Os EUA não teriam sido capazes de
dominar o Oriente Médio sem sua aliança com a Arábia Saudita. Por isso o
silêncio de Obama diante das execuções.
Sam Albert – CounterPunch // www.cartamaior.com.br
As recentes execuções na Arábia
Saudita deveriam deixar muito claro que a “guerra ao terror” das potências
ocidentais não tem nada a ver com uma suposta oposição às decapitações ou ao
fanatismo religioso sectário. Em vez de condenar esses crimes, os Estados
Unidos, o Reino Unido e outras potências ocidentais continuam dando ao regime
saudita, se não seu apoio público, ao menos um suporte prático. Tudo em nome de
supostas necessidades e alianças criadas pela “guerra ao terror”.
Esses crimes fazem parte dos
esforços da família real saudita para manter seu poder através de violência
estatal e autoridade religiosa, ambos representados pela espada do carrasco. O
mais proeminente dentre os executados foi Nimr al-Nimir, um líder do clero
xiita julgado secretamente e condenado por apoiar o movimento de protestos que
tomou a população xiita na Arábia Saudita oriental e partes vizinhas de Bahrain
em 2011; movimento esse particularmente popular entre a juventude influenciada
pela Primavera Árabe. Muitas pessoas acusadas de participar de comícios na
época, presos quando ainda eram adolescentes, devem ser executadas a seguir.
A execução de Nimir, ao lado da
de muitos outros xiitas, foi uma resposta hedionda a protestos legítimos contra
a discriminação presente no mercado de trabalho, no meio educacional, entre
outros - prova de que o regime saudita, em vez de se afastar do fanatismo
religioso característico do reino de Salman e de seus príncipes, está ampliando
o uso de assassinatos, justificados por religião, para silenciar adversários
políticos.
Mais do que isso, trata-se de um
deliberado ato de provocação, direcionado a autoridades xiitas
internacionalmente, em particular ao regime iraniano. Provavelmente existe a
perspectiva de dificultar relações diplomáticas desse país com os Estados
Unidos, uma vez que o Irã, também conhecido por realizar execuções em massa,
deve dar uma resposta à altura.
Também há clara intenção de
acabar de uma vez com qualquer questionamento da legitimidade da Casa de Saud
por parte da Al Qaeda, do Estado Islâmico ou semelhantes, tanto dentro quanto
fora do reino e até mesmo dentro da família real, tomando o papel de liderança
de todos os sunitas e insinuando uma batalha religiosa.
As execuções foram um ato bárbaro
mas não desmedido - elas serviram a objetivos políticos claros, os mesmos por
trás da guerra saudita contra o Iêmem e os esforços sauditas para confrontar o
regime de Assad e seus apoiadores iranianos em termos religiosos, desafiando a
sharia do Estado Islâmico ao impor a sharia saudita. Esses são objetivos que,
em alguns aspectos, convergem com os planos das potências ocidentais a respeito
de como moldar o caos no Oriente Médio para o seu benefício.
A diferença entre o Estado
Islâmico e o regime saudita não pode ser medida em termos de moderação ou
crueldade. Embora a relação da monarquia com os Estados Unidos seja complexa e
volátil - os Estados Unidos já atuaram nos dois lados da disputa sunita/xiita,
inclusive tendo trabalhado com o regime xiita fundamentalista iraniano em
alguns momentos - o fato é que os Estados Unidos e seus aliados não teriam sido
capazes de dominar o Oriente Médio sem sua aliança com a Arábia Saudita, por
mais problemática que essa aliança seja para ambos os lados atualmente.
Por isso, o presidente americano
Barack Obama, o primeiro ministro britânico David Cameron e o presidente
francês François Hollande têm silenciado diante das execuções. A princípio,
representantes demonstraram desgosto diante da situação de “tensão sectária na
região”, como se a intervenção ocidental em si não fosse o maior fator de
agitação do conflito religioso no Oriente Médio. Conforme as ondas de choque
foram se colocando, seus governos expressaram sua preocupação apenas a respeito
dos inconvenientes políticos que poderiam ser criados, e não sobre a injustiça
do ato.
O editorial de 4 de janeiro do
Independent britânico não poderia ter sido mais explícito: ao mesmo tempo em
que se distancia do entusiasmo desavergonhado do Partido Conservador britânico
a respeito do regime saudita - note-se que o primeiro ministro Cameron
recentemente apoiou a candidatura saudita ao Conselho de Direitos Humanos da
ONU - o jornal concluiu que “não é do nosso interesse ver, e menos ainda
provocar, a queda do regime de Saud”. É essa também, é claro, a política
seguida por Obama, quem há um ano proclamou “a importância da relação Estados
Unidos - Arábia Saudita como uma força na promoção da estabilidade e segurança
do Oriente Médio e além.”
