Além das sessões do Supremo, as
do Superior Tribunal de Justiça, dos Conselhos de Justiça e do Ministério
Público, entre outros órgãos, estão disponíveis ao vivo na internet. Longe da
cúpula, a tendência é que tribunais de Justiça regionais e estaduais sigam esse
movimento, assim como as procuradorias do Ministério Público
por Grazielle Albuquerque // http://www.diplomatique.org.br/
De forma inédita, no dia 17 de
junho de 2015, o Tribunal de Contas da União (TCU) veiculou em tempo real um
julgamento realizado em seu plenário. Essa foi também a primeira sessão que
avaliava as contas da presidenta Dilma Rousseff referentes a 2014, ano que
encerrou seu primeiro mandato. As imagens estiveram no portal do TCU e no canal
do YouTube, contabilizando 2 mil visualizações ao vivo e 38 mil a posteriori.
Durante o julgamento das chamadas “pedaladas” fiscais, houve a concessão de
prazo para que a presidenta respondesse às irregularidades apontadas pelo
órgão, o que empurrou a apreciação das contas para o dia 7 de outubro. Em meio
ao acirramento político e aos holofotes que o processo ganhou, a sessão – a
segunda na história da instituição a ser transmitida ao vivo – contabilizou o
significativo número de 23 mil visualizações em tempo real e 206 mil page views
até meados de novembro deste ano.
Segundo a Secretaria de
Comunicação do TCU, a ideia de transmitir ao vivo as sessões veio como resposta
ao monitoramento das redes sociais, que indicava um número grande de pessoas
interessadas em assistir in loco ao julgamento das contas. A transmissão
“esvaziaria” essa necessidade porque seria possível acompanhar a sessão pela
internet. No entanto, a explicação técnica não exclui uma opção estratégica, já
que, entre todas as pautas do TCU, o julgamento das contas do governo foi
justamente o escolhido para iniciar as transmissões do plenário ao vivo. “Tinha
noção de que era uma sessão histórica”, explicou o secretário de Comunicação do
TCU, Alexandre França de Araújo, referindo-se à sessão do dia 17 de junho, que
iniciou o caso. Dito isso, fica claro o posicionamento institucional de dar
visibilidade ao órgão a partir do julgamento.
O agendamento do tema se confirma
por outros fatores. A sessão do dia 7 de outubro teve cobertura ao vivo da
Globo News e da Band News. A TV Câmara chegou a solicitar o acompanhamento da
sessão, mas voltou atrás no pedido. O Valor Econômico disponibilizou link para
o plenário do TCU, e até mesmo a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) colocou em
seu site uma chamada direta para a transmissão. O G1 usou trechos com a
filmagem do tribunal em sua matéria, e as coberturas do UOL e da Folha de
S.Paulo – na versão on-line – também utilizaram esse recurso. Isso só para
ficar em alguns casos, já que as postagens no site do TCU, no canal do YouTube
e as transmissões das grandes emissoras acabaram alimentando a cobertura de
outros veículos, além de postagens nas redes sociais e em uma série de blogs.
Destaque-se que, mesmo antes do
julgamento, o próprio anúncio da transmissão gerou pauta. Petistas como o
deputado Humberto Costa (PE) e a senadora Gleisi Hoffmann (PR) afirmavam que a
intenção da Corte era transformar o julgamento em um ato político. Por outro
lado, o senador do PSDB Aloysio Nunes (SP) contemporizava dizendo que estavam
fazendo um cavalo de batalha e que aquela era apenas mais uma sessão pública.
No meio da briga, a transmissão, que foi apimentada com o envio de convites por
parte do Tribunal a deputados e senadores, conseguiu seu objetivo: colocar o
TCU como instituição central em meio à disputa política.
