Temos sido incapazes de entender que sofremos de
uma moléstia que não é passageira. Ela não surgiu nem tende a desaparecer de
uma hora para outra no Brasil
Fábio Konder Comparato* // www.cartamaior.com.br
Empregamos a todo tempo a palavra crise para
caracterizar o lamentável estado atual de nossa política e de nossa economia,
sem entender a semântica original do vocábulo. Ele foi criado por Hipócrates, a
partir do verbo grego krito, kritein, cujos sentidos principais no grego clássico
eram de separar ou discernir, de um lado, e de julgar ou decidir, de outro.
Para o Pai da Medicina, krisis designava o momento preciso em que o olhar
justamente dito crítico do esculápio conseguia discernir o tipo de doença que
acometia o paciente, permitindo-lhe fazer com precisão o diagnóstico e o
prognóstico.
Infelizmente, temos sido incapazes de entender
que sofremos de uma moléstia que não é passageira nem local. Muito pelo
contrário, ela não surgiu nem tende a desaparecer de uma hora para outra no
Brasil. Tampouco foi provocada por determinado partido, ou por este ou aquele
político que ocupou ou ocupa atualmente o cargo de Chefe de Estado.
Analisemos,
pois, em primeiro lugar, a moléstia no âmbito mundial, para, em seguida,
procurarmos diagnosticá-la na sociedade brasileira, sugerindo afinal um
tratamento adequado.
I
A Consolidação Mundial do Capitalismo Financeiro
A doença –
séria e duradoura – cujos sintomas vieram agora à luz do dia, afeta na verdade
o mundo inteiro e não pode ser tratada superficialmente; como se, diante de uma
infecção generalizada, o tratamento do paciente se limitasse a ministrar
analgésicos para reduzir as cefaleias.
Vivemos hoje
– nós e todos os demais povos na face da Terra – as graves consequências da
passagem histórica do capitalismo, como primeira civilização mundial da
História, da sua fase industrial para a fase financeira (1). Se até o último
quartel do século passado os empresários industriais comandavam a vida
econômica, hoje são os bancos que ditam as regras, não só nessa área, mas
também no campo político.
Em 2011,
três matemáticos do Instituto Politécnico de Zurique, listaram os 50 maiores
conglomerados empresariais do mundo. Desse total, 48 eram grupos financeiros
(2).
Já foram identificados 28 bancos, que controlam
atualmente os mercados mundiais de câmbio, juros e valores mobiliários (3). Até
a generalização das políticas neoliberais nas últimas décadas do século XX, os
bancos dependiam dos Estados, que fixavam as taxas de juros e de câmbio. Hoje,
tais valores são fixados pelos próprios bancos operadores, que impõem suas
decisões de mercado aos bancos centrais, doravante autônomos em relação aos
governos.
Recentemente, uma ONG muito respeitada no mundo
inteiro, a Global Policy Forum, afirmou em relatório que a ONU é manipulada por
empresas transnacionais, algumas das quais violam abertamente direitos
trabalhistas e normas ambientais.
Mas o neoliberalismo global foi ainda mais além no
campo da desregulamentação da atividade financeira empresarial. A fim de conter
os efeitos da depressão econômica que tomou conta do mundo inteiro com a quebra
da Bolsa de Nova York em 1929, os Estados Unidos haviam editado em 1932/1933 o
Glass-Steagal Act, que separou as atividades dos bancos de depósito das dos
bancos de investimento. Pois bem, em 1999 aquela lei foi revogada nos Estados
Unidos, sendo concomitantemente abolida, nos demais países do globo, a referida
separação entre aquelas atividades bancárias. Com isto, voltou-se a permitir
aos bancos a utilização dos depósitos monetários de seus clientes para negócios
deles próprios, bancos, inclusive a especulação nos mercados de valores
mobiliários, de câmbio ou de mercadorias.