Os imperialistas ocidentais
sempre souberam como atua o regime saudita. Sempre houve decapitações de
apóstatas (pessoas acusadas de abandonar o Islã): está agendada a execução do
jovem poeta e artista palestino Ashraf Fayadh, justamente por esse “crime”.
Muitas das 153 pessoas executadas em 2015 e do total de 2200 pessoas nas
últimas três décadas eram trabalhadores migrantes, principalmente do Sul da
Ásia, os quais construíram os palácios da região do Golfo, shopping centers,
museus, estádios esportivos e outras maravilhas arquitetônicas, virtualmente
submetidas à espada real.
Os governantes sauditas devem
suas espadas, no sentido mais amplo da palavra, às potências ocidentais. Em
novembro, pouco antes das execuções e bastante depois do governo saudita
anunciar seu plano para realizá-las, o Departamento de Estado de Obama aprovou
uma solicitação saudita para comprar 1,29 bilhões de dólares em bombas e
mísseis. O website do Departamento de Estado oferece com frieza um inventário
das compras, o tipo de munição que a Arábia Saudita e seus aliados no Golfo tem
feito chover sobre as cabeças do povo do Iêmem, numa guerra que já matou pelo
menos 5700 pessoas, metade delas civis, desde que começou a invasão por ar e
terra em março de 2015. Essa guerra de agressão contra um país que a Arábia
Saudita considera tradicionalmente seu “quintal” não poderia acontecer sem o
apoio logístico, o reabastecimento aéreo e os times de caça providenciados
pelos Estados Unidos - o que torna Washington diretamente responsável pelo
bombardeio de escolas e hospitais.
Apesar dos fatores serem
complexos, essa guerra, assim como as execuções, está sendo travada em nome da
autoridade religiosa da família real saudita contra xiitas e outros infiéis. Os
rebeldes houthi, cuja crença Zaydi faz da sua fé uma prima do xiismo, são
apoiados pelo Irã - o que está longe de ser o principal fator da rebelião dos
houthis e de outros contra o regime da Arábia Saudita. Esse é outro exemplo de
como os sauditas estão buscando agravar a dimensão religiosa dos conflitos da
região - com apoio concreto dos Estados Unidos.
Obama veio pessoalmente encontrar-se
com o Rei Salman, depois deste ser entronado há um ano, e seu reino tem sido
aclamado como a inauguração de uma era de reforma por ocidentais. assim como
aponta o comentarista liberal americano Thomas Friedman (em texto no New York
Times de 25 de novembro de 2015, escrito quando essas execuções já estavam
agendadas). A principal “reforma” até então tem sido promover eleições para as
insignificantes estruturas municipais, e permitir que mulheres votem, apesar de
não poderem dirigir ou tomar qualquer decisão sem permissão de seu homem
responsável. Ao longo do último ano, o regime saudita tem ampliado suas
execuções, em alguns casos crucificando os corpos decapitados e deixando-os a
apodrecer publicamente.
Membros da família real (que,
graças à poligamia, chega ao número de milhares) e membros do alto escalão do
próprio regime tem apoiado a Al-Qaeda. O regime recebeu duras críticas da
Al-Qaeda a respeito do estacionamento de tropas americanas nas terras sagradas
do Islã, o que culminou com a transferência de tais tropas para bases em outros
lugares do Golfo. Na Síria, a Arábia Saudita tem armado e financiado uma
variada constelação de alianças fundamentalistas islâmicas. Quanto ao Estado
Islâmico, que compartilha da ideologia Salafi (fundamentalista) que legitima o
poder da Casa de Saud e, de forma semelhante, baseia seu sistema na opressão de
mulheres, a mudança de seu nome de Estado Islâmico do Iraque e do Levante para
apenas Estado Islâmico sinalizou uma ameaça direta à alegação de autoridade do
regime saudita sobre todos os muçulmanos sunitas.
A monarquia absoluta saudita
exige obediência e apregoa ser a terrena
“protetora de Ummah” (a assim chamada comunidade de fiéis) e não por
meio de poder religioso direto como o califado do Estado Islâmico, liderado por
um auto-aclamado descendente de Maomé. Essa distinção é um perigo à existência
da dinastia saudita, apesar de não representar uma grande diferença,
especialmente se levarmos em conta que a resposta saudita à marca registrada do
Estado Islâmico - de exterminar xiitas como apóstatas, além de infiéis - foi
superar seus números e se tornar a maior assassina de xiitas.
