Sejamos claros: quem se coloca
contra o reajuste do salário mínimo na verdade quer a redução do poder de
compra da maioria absoluta dos brasileiros.
Paulo Kliass* // www.cartamaior.com.br
Ao longo dos últimos anos, alguns
substantivos e adjetivos acabaram ficando meio esquecidos, deixados de lado até
mesmo pela maioria dos analistas políticos progressistas. Determinadas
expressões de análise da dinâmica social, então, nem pensar mais em
utilizá-las. Pecado para uns, sintoma de abordagem jurássica pra outros, o fato
é que chamar as coisas e os fenômenos pelos nomes adequados passou a ser um
incômodo. Mencionar categorias como capitalismo, exploração da força de
trabalho ou mais-valia ficou, digamos assim, “démodé”.
Desde que Francis Fukuyama
decidiu solenemente que estava decretado o Fim da História, em razão da suposta
inevitabilidade histórica da supremacia do liberalismo após a queda do Muro de
Berlim e o fim da experiência dos países socialistas, a questão das
contradições do capitalismo deixaram de ser levadas a sério. E dentre elas, a
oposição fundamental entre os interesses dos trabalhadores e os dos
capitalistas. Sim, trata-se daquela contribuição essencial de Marx e Engels
para o estudo e a crítica da realidade social e econômica ao longo da História:
a famosa luta de classes.
O Decreto apenas regulamenta o
previsto na Lei.
Pois a divulgação do novo valor
do salário mínimo pela Presidenta Dilma acrescenta um novo ingrediente ao
debate. O decreto que fixa em R$ 880 a menor remuneração recebida em nosso País
apenas traduz em norma governamental o que está definido na lei n° 13.152, de
29 de julho de 2015, que prevê as regras para reajuste do salário mínimo para o
quadriênio 2016-2019. O aumento de 11% é ligeiramente superior à inflação
medida pelo INPC em 2015 somado ao pífio crescimento real do PIB em 2014.
Então, qual é o grande problema?
O fato é que esse tema reacende
os ânimos no Brasil das desigualdades. As gritarias e os esperneios vão desde
os que não se conformam com uma política pública definindo regras mínimas de
remuneração da força de trabalho até os argumentos mais sofisticados, que
invocam as fragilidade das contas públicas para condenar qualquer tipo de
vinculação dos gastos governamentais com o salário mínimo. Sejamos claros: quem
se coloca contra o reajuste do salário mínimo e a vinculação de despesas
sociais a tal valor, na verdade quer a redução do poder de compra da maioria
absoluta dos cidadãos brasileiros. Simples assim!
Essa lengalenga é antiga. Desde a
época em que o reajuste combinava com a comemoração do dia internacional de
luta dos trabalhadores em primeiro de maio até o período mais recente, em que o
aumento passou a valer desde o primeiro dia do ano civil. Quando Lula resolveu
definir uma regra legal e institucional para esse procedimento, os
catastrofistas já se colocaram em ação. Reajuste real do salário mínimo, é
óbvio, iria provocar desemprego e aumento do tão falado custo Brasil. As
empresas iriam quebrar e as contas da previdência social iriam explodir.
O salário mínimo subiu e o Brasil
não quebrou.
Pois o que se viu foi um profundo
desmentido da própria realidade sobre as teorias neoliberais e os modelitos do
financismo, que sempre se colocaram de um lado muito bem definido na luta de
classes. Os salários cresceram acima da inflação, a redução da desigualdade
avançou e a crise que vivemos atualmente não tem absolutamente nada a ver com a
(ainda baixa) remuneração do trabalhador. Quando a voz solitária do deputado
federal, e depois senador, Paulo Paim (PT-RS) propunha fixar o salário mínimo
em 100 dólares, todos achavam uma utopia ou uma tremenda irresponsabilidade.
Pois ele chegou a valer quase US$ 400 (na época mais brava da valorização
artificial da taxa de câmbio) e o Brasil tampouco quebrou por isso. Enquanto
escrevo este artigo, o novo menor salário do nosso trabalhador passa a
equivaler a US$ 220.
O argumento mais típico do
pensamento “casa-grande-e-senzala” não aceita que o grau de desigualdade
socioeconômica, que tão bem caracteriza nossas relações brasileiras, seja assim
resolvido por conta de ganhos reais de salários. Afinal, os serviços domésticos
e pessoais, dos quais nossas elites e parcela da classe média sempre estiveram
habituadas a usufruir, ficaram mais caros. Os aeroportos e centros comerciais
passaram a ser frequentados por gente que não está à altura desse tipo de
frequência. As camadas mais próximas da base da pirâmide se apresentaram nos
lugares com seus próprios veículos de passeio. As roupas e os acessórios de
grife, pirateadas ou não, passaram a ser de uso generalizado na sociedade. Ora,
como é que pode tanta audácia?