Como sabido, a partir da Revolução Industrial em
meados do século XVIII, a riqueza mundial cresceu em ritmo e intensidade jamais
vistos na História. Esse crescimento, porém, vem recuando nitidamente no mundo
todo, desde a segunda metade do século XX. Na China, o país de mais acelerado
crescimento econômico das últimas décadas, a atividade industrial atingiu em
2015 o menor nível em 78 meses.
Os efeitos dessa desindustrialização geral já se
sentem nitidamente no mercado de trabalho. Segundo relatório recente da OCDE –
Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, foram recenseados 47
milhões de desempregados nos 34 países que dela fazem parte.
É bem provável que se instaure desde logo, no mundo
todo, uma fase de estagnação econômica generalizada, justamente devido à
implantação mundial do capitalismo financeiro, em substituição ao capitalismo
industrial. E a razão é óbvia: enquanto a essência da atividade industrial é a
produção de bens, a atividade financeira por si mesma não produz nenhuma
riqueza concreta de base.
Como se vê,
a celebrada eficiência do sistema capitalista na produção de riqueza vê-se hoje
totalmente desmentida. Com isso, a fantástica desigualdade social, por ele
criada no mundo inteiro, já não tem a menor condição de ser reduzida, menos
ainda eliminada. No início da Revolução Industrial, estimou-se que entre o povo
mais rico e o mais pobre do planeta a diferença em termos econômicos era de 2
para 1; atualmente, ela é estimada em 80 para 1! Levando-se em conta o
crescimento inexorável da população mundial e a estagnação geral da produção de
bens, notadamente de alimentos, não é difícil visualizar o prognóstico sombrio
de Malthus, feito no final do século XVIII. E as vítimas serão, como sempre, as
camadas mais pobres do mundo todo.
Ora, o que se constatou recentemente é que o
capitalismo financeiro tem contribuído para acelerar o ritmo dessa
desigualdade. Assim é que o banco Crédit Suisse, ao publicar em 2010 o seu
primeiro relatório sobre a riqueza global (Global Wealth Report), estimava que
os 50% mais pobres da humanidade possuíam menos de 2% dos ativos mundiais. Pois
bem, no relatório do corrente ano de 2015, o Crédit Suisse constatou que a
metade mais pobre da humanidade possui menos de 1% da riqueza planetária.
Por incrível que pareça, se a grande depressão de
1929 provocou uma redução da desigualdade econômica mundial, tendo afetado
todas as classes sociais, a crise de 2007/2008, da qual ainda não logramos
sair, provocou um efeito contrário. Exemplo: nos EUA, o 1% mais rico da
população absorveu 95% da riqueza produzida após a crise.
As instituições financeiras, como se disse, por si
sós não produzem riqueza alguma. Na melhor das hipóteses, elas servem de
alavanca auxiliar da produção, mediante o serviço de crédito.
Acontece que, no presente, os bancos passaram a
concentrar cada vez mais suas atividades nos negócios puramente especulativos,
reduzindo drasticamente o serviço de crédito. A lucratividade de tais negócios
especulativos é muito maior. Mas, em compensação, eles suscitam um enorme risco
de súbito e generalizado colapso, como se viu em 2008 com a brusca depreciação
dos chamados derivativos, neologismo criado nos Estados Unidos para designar
operações de crédito bancário, que servem de lastro à emissão de valores
mobiliários em cascata, cujo valor não é contabilizado no balanço dos bancos.
Estimou-se que em 2013 o valor total dos derivativos negociados no mercado
mundial era de 710 trilhões de dólares; isto é, cerca de dez vezes o valor da
produção anual de bens e serviços no mundo todo!
Outro fator que veio reforçar a generalizada
submissão dos Estados, no mundo inteiro, à dominação dos bancos foi a
progressiva substituição dos tributos pela dívida pública, no financiamento das
despesas estatais. Os papeis dessa dívida, como não poderia deixar de ser, são
tomados pelos bancos e repassados aos investidores privados. Para estes, tal
operação financeira provocou de imediato um duplo e substancial benefício: de
um lado, o não-aumento (ou mesmo a redução) da carga tributária; de outro, a
oportunidade de ganhos suplementares pelo recebimento de juros da dívida
pública. Em pouco tempo, os empresários industriais, que já haviam se deixado
seduzir pela especulação com valores mobiliários, foram se transformando, total
ou parcialmente, em rentistas.
