segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Jânio Quadros e um projeto de Brasil que sempre retorna, por Nilson Lage

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Político provinciano atirado, de repente, a um octógono de MMA para uma luta que não entendia bem, Jânio Quadros era, em agosto de 1961, figura dramática a que se propunha a escolha entre dois papéis: o de marionete ou de judas. Tudo que lhe restava era tentar novo mandato popular, o que pretendeu com o fracassado golpe da renúncia que-não-era- bem-assim-mas-acabou-sendo.

A eleição de Jânio à presidência da República resultara do temor de que seu opositor, o Marechal Henrique Lott, unisse em uma frente forças políticas que se estranhavam (e é sempre conveniente que se estranhem): o trabalhismo de Getúlio Vargas e a vertente nacionalista do modernismo conservador que empolgava parte da burguesia e das forças armadas. Medo semelhante levaria, quase vinte anos depois, ao mesmo palácio, outro delirante herói de província, Fernando Collor.
Só que esqueceram de combinar com o próprio Jânio. Ao contrário do script, ele seguiu inesperados conselhos que o levaram a ser rejeitado por quem o apoiara na campanha eleitoral, sem chegar a ser aceito pelos adversários de então.
É aí que entra a história da imprensa brasileira – do quanto ela mantém a população desinformada – e de um jornal, oDiário de Notícias do Rio de Janeiro.
Um programa para o Brasil
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A segunda edição do Diário de Noticias. Foto Biblioteca Nacional
Diário de Notícias, fundado em 1930 por Orlando Ribeiro Dantas em apoio a Getúlio Vargas mas que logo em seguida passou a combatê-lo, era, na década de 1950, o jornal de maior circulação no Distrito Federal, leitura dominante entre militares, funcionários públicos e estudantes. Urbano, udenista e conservador.
Numa cidade em que os poderosos Diários Associados de Assis Chateaubriand eram representados por um jornalão irrelevante, O Jornal, e um vespertino escandaloso, o Diário da Noite, o rival do Diário de Notícias era O Globo, com que manteve polêmica relacionada às histórias em quadrinhos. A empresa de Roberto Marinho ganhava dinheiro com as tiras americanas do Gibi e do Globo Juvenil, e o DN as denunciava como perniciosas.
Quando Orlando morreu, em 1953, a empresa passou a ser comandada pela viúva, Ondina, que assinava uma coluna sobre música com o pseudônimo D’Or, e pelo filho, João Ribeiro Portela Dantas. Foi este que tomou a iniciativa de contratar uma equipe acadêmica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro liderada pelo sociólogo José Arthur Rios para um estudo sobre a “revolução brasileira”.
O relatório oferecendo “um programa para o Brasil” ocupou as oito colunas compactas em corpo 8 da página 5 na edição 10.915, de 28 de junho de 1958, um domingo. Sua ousadia foi certamente percebida pelos editores: objeto de um investimento cultural e político importante, teve chamada discreta na primeira página e, saindo onde saiu, sua repercussão foi contraditória.
João Dantas, no entanto, comprou a ideia com entusiasmo e levou o documento a Bled, na Croácia, onde o apresentou ao candidato Jânio Quadros. Juntos visitaram o Japão, a Índia, o Paquistão, o Irã, o Egito, Israel e Líbano. Foram à China: Falando à France Press, em Pequim, como porta-voz de Jânio, Dantas defendeu o reconhecimento do regime de Mao Tsé Tung e o restabelecimento de relações com a Rússia.
No embalo da luta política, em que nada do que se diz pode ser tomado ao pé da letra, esse “lado B” de Jânio Quadros não foi levado a sério – mas nele reside a raiz da contradição que levou à aventura da renúncia.