A retórica ganha um ponto de
maior sofisticação quando se trata de discutir os ganhos reais do salário
mínimo com base em seus efeitos macroeconômicos. Nesse caso, um dos focos do
debate se orienta para a impossibilidade da economia brasileira suportar esse
tipo de reajuste, em razão dos impactos sobre o tão falado “custo Brasil”. Uma
forma de organização da produção, do comércio e dos serviços como a nossa, não
teria condições de incorporar esse tipo de aumento, uma vez que os ganhos de
produtividade não foram alcançados em igual período. A última década e meia se
encarregou de demonstrar o oposto.
A mentira do rombo nas contas
públicas.
O outro aspecto macro
relaciona-se às finanças públicas. Nesse caso, a luta de classes ganha a
escaramuça do desequilíbrio fiscal e invoca a premência do ajuste das contas
governamentais. Afinal, a responsabilidade do déficit do Tesouro Nacional deve
mesmo ser atribuída à fortuna mensal recebida por mais de 33 milhões de
beneficiários da previdência social. Sim, pois 69% deles recebem até 1 salário
mínimo por mês, enquanto sobe para 84% a parcela dos que ganham 2 salários
mensais. Eles devem estar quebrando o Estado brasileiro!
Assim, o total de despesas
realizadas pelo INSS ao longo de 12 meses equivale a R$ 434 bilhões, valor bastante
inferior ao total de pagamento de juros da dívida pública federal - R$ 511 bi.
O déficit previdenciário refere-se apenas ao subsistema dos trabalhadores
rurais, uma vez que o subsistema dos trabalhadores urbanos ainda é
superavitário. E ainda assim vale registrar o argumento de que as necessidades
de financiamento dos agricultores não estão associadas a nenhum “desequilíbrio
estrutural” do regime previdenciário. Na verdade, trata-se de uma decisão
histórica da Assembléia Constituinte de 1988, que resolveu incorporar de forma
cidadã esse vasto setor de nossa sociedade, ao qual era proibido o acesso ao
sistema de previdência social até então.
E aqui a luta de classes
escamoteia dos meios de comunicação informações relevantes. Por exemplo, 99%
dos benefícios rurais são iguais a um salário mínimo. Além disso, a
regressividade de nosso sistema tributário faz com que as faixas de menor renda
sejam mais afetadas pelos impostos do que as do topo da pirâmide. Assim, mais
de 50% da renda mensal das famílias que recebem até 2 salários mínimos voltam
aos cofres públicos, sob a forma de tributação direta e indireta.
Já os que se demonstram
profundamente indignados com a política de valorização real do salário mínimo
contribuem com menos de 30% de sua renda para os tesouros federal, estadual e
municipal. Assim, o desequilíbrio estrutural fiscal mais gritante encontra-se
na conta de pagamento de juros da dívida pública. Ela apresenta um déficit
anual de R$ 511 bi e recolhe pouco de R$ 150 bi sob a forma de tributos sobre
essa massa de recursos públicos distribuídos às camadas mais ricas da
sociedade. Já os beneficiários da previdência social apresentam um déficit de
R$ 80 bi, dos quais R$ 40 bi retornarão ao caixa governamental sob a forma de
impostos.
O Globo sugere triplicar o
salário mínimo.
Mas o capitalismo funciona assim
mesmo desde os seus primórdios: uma dinâmica permanente de luta de classes. Por
intermédio de suas entidades, como o DIEESE, os trabalhadores buscam demonstrar
que ainda há muito espaço para avançar na melhoria das conquistas salarias (e
outras) dos trabalhadores. Já as classes dominantes se expressam por meio de
órgãos de imprensa, como o conglomerado dominado pela “famiglia” Marinho, cujo
editorial em 31 de dezembro passado tratou do tema. O texto alertava para os
riscos de rombo nas contas públicas e qualificava a política de valorização do
salário mínimo de “visão econômica tosca”. Ao lançar mão da ironia grossa,
suspeita de sua eficácia como instrumento para retomar o crescimento econômico.
E o distraído escriba d’O Globo
encerra sua peça com uma pergunta que deveria, na verdade, ser encarada como
meta pelos governos ao longo dos próximos anos: “se é assim, por que não
triplicar logo o salário mínimo?”. Eis, afinal, uma bela idéia apresentada pelo
jornalão.
À luta, companheiros!
* Paulo Kliass é doutor em
Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e
Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Créditos da foto: Rafael
Neddermeyer/ Fotos Públicas
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