A depressão global desencadeada em 2008 com o
colapso do mercado de derivativos levou os bancos centrais dos Estados Unidos e
da União Europeia, a fim de evitar as insolvências em cascata, a socorrer os
bancos privados, tomadores daqueles papeis ditos “tóxicos”. Esse financiamento
excepcional, como era de se esperar, não foi feito com recursos orçamentários,
mas sim com a emissão de novos papeis da dívida pública. Para se ter uma ideia
do que isso representa como risco de colapso do sistema econômico mundial,
basta considerar os seguintes dados, recentemente divulgados pelo Fundo
Monetário Internacional: o somatório da dívida pública dos Estados
desenvolvidos do planeta, o qual em 2001 representava 75,8% da média do PIB
total desses países, passou a corresponder em 2014 a 118,4% dele.
Inútil dizer que os tomadores de tais papeis de
dívida fazem parte do sistema bancário privado, e que este exerce enorme
pressão sobre os Estados emitentes, a fim de que os juros não sejam reduzidos
e, sobretudo, para que os devedores públicos não deixem de honrar os valores do
principal no vencimento.
Em suma, os Estados, que até o final do século XX
eram reguladores das atividades dos bancos privados, tornaram-se atualmente
seus reféns. O caso muito comentado da Grécia é o melhor exemplo. Feitas as
contas, estima-se que os bancos alemães, tomadores dos papeis da dívida estatal
grega desde 2010, obtiveram até 2015 um lucro de 100 bilhões de euros. Será
ainda preciso explicar por que razão a Alemanha foi o Estado mais intransigente
na negociação da dívida grega no Conselho da Europa?
Vale a pena
salientar tais fatos, pois eles explicam a natureza e as perspectivas de
solução da atual crise política e econômica brasileira, como reflexo da crise
global. Encontramo-nos, hoje, inteiramente mergulhados no capitalismo
financeiro, cuja dominação é mundial.
II
A Submissão do Brasil ao Capitalismo Financeiro
Mundial
Em toda organização política, os principais fatores
estruturantes sempre foram a relação de poder e a mentalidade coletiva, isto é,
o conjunto de valores e costumes vigentes no seio do povo. Durante milênios,
ambos esses fatores foram estritamente moldados pela religião. A partir do
início da era moderna, porém, a adesão a uma fé religiosa foi perdendo
importância na vida dos diferentes povos. Com o advento da sociedade massas, no
final do século XIX, iniciou-se uma fase jamais vista na História, fase essa na
qual a mentalidade coletiva passou a ser formada pelo sistema de poder
político, de caráter não religioso na maior parte do mundo.
Com efeito, ao se consolidar mundialmente a
civilização capitalista em fins do século passado, a relação íntima entre esses
dois fatores estruturantes da organização política foi radicalmente alterada.
Desde então, o poder político passou a plasmar a mentalidade coletiva,
utilizando-se, para tanto, do controle dos meios de comunicação de massa, o
qual é exercido hoje, na quase totalidade dos países do globo, por oligopólios
empresariais.
Pois bem,
entre nós, desde os primórdios da colonização portuguesa, o poder político
efetivo – diferentemente do poder oficial, isto é, do poder legitimado pelo
ordenamento jurídico – nunca pertenceu de fato, nem mesmo parcialmente, ao
povo. Ele foi exercido, sem descontinuar, por dois grupos intimamente
associados: os potentados econômicos privados e os grandes agentes estatais.
Nossa oligarquia sempre apresentou, assim, um caráter binário: quem exerce o
efetivo poder soberano não é apenas a burguesia empresarial, como sustentou a
análise marxista, nem tampouco unicamente a burocracia estatal, como
pretenderam os seguidores de Max Weber, a exemplo de Raymundo Faoro (4); mas
ambos esses grupos, conjuntamente.