Não um golpe, uma revolução de ideias
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Trabalho de Arthur Rios Rios, no Estadão em 1960, atacando a visão “higienista” das favelas
“Diante do quadro desolador e deprimente” da situação brasileira, proclama a introdução do texto da equipe de Rios, “sobressai a importância da iniciativa deste jornal de propiciar a seus leitores um programa de ação social, política e econômica, o programa de uma revolução de métodos e de mentalidade”. E acrescenta:
“Desde a Abolição e a República, o Brasil vem atravessando uma revolução que não se consumou”. Com a Abolição, “desapareceu a escravidão de direito, permaneceu a escravidão de fato”. O país tornou-se “aquela democracia de fachada governada pelas oligarquias estaduais e pelo coronelismo municipal”. Para essa doença, o remédio proposto é “uma profunda reforma na nossa ordem social, política e econômica” que “só poderá ser feita por meios revolucionários”, não “por golpes e conspiratas mais ou menos crônicas, principalmente com ideias”.
Quais ideias?
A primeira delas é a reforma agrária, a “difusão da propriedade entre os sem terra e o combate a seu uso como meio de especulação”:
“A reforma agrária abre espaço à industrialização e a industrialização complementa a reforma agrária”.
A proposta é que “a industrialização se faça sem inflação ou sem recorrer aos grandes trustes internacionais ou a governos estrangeiros”, “através de empréstimos onerosos acarretadores de vassalagem” ou “pela entrega de nossas riquezas”, “pela entrega da Petrobras.”
Os limites da iniciativa privada
O texto que Jânio Quadros tacitamente subscreveu não pretende “um estado liberal, limitado apenas a tarefas de polícia”. Cabe-lhe “demonstrar, pelo exemplo e pelo estímulo”, seu “empenho e concurso a tudo que a livre iniciativa, em idênticas condições, puder conseguir com maior rendimento”. A exceção é “a indústria pesada, principalmente no caso do petróleo”:
“O monopólio estatal de algumas das indústrias de base fundamentais é um imperativo da dignidade nacional, sobretudo uma afirmação de independência”. A Petrobras é “uma instituição do novo Brasil, como Volta Redonda” e o controle das fontes de energia, “tanto elétricas quanto de combustíveis fósseis e fissíveis (físseis)” parte de um “programa de combate às formas de proletarização do povo brasileiro” que inclui o investimento nos setores “de transportes, comunicações, irrigação, saneamento, armazenagem, ensilagem e mecanização da agricultura, ao lado da distribuição de terra aos que nela querem trabalhar e viver”.
E adverte:
“Não devemos permitir que a plutocracia continue impunemente seu consórcio com a finança internacional na base da utilização do Estado” para “a venda do país a retalho”, assim como “temos que pôr fim à exploração do consumidor brasileiro por essa mesma oligarquia de riqueza”.
Tudo isso e mais “uma profunda mudança no sistema educacional brasileiro para que seja aberto a todos, sem distinção de classe, raça ou religião”
Uma contribuição ao mundo
O orientador do trabalho encomendado pelo Diário de NotíciasProfessor Arthur Rios, graduou-se em Direito e Ciências Sociais, aluno, na década de 1930, dos franceses Jacques Lambert (demógrafo, autor de Os dois Brasis), Maurice Byé (especialista em economia do desenvolvimento e relações econômicas internacionais) e René Poirier(autor de obras sobre a ocupação humana do espaço e da terra), membros da missão da Universidade de Paris enviada para a implantação da Universidade do Brasil. Era mestre pela Universidade Estadual de Louisiana, nos Estados Unidos.
A democracia, define, é “o regime onde é sagrado o respeito |à dignidade da pessoa humana e onde o pleno gozo das liberdades fundamentais do cidadão é um habito cotidiano”. Nosso nacionalismo “não se dirige contra nenhum povo”; queremos “dar ao mundo uma contribuição autêntica de nosso esforço cultural e civilizador” e traçar “o mapa da ocupação imperialista estrangeira de nosso território econômico para vencê-la com uma legislação antimonopolista e antirustes pelo menos tão radical quanto a dos Estados Unidos”.
