'É incrível que os séculos de existência da
imprensa corporativa tenham sido suplantados por uma rede de jornalistas voluntários'
Redação // www.cartamaior.com.br
A trajetória de Laura Capriglione -- jornalista livre cujo trabalho destacou-se
no recente episódio de ocupação de escolas estaduais pelos alunos-- não se enquadra naquilo tradicionalmente
classificado de uma carreira convencional.
Para começar, esta é uma jornalista que estudou
Física e Ciências Sociais –ambas na USP.
Foi lá que ingressou no grupo trotsquista Liberdade
e Luta, que embora extinto, continua a pulsar na política brasileira.
A resiliência da Libelu deve-se um pouco ao feixe
de ex-companheiros que, a exemplo de ‘Laurinha’, como é chamada afetuosamente
pelos amigos, destacaram-se na vida política e profissional do país.
Fazem parte desse grupo, entre outros, Caio Túlio
Costa, Matinas Suzuki, Mário Sergio Conti, Rodrigo Naves, Renata Rangel, Zé
Américo, Cleusa Turra, Bernardo Ajzenberg, Ricardo Melo, Josimar Melo , Paulo
Moreira Leite, Clara Ant, Glauco Arbix,
Marcus Sokol, Gushiken (já falecido) e
Palocci, mas também os notórios espíritos de Reinaldo Azevedo (ex-Convergência
Socialista) e Demétrio Magnoli –o que, se de um lado desconcerte, de outro
reafirma traços da radicalidade original.
No caso de
Laura, com coerência admirável.
Ela trabalhou como repórter especial do jornal
“Folha de S.Paulo” entre 2004 e 2013; dirigiu o Notícias Populares (SP), foi
diretora de novos projetos na Editora Abril e trabalhou na revista “Veja”.
Conquistou o Prêmio Esso de Reportagem 1994, com a matéria “Mulher, a grande
mudança no Brasil”, em parceria com Dorrit Harazim e Laura Greenhalgh. Foi
editora-executiva da revista até 2000 etc. De volta à Folha, deixaria o jornal
em dezembro de 2013, em meio a críticas de articulistas do próprio veículo
–mais precisamente de Demétrio Magnoli-- pela coerência e densidade de seu
trabalho...
Na direção oposta de alguns ex-trotskistas, Laura
não deu marcha a ré na carreira, nem nas convicções.
Ao contrário.
Na semana passada, seu trabalho jornalístico
reapareceu com destaque em dois
episódios ilustrativos da truculência com que o tucanato bandeirante trata uma
reforma educacional e a informação sobre ela.
Foi de Laura o furo de reportagem que revelou a
natureza bélica da ofensiva planejada pelo governo Alckmin para desalojar
estudantes de escolas ocupadas.
Foi ela também que sofreu a retaliação do governo
do Estado contra a cobertura ágil do coletivo jornalistaslivres, que escancarou
quase em tempo real a luta de David e Golias entre o choque da PM tucana e
indômita determinação da meninada de defender seu desejo de diálogo nas ruas de
São Paulo.
No dia em que Alckmin convocou a mídia para
anunciar a rendição –a do Golias— a jornalista foi barrada no Palácio dos
Bandeirantes e teve a mão espremida por um segurança para impedi-la de
registrar a cena antológica com o celular.
A seguir um pingue-pongue com a jornalista:
CM –Laura, em que momento de sua carreira e por que
nesse momento vc decidiu ser uma jornalista livre?
As condições de trabalho dos jornalistas empregados
nos grandes veículos têm se tornado especialmente insalubres nos últimos anos.
A partidarização escandalosa desses veículos transformou-os em máquina de
propaganda do projeto conservador e desmoralizou o marketing da isenção, do
pluralismo e do apartidarismo, que as empresas tanto se esforçaram para colar
em suas marcas. A consequência disso tem sido a perda de representatividade, de
audiência e de leitores. Em uma palavra, a crise. Mas esta é uma crise das
empresas, não do jornalismo. E foi para defender o jornalismo e seu gênero mais
nobre, a reportagem, que se constituíram os Jornalistas Livres, em março deste
ano.
CM- Como funciona a Rede Jornalistas Livres, como
ela poderá se sustentar? Quais os critérios de adesão?
