do elevadíssimo patamar dos juros. Para não evidenciar
a transformação direta de juros em capital ou a emissão de títulos para o
pagamento de juros, o que caracteriza ofensa ao artigo 167, inciso III, da
Constituição Federal,6 grande parte dos juros nominais estão sendo
contabilizados como se fossem amortização. O resultado é a ilegal geração de
dívida para pagar juros.
2.2. Prejuízo em operação de swap cambial é
transformado em dívida pública
Nada menos que R$ 152 bilhões, correspondentes a
resultados negativos em contratos de swap cambial negociados pelo Bacen no
período de setembro de 2014 a julho de 2015, geraram dívida pública.
A necessidade dessas operações é questionável. O
Bacen entende que deve atuar para conter a procura por dólares, alegando que
poderia provocar inflação. Assim, oferece contratos de swap cambial, que, na
prática, correspondem à garantia da variação da cotação do dólar. Isso tem
provocado perda bilionária, que vem sendo transferida para a conta dos juros da
dívida e, consequentemente, para seu estoque, já que os juros têm sido pagos
mediante a emissão de nova dívida. Os bancos privados lucram e o país registra
a dívida, apesar de não ter recebido nem um centavo sequer.
2.3. Geração de dívida pública para remunerar sobra
de caixa dos bancos privados
O Bacen entende que deve restringir a base
monetária, ou seja, o volume de moeda em circulação, a fim de controlar a
inflação. Trata-se de teoria questionável quando comparada à realidade em
diversas partes do mundo. A base monetária no Brasil é inferior a 5% do PIB. Na
Europa, nos Estados Unidos, na China e no Japão, ela chega a quase 40% do PIB.
E não enfrenta inflação. Aqui, acabamos emitindo dívida, que gera juros e
condiciona toda a economia.
O Bacen tem utilizado quase R$ 1 trilhão em títulos
da dívida pública emitidos pelo Tesouro Nacional em operações denominadas
“compromissadas” para “enxugar” a base monetária. Na prática, essa operação
garante a remuneração de toda a sobra de caixa dos bancos, provoca crescimento
da dívida pública e impede que as taxas de juros de mercado caiam. Se os bancos
sabem que podem contar com a remuneração garantida dos títulos da dívida, só
emprestam ao mercado com taxas altíssimas, que chegam a ser superiores a 300%
ao ano, inviabilizando o crédito no país.
2.4. Geração de dívida no Brasil para investir em
dívida norte-americana
O Brasil é o quarto maior detentor de títulos da
dívida norte-americana, conforme dados do Tesouro dos Estados Unidos,7
possuindo um estoque de US$ 256 bilhões (dezembro de 2014). Tal investimento
não rende quase nada ao Brasil e faz parte das reservas internacionais, que
totalizam US$ 372 bilhões. Não se sabe onde está aplicada a diferença de US$
116 bilhões, pois no Brasil esse dado é considerado sigiloso.
Tais reservas foram constituídas a alto preço.
Justamente quando o dólar estava em franca desvalorização, especuladores
traziam bilhões ao Brasil. O Bacen passou a reter esses dólares, trocando-os
por títulos da dívida pública. Essa operação significou a geração de dívida
pública e enorme prejuízo ao Bacen, que remunerou os especuladores não somente
com os maiores juros do mundo incidentes sobre os títulos da dívida interna,
mas também a variação cambial.
2.5. Geração de dívida em razão de reclassificação
estatística
Em junho, o Bacen divulgou nota8 explicando a
transferência de volumes de títulos da dívida interna para a estatística da
dívida externa, pois estes teriam sido adquiridos por residentes no exterior. A
nota indica que “o risco cambial é suportado exclusivamente pelo investidor e
credor não residente”.
Essa reclassificação foi feita em junho, porém,
considerou dados retroativos, referentes a títulos de renda fixa negociados no
mercado doméstico e detidos por não residentes desde o ano de 2007.
Considerando que justamente no período de 2007 até
2015 o dólar passou por forte valorização em relação ao real, tal
reclassificação estatística renderá adicionalmente ao detentor de tais títulos
da dívida interna o valor correspondente à variação cambial do período. Ou
seja, além de obter os maiores juros do mundo que incidem sobre os títulos da
dívida interna brasileira e usufruir isenção de imposto de renda sobre os
rendimentos desses títulos, essa modificação estatística renderá a variação
cambial aos rentistas internacionais, gerando obrigação financeira adicional ao
país e um aumento da dívida pública.