O jogo dos paradoxos
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Jânio condecora Che Guevara em Brasília
Há relações paradoxais entre o documento e o jornal que o encomendou; entre a ousadia do jovem João Dantas (então com 28 anos; faleceu em janeiro de 2013) e o passado conservador da empresa que herdara; entre a demagogia pernóstica de Jânio Quadros e o compromisso que o levaria a desafiar o embargo a Cuba decretado pelos Estados Unidos e acondecorar o Comandante Doutor Ernesto Ché Guevara.
No entanto, paradoxos são a essência do discurso político brasileiro, construído sobre meias verdades cultivadas por umaelite e uma imprensa incompetentee tendenciosas. Sempre foi mais fácil ridicularizar uma figura ambígua como Jânio Quadros – sua caspa, seu alcoolismo, o “mistério” de sua renúncia – do que tentar compreender o cenário que se descortina a quem ocupa o cargo presidencial num país enorme e rico, que parece mesmo independente mas não passa de colônia sempre tratada como república bananeira.
Todos os presidentes que ocuparam o cargo depois de Getúlio Vargas viveram, de alguma forma, réplicas desse drama, que o fez suicidar-se: o desenvolvimentismo rodoviário e perdulário de Juscelino, a frustração dos generais conhecendo o limite de seu poder, a volta por cima que Sarney tentou dar apoiando Dílson Funaro e seu sonho nacional-burguês, o desastre de Collor e o esquecimento programado da figura de Itamar Franco são capítulos em que diferentes protagonistas reagiram a seu modo ao mesmo roteiro. O único que se sentiu em casa, porque lacaio assumido, foi Fernando Henrique Cardoso.
As explicações personalistas e paradoxais – a ousadia de Juscelino, a tibieza de Jango, a mineirice de Itamar, o enigma de Jânio Quadros – não passam de explicações convenientes para aquilo que não se quer ou não se consegue explicar.
Eu e Diário de Notícias
Nunca trabalhei no Diário de Notícias, mas o encontrei em dois momentos marcantes.
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ão João Marcos do Príncipe, devorada pela represa de Ribeirão das Lages, da Light
No primeiro, em 1952 ou 1953, tinha 14 ou 15 anos, estudava no Colégio Militar do Rio de Janeiro e fazia parte, com colegas, de um grupo excursionista, liderado pelo tio de um deles, professor de educação física e instrutor de montanhismo. Num fim de semana prolongado, subimos a serra, partindo de Muriqui, no Sul fluminense, para a fazenda do Rubião, do outro lado do morro, acampamos e estendemos o passeio até as margens da represa de Ribeirão das Lajes. Lá encontramos as ruínas de uma cidade: uma cruz de igreja despontando sobre as águas, em tempo de estiagem; o calçamento da estrada; restos de pedra da mureta de uma ponte com algumas letras escavadas.
Foi, para mim, descoberta espantosa – tanto que, de volta ao Rio de Janeiro, pesquisei não sei mais onde para descobrir que eram os restos de São João Marcos do Príncipe, joia da arquitetura colonial brasileira, onde, no Século XIX, havia teatros, orquestra sinfônica, palácios e uma catedral com a nave forrada de ouro. Abalada pela decadência da lavoura de café no Sul fluminense, a cidade desapareceu aos poucos para a expansão da represa que abastecia (e ainda o faz, em parte) o Rio de Janeiro de água e eletricidade. O perímetro urbano foi recuando, a partir de 1907, diante do silêncio cúmplice da imprensa, que a canadense Light and Power corrompia.
Os últimos prédios foram demolidos no começo da década de 1940. A inscrição na mureta pretendia comover o Presidente Getúlio Vargas que, pressionado pela ameaça de falta de energia na capital da República, destombara o monumento histórico.