Jornalistas Livres são uma rede de colaboradores que
se articulam com base nas redes sociais e sob o compromisso da credibilidade
jornalística. Não oferecemos aos nossos leitores a ilusão de sermos isentos. Em
vez disso, afirmamos nossa firme convicção editorial em defesa da Democracia,
do mandato popular, contra as viúvas sinistras da Ditadura Militar; e pela
ampliação dos direitos humanos e sociais, rumo a uma sociedade mais justa. Por
ora, Jornalistas Livres são um grupo de voluntários devotados à causa da
imprensa livre, pela democratização da mídia. Queremos tornar visíveis as
injustiças que a mídia corporativa teima em invisibilizar. Queremos oferecer
narrativas diferenciadas, interessantes e mobilizadoras que sirvam de
alternativa ao discurso conservador e autoritário, encampado pela mídia
tradicional. Para aderir, basta entrar em contato pelo
jornalistaslivres@gmail.com
CM- Qual foi a inspiração para criar os Jornalistas
Livres?
Um levantamento do Ministério da Cultura mostra que
no Brasil existem hoje milhares de coletivos de mídia, falando, produzindo
vídeos, textos, fotos, blogs, sites etc. A idéia dos Jornalistas Livres é
tentar construir liames entre todos esses coletivos, de modo a tecer uma forte
rede de comunicadores. Por isso nos identificamos como Rede Jornalistas Livres,
um hub de mídia. Dessa forma, ajudamos a romper o isolamento e o localismo
extremo, que caracteriza boa parte dessas iniciativas. Ao replicar uma postagem
de um grupo de sem-tetos para toda essa rede, conseguimos magnificar o alcance
dessa comunicação. Trata-se de um jogo virtuoso, em que ganham todos. O
conteúdo torna-se mais diverso e interessante e, ao mesmo tempo, colocamos em
uma vitrine mais ampla as lutas locais, mesmo as mais específicas.
CM- De um
modo geral, a grande imprensa sempre
esteve comprometida com os interesses dominantes e vice versa. Qual é a
singularidade desse mutualismo hoje no Brasil?
A grande imprensa no Brasil é de meia dúzia de
famílias. Durante duzentos anos, ela ancorou-se em benesses do setor público,
como isenções fiscais e subsídios descarados, ao mesmo tempo em que excluía
liminarmente o povo do acesso a ela. Pois isso começou a ruir quando se tornou
possível produzir conteúdo de qualidade sem depender de parques gráficos
suntuosos, da importação de papel, da aquisição de equipamentos caríssimos.
Toda uma fatia da população, excluída desde sempre da possibilidade de fazer a
narrativa de sua luta, de sua cultura, de sua vida, agarrou-se, como se fosse a
uma bóia no oceano, à chance de intervir nas redes. A direita veio também,
diga-se. Mas ela tem seus porta-vozes na mídia concentrada já bem
estabelecidos. Por isso, para ela, esse terreno das mídias sociais contém menos
novidades e potencialidades do que o que se verifica no campo progressista e
popular.
CM- Iniciativas como a dos Jornalistas Livres
poderão atingir o grande público? O que
falta para isso?
Falta mais articulação em rede. O segredo das redes
sociais e seus algorítimos, mesmo os mais secretos, no fundo, pode ser resumido
naquele poema do João Cabral de Melo Neto, “Tecendo a Manhã”. “Um galo sozinho
não tece uma manhã./ ele precisará sempre de outros galos./ De um que apanhe
esse grito que ele/ e o lance a outro; de um outro galo/ que apanhe o grito que
um galo antes/ e o lance a outro; e de outros galos/ que com muitos outros
galos se cruzem/ os fios de sol de seus gritos de galo,/ para que a manhã,
desde uma teia tênue,/ se vá tecendo, entre todos os galos.”
Se estabelecemos uma relação de generoso
compartilhamento mútuo de nossos conteúdos em várias redes, magnificaremos o
alcance de todos. Foi isso o que fizemos na cobertura da luta dos estudantes
contra a “reorganização escolar” pretendida por Geraldo Alckmin. O resultado é
que, em uma semana, alcançamos 7,5 milhões de timelines. Trata-se de uma
performance incrível, que não é só nossa, mas que decorre da atuação de cada um
dos coletivos parceiros, a quem compartilhamos e que nos compartilharam.
CM— Você
cobriu muitas manifestações nos últimos anos, existe algo de novo florescendo
entre o céu a terra brasileira? Qual é a tua sensação, estamos diante de algo
promissor? Se sim, por que os partidos –sobretudo os maiores, a exemplo do
PT-- se mostram tão anêmicos e acuados?