Esta, na verdade, a principal causa da corrupção
endêmica que vigora no Brasil no plano estatal. Os grandes empresários e os
principais agentes do Estado – incluídos agora nessa categoria os
administradores de empresas estatais – sempre estiveram convencidos de que
podem dispor, em proveito próprio, dos recursos financeiros públicos. “Nem um homem
nesta terra é republico, nem zela e trata do bem comum, senão cada um do bem
particular”, já afiançava o primeiro historiador do Brasil, Frei Vicente do
Salvador, em livro editado originalmente em 1627 (5).
Essa oligarquia binária não é, na verdade, uma
originalidade brasileira, mas sim um traço essencial do sistema capitalista.
Como salientou Fernand Braudel, que lecionou na Universidade de São Paulo logo
após a sua fundação, o capitalismo só triunfa quando se une ao Estado, quando é
o Estado (6).
No curso de
nossa História, tivemos uma sucessão de potentados econômicos privados, aliados
aos principais agentes do Estado (inclusive magistrados): senhores de engenho;
traficantes de escravos; grandes fazendeiros, sobretudo na região sudeste até a
Revolução de 1930; empresários industriais; e, finalmente, controladores das
grandes instituições financeiras.
Na verdade,
o fato mais relevante da economia brasileira nas últimas décadas tem sido o
ritmo acelerado do processo de desindustrialização. Para se ter uma ideia
disto, é importante considerar que em 1995 a produção industrial representava
36% do PIB brasileiro, quando vinte anos após, segundo dados apurados pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, ela não ultrapassa 9%; ou
seja, um quarto daquela cifra.
Com isso,
como não poderia deixar de acontecer, iniciou-se em 2015 um período de recessão
econômica cuja conclusão é difícil de prever-se, repetindo-se assim, certamente
de maneira agravada, o episódio ocorrido em 1930 e 1931, como consequência da
depressão mundial provocada pelo crash da Bolsa de Nova York em 1929.
Ainda como efeito da desindustrialização do país, o
desemprego explodiu. Em julho de 2015, o total de desempregados no país somava
8,6 milhões, o número mais alto já assinalado na Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios (Pnad). E isto, considerando-se apenas os trabalhadores
regulares, com carteira assinada.
Intimamente ligado a esse dado é o fato de que,
atualmente, meio milhão de brasileiros vive sem cobertura de plano de saúde,
como informou a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Na verdade,
o Brasil encontra-se hoje nas mãos dos banqueiros. Os cinco maiores bancos
(Itaú Unibanco, Bradesco, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Santander)
controlam 86% do total dos ativos financeiros; quando em 1995 o montante desses
ativos por eles controlados era de 56%. No primeiro semestre de 2015, enquanto
o Produto Nacional Bruto entrava em recessão, o lucro líquido contábil dos
quatro maiores bancos do país crescia 46% em relação ao mesmo período do ano
anterior.
O
desinvestimento, tanto público quanto privado, é um dos piores resultados da
entrega total da economia brasileira ao controle das instituições financeiras,
nacionais e estrangeiras. Em 2014, o investimento de empresas estatais no
Brasil foi o menor em três anos. Ora, o ajuste fiscal proposto pela Presidente
Dilma Roussef em seu segundo mandato veio estender esse encolhimento ao vasto
setor das políticas sociais. Assim é que o orçamento fiscal da União Federal
para 2016, já em si mesmo profundamente austero nessa área, acabou sofrendo no
curso de 2015 um corte de verbas em nada menos do que 7 programas sociais,
notadamente educação e saúde: um bilhão de reais no primeiro setor e mais de um
bilhão no segundo.
Em compensação, como é óbvio, o governo federal não
mexe no volume da dívida pública, nem reduz a taxa da Selic (sistema especial
de liquidação e custódia), ou seja, o índice pelo qual são balizados os juros
cobradas pelos bancos. Ora, do total do déficit orçamentário da União Federal
em 2015, 96,9% são representados pelos juros acumulados da dívida e apenas 3,1%
pelo excesso de despesas primárias em relação aos créditos!