As potências imperialistas
ocidentais sabiam muito bem o que queriam ao se envolverem com a monarquia
saudita. O Reino Unido ajudou a estabelecer a monarquia em 1932, depois de
encorajar a ascenção do Wahhabismo (a forma específica de Salafismo associada
com autoridades tribais árabes) em sua campanha para absorver o império
Otomano. Em um tratado de 1945, assinado por Franklin D. Roosevelt, os Estados
Unidos prometeram manter a monarquia saudita no poder, um pacto renovado por
George W. Bush em 2005. Apesar dos Estados Unidos terem tomado o país do Reino
Unido, como forma de substituir a dominação britânica sobre o Oriente Médio, o
Reino Unido permanece mantendo laços financeiros e militares próximos com a
Arábia Saudita. A França, sob o governo do presidente socialista Hollande, está
agora forjando novos vínculos políticos e militares com o regime.
Ainda assim, a associação da
Arábia Saudita com o imperialismo transformou profundamente o regime e sua
classe dominante. Assim como em outros países do Golfo, ela se transformou num
grande espaço de acumulação de capital dentro do capitalismo global dominado
pelas potências imperialistas ocidentais. Isso aconteceu, por um lado, através
da exploração no Golfo de trabalhadores do mundo islâmico e, por outro, pelo
investimento de capital saudita e do Golfo em países muito maiores como o
Egito, cuja economia, política e vida religiosa são amplamente condicionadas
por essa relação.
De diversas formas, tais como
influência política e subsídios a regimes como o paquistanês, a pregação
religiosa para os milhões de árabes vindos para trabalhar no Golfo, o
financiamento de grandes instituições religiosas e “filantrópicas” e centenas
de pregadores televisivos e expoentes midiáticos, a Arábia Saudita e outras
monarquias do Golfo são os principais vetores que trazem o Salafismo moderno ao
mundo sunita. Isso ocorre ao mesmo tempo em que todos esses países se aproximam
cada vez mais do mercado internacional e do sistema capitalista global, com uma
decorrente rivalidade inevitável entre as classes dominantes, que apenas são
capazes de acumular capital em competição mortal umas com as outras.
É verdade, como disse Obama, que
“a relação entre Arábia Saudita e Estados Unidos” tem sido inestimável pros EUA
e pro Ocidente como uma “força na promoção da estabilidade e da segurança do
Oriente Médio”. Mas, ao mesmo tempo, essa relação proporcionou condições para a
instabilidade atual na região, em que a contínua dominação americana não
garantiu um cenário seguro de forma alguma. Grandes riscos exigem medidas
desesperadas.
Muita gente, especialmente no
Oriente Médio, cujo povo é de longe o maior alvo e a maior vítima do Estado
Islâmico e de toda forma de fundamentalismo islâmico, considera que os Estados
Unidos deliberadamente criaram o Estado Islâmico. Isso não é literalmente
verdade. Apesar de Washington, Londres e Tel Aviv terem encorajado o islamismo
em resposta a tendências políticas mais radicais na região, e apesar das forças
imperialista terem criado as condições nas quais eles surgiram, as várias
formas de fundamentalismo islâmico são um problema sem solução para os Estados
Unidos e para outros imperialistas ocidentais. Ainda assim, a realidade sobre a
qual se constrói a “guerra ao terror” não é um mero conflito bilateral. Em vez
disso, imperialistas rivais e poderes regionais estão tentando avançar em seus
próprios interesses reacionários entre acordos e conflitos, uns contra os
outros, num campo de batalha muito complexo que pode ser interpretado como
“cada classe dominante por si”. Ao mesmo tempo, de forma geral, todos esses
adversários estão alimentando fundamentalismo religioso de algum tipo, não só
intencionalmente, mas também como resultado de suas manobras políticas e
militares e pelas relações econômicas retrógradas que eles representam.
O capital imperialista, agora
representado por pessoas como Obama e seus colegas “líderes ocidentais”,
precisa da autoridade de pessoas como o Rei Salman e de seus príncipes
assassinos, que remetem a ideologias e sistemas sociais antigos, mas que devem
seu poder ao imperialismo moderno. Os Estados Unidos e seus parceiros e rivais
não podem deixar de fomentar fundamentalismos como o islâmico no século XXI. A
“guerra ao terror” é uma fraude - é uma competição de quem consegue impor seus
interesses e o maior terror.
Tradução por Allan Brum
Créditos da foto: reprodução
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