O PT, infelizmente, colocou-se à margem das lutas
sociais nos últimos anos, em prol de uma ideia insana de governabilidade a todo
custo. Não se posicionou, por exemplo, quando Geraldo Alckmin promoveu uma
matança em São Paulo, a pretexto de combater o PCC, em 2006. Na ocasião, mais
de 500 pessoas foram assassinadas no Estado em supostos enfrentamentos com a
PM, ou por grupos de encapuzados a quem entidades de direitos humanos
identificaram como agentes das forças policiais. Quando, em 2013, a juventude
mobilizou-se contra os aumentos nas tarifas de ônibus, Fernando Haddad, do PT,
colocou-se como aliado de Alckmin. Também conta o show de vergonha alheia
patrocinado pelo ministro José Eduardo Cardoso, que há pouco propôs a Lei Antiterror
e insiste em se eximir de demarcar terras indígenas, além de sempre oferecer o
apoio da Força Nacional nas horas mais impróprias. Tudo isso fez com que uma
parcela da população, particularmente a mais jovem, não se sinta representada
pelo PT ou pelas correntes de esquerda tradicionais. Mas essa juventude está na
luta, segue em busca de uma sociedade mais justa e humana e é o sal da
terra.
CM – O que mais te impressionou na vitória da
meninada contra a reforma de Alckmin? Em uma semana de rua eles desbancaram a
aprovação do governador, ganharam a opinião pública e reverteram a decisão. Há
muito tempo um protesto não era tão eficiente. Por quê, a que se deve tamanho
êxito do David contra o Golias?
Alckmin achou que pudesse fechar escolas como o
PSDB fez em 1995, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Esqueceu-se da
verdadeira revolução operada na Educação brasileira durante os governos Lula e
Dilma. Em 1995, país sob recessão, a escola servia para muito pouco. Um diploma
do ensino médio não garantia dias melhores, porque emprego não havia para
ninguém. E era virtualmente nula a possibilidade de um aluno egresso da escola
pública entrar na faculdade. Agora é completamente diferente. Lula e Dilma
construíram universidades federais, criaram o Programa Universidade para Todos
(Prouni), abriram linhas de
financiamento estudantil. Há ainda a política de cotas para alunos oriundos das
escolas públicas, e para alunos pretos, pardos e indígenas... Ou seja, a escola
pública agora é vista como uma ponte para uma história familiar mais feliz.
Muitos dos alunos que estão lutando por suas escolas serão os primeiros
estudantes universitários de suas famílias. Serão motivo de orgulho e
reconhecimento nas suas comunidades. A arrogância tucana e sua viseira sectária
em relação a tudo o que venha do PT não enxergou nada disso. Surpreendidos pela
ousadia e coragem da mobilização dos estudantes, não restou alternativa a
Alckmin, senão o recuo.
Que lições isso encerra para o exercício do
jornalismo num país dominado pelo Golias do oligopólio midiático?
Nós, Jornalistas Livres, cumprimos nosso papel,
desde o início acompanhando cada mobilização. Alckmin e sua assessoria de
imprensa tentavam desqualificar os estudantes, chamando-os de vândalos e
vagabundos? Nós estávamos dentro das ocupações com os estudantes, mostrando
como eles estavam limpando as escolas, pintando-as, arrumando encanamentos
entupidos, preservando o espaço comum. Também houve casos de carros de som
contratados passarem pelos bairros, acusando os meninos de promoverem orgias e
de estarem consumindo drogas. Nossos repórteres documentaram os garotos
cozinhando, fazendo saraus, promovendo aulas públicas. Além dessa
contra-narrativa ao intento do governo de criminalizar o movimento estudantil,
também publicamos um furo jornalístico fundamental no desenlace da luta, que
foi o vazamento da reunião realizada na Secretaria de Educação, em que o chefe
de gabinete secundado por dirigentes tucanos prometia mover uma “guerra” aos
alunos, e explicava as táticas a serem adotadas. É incrível que os séculos de
existência da imprensa corporativa tenham sido suplantados por uma rede de
jornalistas voluntários, com apenas nove meses de vida. Esta é a prova mais
eloquente da falência dessa mídia corporativa para contar as histórias do nosso
tempo. E das imensas potencialidades do jornalismo livre e independente.
Por fim, qual é o teu feeling: vai ter rua contra o
impeachment? Essa meninada que lutou
contra o fechamento das escolas iria defender o governo Dilma?
Irá defender o governo Dilma se o governo fizer
coisas defensáveis. Se falar ao coração dos meninos e jovens, aos pobres e
oprimidos, se for generoso e se reencontrar o sentido da utopia. Se não, nada
feito.
Créditos da foto: Sérgio Silva
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