Vale lembrar que, no auge dos
embates sobre o impeachment, analistas levantavam duas possibilidades que
caracterizariam crime e levariam à saída da presidenta Dilma Rousseff. A
primeira ocorreria via Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e impugnaria o mandato
eletivo da presidenta e do vice, Michel Temer, por suposto abuso de poder
político e econômico nas eleições 2014. A segunda aconteceria via TCU, que, ao
considerar que o balanço de 2014 do governo continha irregularidades que ferem
a Constituição e as leis que ordenam gastos públicos, abriria caminho para o
impeachment. Aqui poderíamos fazer uma análise jurídica e política do caso ao
focar os motivos que, afinal, deveriam justificar o afastamento de um chefe de
governo num sistema presidencialista e democrático. O assunto já nos renderia
muito pano para manga. Mas há, por baixo disso, um fenômeno cujos efeitos
costumamos ver sem atentar para as causas: a aproximação entre o Sistema de
Justiça e a mídia.
É neste ponto que fazemos nosso
recorte ao, inclusive, destacarmos uma ironia fundamental: o TCU, em que pese
sua denominação, não compõe o Poder Judiciário e tampouco o Sistema de Justiça.
Apesar do uso de togas, das sessões de julgamento, dos ritos e da nomenclatura
de ministros de uma corte, esse tribunal é apenas um órgão acessório do Poder
Legislativo. Embora tenha autonomia, sua função é auxiliar o Legislativo no
exame de contas, sem ter poder de sanção. De forma direta, sua atuação é
limitada. Na prática, o TCU aconselha deputados e senadores que podem ou não
seguir seu posicionamento. Seriam decisões técnicas que passariam pelo crivo
político. Essa observação nos remete a outro ponto: por que, então, um órgão
administrativo usa tantos elementos simbólicos próprios da Justiça? A busca
pela legitimidade ilumina a questão.
O episódio do julgamento das
contas do governo Dilma mimetiza um movimento de legitimação via mídia que há
muito o Sistema de Justiça vem trilhando. Esse é um ponto central para
pensarmos como estruturas do Estado que não passam pelo crivo das eleições
começam a entrar em outro tipo de disputa, relacionada à construção de uma
imagem pública. Na era midiática, o antigo jogo de bastidor que percorria
silenciosos caminhos institucionais agora ocorre em uma arena pública. Eis a
velha máxima: tão importante quanto ser é parecer ser.
Nesse sentido, vale não demonizar
os processos, mas colocá-los em uma perspectiva histórica. Diversos países da
América Latina que passaram por ditaduras militares fizeram sua transição para
a democracia mudando seu aparato legal. Além de novas Constituições e leis
ordinárias, a seu jeito, muitos encararam a chamada Reforma do Judiciário e,
com ela, a demanda por uma maior abertura da Justiça. Accountability e
modernização do Sistema de Justiça eram pautas comuns. Esses foram alguns dos
fatores que impulsionaram a aproximação com a mídia. Outras variáveis entram na
equação. No caso brasileiro, por exemplo, críticas antigas ao “encastelamento”
do Judiciário (a popular “caixa-preta”) e o próprio desenho dado à Justiça pela
Constituição de 1988 potencializaram seu protagonismo, suas cobranças e, em
consequência, sua exposição.
Um breve recorte no tempo ilustra
as mudanças no Brasil. Durante a ditadura militar, sobretudo após o Ato
Institucional n. 2, a Justiça se distanciou dos embates ditos “políticos”
(ainda que aqui se entenda como algo político a procura do corpo de um ente
querido e outras questões que adentram também a esfera civil) com a suspensão
da apreciação de habeas corpus de crimes políticos e crimes contra a segurança
nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Em um movimento
contrário, após 1988, o Judiciário passou a estar presente tanto em disputas
políticas como em processos de grande impacto na vida cotidiana. O julgamento
pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de questões como as pesquisas com
células-tronco embrionárias e o reconhecimento da união estável para casais do
mesmo sexo são exemplos disso. A instituição ganhava centralidade ímpar.
Que as coisas não seriam as
mesmas para o outrora “ilustre desconhecido” Poder Judiciário é indiscutível.