Com esses dados escrevi, com pretensão e habilidades de menino, a história do passeio e do que descobríramos. Alguém enviou esse relato para o editor de uma seção do Diário de Notícias chamada “Vida Excursionista” e ele a publicou, com leve copidescagem que me deixou muito aflito. Lembro-me qde uma brincadeira que fiz com o nome de Ataulfo de Paiva, medalhão da Academia de Letras: ele e o prefeito Pereira Passos, que modernizou o Rio no início do Século XX, nasceram em São João Marcos. Foi assim minha pré-estreia no jornalismo.
Vinte anos depois, no governo de Emílio Garrastazu Médici, recebi do Ministério da Fazenda um convite inesperado: queriam-me como editor do Diário de Notícias, então sob intervenção do governo.
Recusar de pronto, no contexto da ditadura, era complicado. Fui à sede da Rua do Riachuelo,114, e conversei com o administrador indicado para “sanear” a empresa, o que quer que se entenda por isso: o jornal não circulava há pelo menos dois meses. Chamava-se Sérgio Nóbrega de Oliveira, funcionário do Banco do Brasil, e me foi apresentado como o homem que recuperara empresas falimentares do grupo Matarazzo, de São Paulo. Junto com ele, o diretor de redação indicado por Gustavo Silveira, assessor de imprensa do Ministro Delfim Netto.
Fiz um tour pelas instalações do jornal e descobri algumas coisas interessantes. Sérgio gastara bom dinheiro recuperando uma enorme impressora, no entanto de pouca serventia para um jornal diário: máquina herdada do Mundo Ilustrado, imprimia colorido (creio que em rotogravura) em uma face apenas, e, ao que me disseram, faltava o comando eletrônico. Nas oficinas de composição, encontrei gráficos que não recebiam salários há três ou quatro meses. Alguns eram meus conhecidos do tempo de Ultima Hora; contaram-me que João Dantas vendera a Chagas Freitas1, dono de O Dia , uma a uma, mais da metade do parque de linotipos (máquinas que fundiam as matrizes em linhas de chumbo-antimônio) para pagar dívidas prementes. O mesmo destino teriam as demais, e os equipamentos caros da gravura, não tivessem os empregados escondido peças chaves dos equipamentos.
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10/11/1976.Última edição do Diário de Notícias, outra  vítima na imprensa da ditadura que a imprensa pediu
“Se você vem salvar o jornal, a gente devolve tudo”, disseram. E eu me comovi a ponto de pensar, de fato, em assumir a missão impossível: recuperar um jornal de propriedade do governo no pior momento de uma ditadura. Tomei as primeiras providências: fiz alguns contatos, levantei as despesas mínimas necessárias para operacionalizar redação e oficinas, e restabeleci o contato.
Marcaram um almoço em um restaurante do centro do Rio, o Capela, na Lapa; lá seriam tomadas decisões cruciais. Tive que estacionar longe: as vagas próximas estavam ocupadas por Opalas pretos – muitos deles. A mesa era grande: sujeitos engravatados, a maioria jovens e atléticos, encaravam filés e corvinas, entre garrafas – não me esqueço das de uísque Old Parr. Refugiei-me na água com gás.
Escurecia quando aquilo terminou. Voltei-me para o futuro diretor de redação, Nilo Dante, que conhecia de nome (trabalhara, em outros tempos, no Diário de Notícias e naTribuna da Imprensa; era conhecido como funcionário fantasma do Instituto Brasileiro do Café), disse-lhe que tinha feito o levantamento das despesas básicas e que gostaria de conversar sobre o pessoal da redação. “Lamento”, ele me respondeu. “Embarco daqui a pouco para os Estados Unidos. Vou cobrir a posse de Nixon” (tinha sido reeleito). E pagou a conta com um cartão de crédito empresarial do Diário de Notícias.
Obviamente, o problema que se colocou para mim, nos dias seguintes, foi como redigir uma carta gentil e não comprometedora declinando do convite.
1.Depois governador do Rio de Janeiro, de 1979 a 1983.

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