III
Sugestões para o Enfrentamento da Morbidez
Generalizada
Diante de
tudo o que se acaba de expor, surge inevitavelmente a indagação feita no livro
publicado 1902 por um certo Vladimir Illich Ulianov, mais conhecido sob o
pseudônimo de Lenin: – Que Fazer?
Comecemos
por reconhecer o fato de que a solução revolucionária, por ele apresentada como
a mudança súbita e radical do poder na sociedade, modelo ao mesmo tempo tão
louvado e temido no mundo todo até há pouco, já não convence ninguém. É que
esse tipo de ruptura brusca da ordem social não só absolutiza o poder estatal,
como deforma gravemente a mentalidade coletiva, suprimindo a consciência
individual e social dos direitos fundamentais da pessoa humana.
Foi o que se viu, de maneira dramática, com as
revoluções bolchevique e maoísta, as quais deram origem aos regimes comunistas
na Rússia e na China no século XX. Aliás, com a derrocada de ambos no último
quartel do século, voltaram à tona, nos dois países, as velhas tradições de
autocracia burocrática, doravante ligadas à integral adoção do sistema
capitalista, contra o qual foram feitas as revoluções.
Se
quisermos, pois, iniciar o tratamento da moléstia que tomou conta da humanidade
toda na época contemporânea – o capitalismo financeiro –, precisamos mudar de
modo substancial e permanente as instituições de poder, bem como reformar a mentalidade
coletiva, com base em novos valores que a elas se adequem. E tais valores,
escusa dizer, são o oposto do individualismo privatista, próprio do
capitalismo.
Ora, isto não se faz e nunca se fez da noite para o
dia. Em geral, tem-se em matéria de revoluções o modelo clássico, que é o da
França no século XVIII. Mas o que se deixa na sombra, ao assim considerar, é o
fato de que a preparação da Revolução Francesa principiou pelo menos dois
séculos antes, com a mudança na visão de mundo, provocada pela Reforma
Calvinista e a chamada Revolução Científica de Copérnico, Tycho Brahe e Kepler,
seguidos por Galileu e Isaac Newton.
Ensaiemos,
pois, uma breve resposta, primeiro no plano mundial; depois, no quadro político
e econômico brasileiro.
O tratamento da doença no plano mundial
A organização, ou melhor, desorganização do poder
capitalista no mundo todo – não só o poder propriamente político, quanto o
econômico, ambos complementados pelo poder ideológico – manifesta hoje sinais
evidentes de impotência para enfrentar os problemas que se avolumam
perigosamente, e que põem risco a sobrevivência da humanidade: o terrorismo,
notadamente de índole religiosa; a destruição sistemática da biosfera; a
probabilidade crescente de um colapso econômico mundial; entre outros.
Ao mesmo tempo, a ética própria do capitalismo, a
qual logrou moldar a mentalidade coletiva contemporânea em todos os povos da
Terra – a saber, a realização do interesse material como finalidade última da
vida – não somente denota uma incapacidade crescente para fazer face a tais
problemas, como revela-se ainda um perigoso estimulante deles.
Mas como proceder?
No tocante à organização do poder mundial,
começamos a sentir crescentemente o mesmo estado de espírito, que tomou conta
da maioria dos governantes logo após o término da Segunda Guerra Mundial, e que
propiciou a fundação da Organização das Nações Unidas em 1945, conforme
enunciado na introdução da Carta de São Francisco. Ou seja, a necessidade de
“preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra [...], reafirmar a fé nos
direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na
igualdade de direito dos homens e mulheres, assim como das nações grandes e
pequenas [...], promover o progresso social e melhores condições de vida,
dentro de uma liberdade mais ampla”.
Para alcançar tais objetivos, o caminho a ser
seguido só pode ser a construção de uma organização política mundial, fundada
nos princípios fundamentais da República, da Democracia e do Estado de Direito.