Mas os contornos com os quais essa relação midiática se deu são curiosos. Um
dos pontos de destaque é seu profissionalismo. Se tomarmos como pressuposto o
marco da Constituição de 1988, vamos observar, por dentro do aparato estatal, o
fomento de uma expertise em lidar com a mídia. Eis os sintomas da
burocratização weberiana.1 Sendo direta, o que digo é: sim, há uma nova relação
entre mídia e Sistema de Justiça; mesmo que esse fenômeno nos pareça mais
visível agora, na verdade ele se desenha há cerca de 20 anos e, por fim, ele
não foi construído de forma amadora.
O aparato das assessorias de
comunicação do Sistema de Justiça demonstra isso. Para lidar melhor com a
imprensa e sofisticar sua comunicação interna, não apenas o Poder Judiciário
como também o Ministério Público e a Defensoria Pública passaram a investir em
profissionais de comunicação, melhorias de estrutura, equipamentos e técnicas.
Uma pesquisa feita pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2010 nos mostra
dados relevantes: tendo como base um questionário aplicado em 91% dos tribunais
do Judiciário, com exceção de apenas quatro, todas as demais cortes pesquisadas
possuíam assessorias ou secretarias de comunicação social. Segundo o
levantamento, mesmo as quatro instituições que não tinham um setor próprio
contavam com assessorias informais ou funcionários que tratavam desses
assuntos. Ou seja, o que vemos subjacente nessa nova relação entre mídia e
Justiça é um trabalho profissional na construção desse elo.
Em agosto de 2007, a capa do
jornal O Globo trazia a seguinte manchete: “Ministros do STF combinam e
antecipam voto por e-mail” e, embaixo do título, havia trechos extraídos de
conversas dos ministros do Supremo pelo Messenger. Aquela era uma das primeiras
sessões do julgamento da Ação Penal n. 470, o famoso “Mensalão”. Enquanto o
procurador-geral da época, Antônio Fernando Souza, fazia sua sustentação oral,
o fotógrafo do Globo Roberto Stuckert Filho, com sua lente de superzoom,
capturou as imagens dos laptops dos ministros, daí foi fácil montar um
quadrinho encaixando os diálogos. O caso gerou um imenso burburinho na ocasião,
mas faço seu resgate aqui para levantar uma questão específica: cerca de quase
uma década depois, descuidos como esse por parte de qualquer ministro de uma
corte superior são pouquíssimo prováveis. Discussões fartas e até mesmo a mais
exaltada das brigas que acontece num julgamento televisionado contam hoje com
atores muito conscientes de seu papel diante das câmeras.
A visibilidade e a construção de
uma legitimidade via mídia, em especial ao olharmos pelo ângulo da transmissão,
não só ampliaram os canais de escoamento das notícias como também mudaram as
formas como elas são apresentadas. A transmissão direta dos julgamentos – ou da
informação, conforme queiram – faz que as instituições não se restrinjam a
tentar intervir na agenda da imprensa tradicional. Elas passam a difundir
diretamente para a opinião pública. Constituem seus próprios meios de
comunicação, como aponta o conceito de mídia das fontes de Francisco
Sant’Anna.2 Um dos primeiros efeitos disso, em instituições não eletivas, como
as que compõem o Sistema de Justiça, é atuar em uma construção da imagem mais
longeva, que não se baseia no voto, mas se centra em uma legitimidade de outra
ordem. Ao adentrar a seara da disputa política, ainda que seja um poder
contramajoritário, o Judiciário não pode prescindir de legitimar-se
publicamente. O caminho feito pelo TCU no caso das contas da presidenta Dilma é
uma espécie de exemplo periférico desse fenômeno que já é central em outras
instituições.
O efeito disso é que, além de
difundir diretamente a informação, as instituições podem recortá-la em um frame
mais adequado. Isso ocorre na edição de matérias, na disposição de uma grade de
programas e em todas as possibilidades de seleção editorial próprias dos
veículos de comunicação. É a função de gatekeeper3 que as instituições passam a
ter ao possuírem sua própria mídia. Ao separarmos todos os programas e todos os
conteúdos editoriais, que em essência passam por esse recorte ao se enquadrarem
num determinado viés, e focarmos o coração da programação das TVs
institucionais, vamos observar um efeito interessante. Na TV Câmara e na TV
Senado, é possível ver deputados e senadores se esmerando em discursos para uma
plateia vazia – cientes de que, mesmo que ninguém os escute naquele espaço,
estão chegando à casa dos eleitores pela transmissão. No caso dos julgamentos
da TV Justiça, observamos como cada ministro zela por seu voto tal qual uma declaração
pública de eloquência e saber jurídico.