2.6. Geração de dívida pública para cobrir
prejuízos operacionais do Banco Central
É impressionante como os bancos privados têm sido
beneficiados pela política monetária, tanto quando o dólar valoriza como quando
desvaloriza. Por outro lado, o Bacen apura bilionários prejuízos operacionais,
por exemplo: R$ 147,7 bilhões em 2009 e R$ 48,5 bilhões em 2010.
Até o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, os
lucros e prejuízos do Bacen eram compensados pela própria instituição. A partir
dessa lei, os prejuízos são arcados pelo Tesouro Nacional, que emite títulos da
dívida pública para cobrir tais perdas. Dessa forma, todo o custo – sem limite
– da equivocada política monetária do Bacen acaba gerando dívida pública.
2.7. Outros fatores que geram dívida pública sem
contrapartida
Outros fatores relevantes têm impactado o
crescimento da dívida externa e interna, envolvendo geração espontânea de
dívidas sem documentação e sem contrapartida alguma desde a década de 1970, por
exemplo: transformação de dívidas do setor privado em dívidas públicas a cargo
do Bacen; geração de dívida pública para assunção de passivo de bancos (Proer e
Proes); diversas operações de refinanciamento e de trocas em condições lesivas
ao país; pagamentos antecipados com ágio e, principalmente, juros e encargos
abusivos, que provocam o crescimento da dívida como bola de neve. Esses e
outros fatos foram denunciados pela CPI da Dívida Pública realizada em 2009 e
2010 na Câmara dos Deputados, e os relatórios, entregues ao Ministério Público
Federal.9
3. Conclusão
Diante de tantos exemplos de geração de “dívida
pública” sem contrapartida real, a exigência de juros elevados sobre obrigações
geradas dessa forma torna-se algo ainda mais grave.
O rigoroso ajuste fiscal vem demandando cortes de
gastos e de investimentos públicos, privatizações e aumento de tributos que
recaem sobre os trabalhadores. Apesar desse sacrifício, a crise econômica está
se aprofundando, pois os juros elevados não combatem o tipo de inflação
verificado no Brasil e ainda exigem grandes volumes de recursos para alimentar
o sistema da dívida.
Assim, o ciclo de alta da Selic tem agravado ainda
mais a situação fiscal, afetando toda a atividade econômica do país e provocado
enorme lesão aos cofres públicos e à sociedade, além de aumentar de forma
exponencial a própria dívida, comprometendo nosso futuro.
É por isso que denunciamos o sistema da dívida e
exigimos a realização da auditoria, com participação cidadã.
Maria Lucia Fattorelli é graduada em Administração
e Ciências Contábeis. Auditora Fiscal da Receita Federal desde 1982, é
coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida e membro do CAIC (Comisión para la
Auditoría Integral de Crédito Público) criada pelo Presidente Rafael Correa em
2007.
1 O índice
de preço considerado para calcular essa atualização tem sido o IGP, da
instituição privada Fundação Getulio Vargas.
2
www.bcb.gov.br/?COPOMHIST
3
Compromissada porque o Bacen tem o compromisso de receber os títulos de volta
e devolver o dinheiro para os bancos quando estes desejarem, pagando,
evidentemente, os juros correspondentes ao período de duração da operação.
4 Tarifas
de preços administrados: energia, telefonia, combustível, transporte público
etc.
5 Em razão
da sazonalidade e de históricos equívocos da política agrícola no país, que
privilegia investimento no agronegócio voltado à exportação de commodities, e
não na produção de alimentos.
6 Essa
situação está detalhada no Parecer 1/2013, preparado a pedido do Ministério
Público Federal. Disponível em: .
7
“Brasil se torna 4º maior credor dos Estados Unidos”, Tribuna HOJE.
Disponível em: .
8 BC do
Brasil, Estatísticas do Setor Externo – Adoção da 6ª Edição do Manual de
Balanço de Pagamentos e Posição Internacional de Investimentos (BPM6), Nota
Metodológica n.4 – Dívida externa, jun. 2015.
9
Procedimentos Administrativos n. 1.00.000.005612/2010-13 e n.
1.00.000.003703/2012-86.
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