A saber: 1) a supremacia do bem comum da humanidade, em relação ao interesse
próprio de qualquer povo em particular; 2) a atribuição da titularidade do
poder supremo ao conjunto dos povos, reunidos em federação no plano mundial; 3)
o estabelecimento de controles efetivos ao abuso de poder em todos os níveis, à
luz do princípio supremo do respeito à dignidade humana.
No concernente à superação da ética do egoísmo dito
esclarecido, própria da civilização capitalista, é alvissareiro constatar que,
atualmente, os líderes de algumas das maiores religiões do mundo vêm
sublinhando a necessidade de se evitar que o princípio fundamental do
altruísmo, comum a todas elas, venha a ser ensombrecido pela repetição mecânica
de asserções dogmáticas (7).
Em suma, importa agora mais do que nunca, no início
deste novo milênio, revitalizar em todos os povos as duas Regras de Ouro,
enunciadas pela primeira vez no chamado Período Axial da História (8), quais
sejam: 1) não fazer aos outros o que não se quer que eles nos façam; 2) fazer o
bem a todos, sem distinção de pessoas, sejam elas desconhecidas, amigas ou
inimigas.
Como iniciar no Brasil o tratamento da doença
Para voltar
ao conceito original de crise, excogitado por Hipócrates, o que importa não é
fixar a atenção sobre o bom ou mau desempenho de nossos governantes para
enfrentar os problemas socioeconômicos que se acumulam. Tal equivaleria a
cuidar de um sintoma superficial da doença, sem diagnosticar sua verdadeira
causa, que é a submissão do nosso país à soberania do capital financeiro,
nacional e internacional.
Não é mister
grande acuidade de espírito para perceber que esse enfrentamento equivale a
percorrer um caminho longo e repleto de dificuldades de toda sorte. Ele não se
faz da noite para o dia, nem com base em improvisações.
É indispensável
e urgente atuar em duas frentes, intimamente relacionadas: a vida política e a
vida econômica.
No campo
político, as mudanças devem ocorrer em relação aos dois fatores
fundamentalmente estruturantes: a relação de poder e a mentalidade coletiva.
O poder
político, no Brasil, como acima salientado, sempre foi oligárquico, sendo
exercido conjuntamente, em proveito próprio, pelos potentados econômicos
privados e os grandes agentes estatais. Ora, atualmente, os titulares desse
poder soberano acham-se na incapacidade absoluta de enfrentar a crise, pois são
eles que as engendraram e são eles os únicos que dela se beneficiam. Seria
ridículo esperar que as instituições financeiras aceitassem voluntariamente
submeter-se ao poder regulatório do Estado, deixando que este voltasse a fixar
as taxas de juros e câmbio a serem observadas no mercado, e a separar bancos de
depósito e bancos de negócio, como dispôs o Glass-Steagall Act de 1933 nos
Estados Unidos, editado em plena crise provocada pelo crash da Bolsa de Nova
Iorque em 1929. Urge encontrar um caminho para impor tais medidas aos atuais
“donos do poder”.
No terreno
propriamente político, é da mesma forma urgente começar a introduzir em nosso
ordenamento jurídico os mecanismos institucionais da democracia direta. O
plebiscito, o referendo e a iniciativa popular legislativa, declarados no art.
14 da Constituição como instrumentos da soberania popular, acham-se até o
presente – mais de um quarto de século após a promulgação da Lei Maior –
totalmente bloqueados pelo controle oligárquico.
Igualmente
no campo político, permanece inquebrantável o oligopólio empresarial dos meios
de comunicação social – grande imprensa, rádio e televisão –, utilizados como
instrumentos do poder ideológico capitalista. A Constituição Federal, em seu
art. 220, § 5º, declara que “os meios de comunicação social não podem, direta
ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Mas até hoje o
Congresso Nacional não editou lei para regular essa proibição constitucional
(9).
A mesma falta de regulação legislativa ocorre com a
norma do art. 221, inciso I da Constituição, segundo a qual “a produção e a
programação das emissoras de rádio e televisão atenderão ao princípio de
preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”.