Em termos práticos, as sessões
abertas de julgamento tornam difícil uma mudança de posição por parte dos
julgadores. Cada ministro chega ao plenário com seu voto pronto e, num esquema
de soma, chega-se à maioria que dá um veredicto. Por outro lado, as sessões
fechadas tendem a favorecer composições em que a opinião de um interfere na
apreciação de outro, sem o constrangimento de um olhar externo. Isso
facilitaria a possibilidade de mudar de posição, contribuindo para uma decisão
final mais ponderada e pactuada. Muitos que defendem essa tese sempre levantam
como referência a Suprema Corte dos Estados Unidos, na qual as sessões são
fechadas e nem de longe passam por algo semelhante a uma cobertura televisiva.
Fazer essa comparação, sobretudo
em termos teóricos, é um risco. É preciso lembrar que não há sistema bom ou mau
em si, mas aquele que se adapta melhor a determinada realidade e cultura. No
Brasil, não é possível separar as transmissões dos julgamentos da demanda por
transparência. O surgimento da TV Justiça, em maio de 2002, não está dissociado
da profissionalização dos setores de comunicação e de uma demanda represada por
maior transparência de um Judiciário enclausurado. Se por um lado há o perigo
da espetacularização, por outro as transmissões apostam numa maior “vigilância”
dos julgamentos, de seus atores e de sua argumentação. Contudo, seria ingênuo
imaginar que tudo é visto. Parte dos avanços da relação entre mídia e Justiça
vem da sofisticação das estratégias. Há um mundo por trás das câmeras, e todos
sabem que o que é ou não exposto tem impacto. Indo além: sabem que a forma
dessa exposição faz toda a diferença.
Atualmente, além das sessões do
Supremo, as do Superior Tribunal de Justiça, dos Conselhos de Justiça e do
Ministério Público, entre outros órgãos, estão disponíveis ao vivo na internet.
Longe da cúpula, a tendência é que tribunais de Justiça regionais e estaduais
sigam esse movimento, assim como as procuradorias do Ministério Público nos estados.
Nesse caso, o mimetismo dessa estratégia ocorre verticalmente, e o impacto logo
será visto em instituições menos acostumadas aos holofotes que trazem brilho,
mas também sua dose de cobrança. Essa relação dúbia que tão bem define os
efeitos da exposição serve ainda como metáfora para definir de forma ampla a
relação entre a mídia e a Justiça. Há aproximações e tensões, mas, é fato, ela
se estabelece num caminho sem volta. E, mesmo com os riscos do espetáculo, no
Brasil, os ganhos com a maior possibilidade de controle democrático das
instituições valem a pena. Afinal, quem se expõe acaba sempre tendo de
responder.
Grazielle Albuquerque
Grazielle Albuquerque é
jornalista, pesquisadora do Sistema de Justiça e doutoranda em Ciência Política
na Unicamp. Twitter: @grazalbuquerque.
Ilustração: Alves
1 A questão da burocracia é
central na obra do sociólogo alemão Max Weber, sendo detalhada no livro Ensaios
de sociologia.
2 Por meio do conceito de mídia
das fontes, Francisco Sant’Anna aborda como as instituições, ao passarem a
produzir e difundir seu conteúdo, tornaram-se fontes com sua própria mídia,
alterando as regras do jogo da relação midiática.
3 O conceito de gatekeeper tem
origem nos anos 1950 e, em síntese, aborda como a produção de conteúdo está relacionada
a filtros e escolhas, assim como no fluxo de produção a notícia passa por
várias portas até ser veiculada.
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