Escusa frisar que, numa sociedade de massas como a existente atualmente no
mundo inteiro, a intercomunicação do povo por intermédio dessas instituições,
livre de censuras e propagandas ideológicas dissimuladas, é indispensável para
que o regime democrático possa funcionar a contento; sobretudo em sociedades
profundamente desiguais sob o aspecto socioeconômico, como a brasileira.
Em matéria propriamente econômica, assinalo algumas
medidas que me parecem indispensáveis para enfrentar a crise atual.
Importa assim, antes de tudo, dar início ao
processo de reindustrialização nacional, por meio de estímulos fiscais e
econômicos.
Urge também regular o endividamento público.
Assinalo, a esse respeito, que o art. 52, inciso VI da Constituição dispõe ser
da competência privativa do Senado Federal a fixação dos limites globais do
montante da dívida consolidada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios; mas sempre por proposta do Presidente da República. Inútil dizer
que, submetidos à dominação bancária, nossos Chefes de Estado têm se revelado
incapazes de atuar nessa área de acordo com os verdadeiros interesses
nacionais.
Assinalo, ainda, que o art. 163, inciso III da
Constituição determina competir à lei complementar dispor sobre a dívida
pública externa e interna, nela incluída a das autarquias, fundações e demais
entidades controladas pelo Poder Público. Até hoje, tal lei não foi editada.
Eis, em resumo, o que me parece essencial para
darmos início ao processo de mudança em profundidade de nossa vida política,
econômica e social, no rumo de uma sucessão da vigente civilização capitalista,
por uma civilização mundial realmente humanista.
(1) Procurei estudar o capitalismo sob o aspecto
global de uma civilização, e não apenas como sistema econômico, em A
Civilização Capitalista – Para compreender o mundo em que vivemos, 2ª edição,
2013, São Paulo, Companhia das Letras.
(2) Stefania VITALI, James GLATTFELDER, Stefano
BATTISTON, The network of global corporate control, PLOS ONE, [S.I.], Oct.
2011.
(3) Sobre o assunto, o economista francês François
Morin vem fazendo análises percucientes, com a previsão de um novo cataclismo
financeiro, agora de proporções catastróficas. Cf. Un monde sans Wall Street?
(Éditions du Seuil, 2011); La grande Saignée – Contre le cataclysme financier à
venir (Lux Editeur, 2013); L’Hydre mondiale – L’oligopole bancaire (Lux
Editeur, 2015).
(4) Cf. sua
obra já clássica, Os Donos do Poder – Formação do patronato político
brasileiro, 3ª edição revista, Editora Globo, 2001.
(5) História
do Brasil 1500 – 1627, Livro Primeiro, Capítulo Segundo.
(6) La dynamique du capitalisme, Éditions
Flammarion, Paris, 2008, p. 68.
(7)
Vejam-se, a esse respeito, as considerações expostas pelo atual Dalai
Lama em seu livro Ethics for the New Millenium, Riverhead Books, Nova York.
Atente-se, igualmente, para os escritos e declarações públicas do Papa
Francisco.
(8) Foi o
período assim chamado por Karl Jaspers (Vom Ursprunt und Ziel der Geschichte,
1ª ed. Em 1949), compreendido entre os séculos VIII e II a.C., em que viveram
alguns dos maiores sábios de todos os tempos: Buda na Índia, Lao-Tsé e Confúcio
na China, os grandes profetas de Israel, os filósofos Sócrates, Platão e
Aristóteles na Grécia.
(9) Tive a
honra, em 2011, de patrocinar no Supremo Tribunal Federal, duas ações diretas
de inconstitucionalidade por omissão. Tais ações receberam parecer em grande
parte favorável da Procuradoria-Geral da República em 2013, mas continuam
aguardando ingresso em pauta de julgamento.
*Professor Emérito da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo. Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra
Créditos da foto: Beto Rodrigues/FDRH
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12