terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Juristas ingleses dizem que Lava Jato afronta Estado de Direito

Agência Brasil
Para os analistas ingleses, vários padrões internacionais de direitos humanos, inclusive tratados dos quais o Brasil é signatário, são desrespeitados.

Pedro Canário – Conjur // www.cartamaior.com.br


O uso generalizado de prisões anteriores a um julgamento afronta os princípios mais básicos do Estado Democrático de Direito. Por isso, a forma com que a operação “lava jato” vem sendo conduzida pela Justiça Federal “levanta sérios problemas relacionados ao uso de prisões processuais, o direito ao silêncio e à presunção de inocência”.
A conclusão é de um parecer escrito por advogados da banca britânica Blackstone Chambers, sob encomenda dos escritórios que patrocinam a defesa dos executivos da Odebrecht na “lava jato”. Eles foram chamados a analisar as prisões processuais “no contexto da ‘lava jato’ [ou Car Wash, como traduziram]” e confrontá-las com os tratados internacionais e com as tradições do Direito Comparado. Para os advogados ingleses, a condução da operação tem violado os princípios da presunção de inocência e o direito a um “julgamento justo em prazo razoável”.
 
Entre os problemas que encontraram na condução da “lava jato”, apontam o “uso impróprio da intenção criminosa para demonstrar a gravidade dos crimes investigados”; “assertivas genéricas para basear o risco de novo cometimento de crimes para justificar a prisão”; “a referência a acordos de delação [plea bargains, em inglês] como justificativa para detenções”; “demora na concessão de Habeas Corpus, muito por causa de múltiplas e sequenciais ordens de prisão”; e a “cobertura adversa e desregulamentada das investigações pela imprensa”.
 
Cabe uma explicação: a Blackstone não é um escritório nos moldes brasileiros. No Reino Unido, a advocacia se divide em duas carreiras, os solicitors e os barristersSolicitors são os que representam os clientes em juízo.

Barristers são os profissionais responsáveis pelas sustentações orais, 
elaboração de pareceres e redação de petições e peças processuais mais
 importantes. Eles não se organizam em bancas de advocacia hierarquizadas, 
mas se juntam de maneira independente sob um mesmo “chapéu”, que
 chamam de chamber. A Blackstone é uma dessas organizações de barristers 
(clique aqui para ler mais sobre o assunto).
 
De volta à “lava jato”, segundo balanço do Ministério Público Federal, 

até 18 de dezembro do ano passado, 119 mandados de prisão foram 
expedidos, dos quais 62 foram de prisões preventivas, e 57, de 
temporárias. Outro balanço, também do MPF, diz que são 140 os 
denunciados e 119 os que tiveram a denúncia aceita pela Justiça, 
tornando-se réus. Outros 80 já foram condenados.
 
“Nessas circunstâncias, há preocupações reais de que houve falha 

na adequação do significado fundamental e histórico do direito à 
liberdade e à natureza expedita do remédio que representa o Habeas 
Corpus”, conclui o parecer da Blackstone. O texto é assinado pelos
 barristers Timothy Otty, Sir Jeffrey Jowell e Naina Patel.
 
Padrões internacionais
 
O parecer da Blackstone cita relatório da Comissão Interamericana 

de Direitos Humanos (CIDH) sobre o uso de prisões preventivas na 
América do Sul e na América Central, publicado em 2013, referente 
a dados coletados em junho de 2012. Proporcionalmente, o Brasil é 
o segundo país com mais prisões preventivas da região, com 191 mil
 pessoas encarceradas sem julgamento, ou 38% do total, até junho de 2012.
 
Para os barristers ingleses, os dados mostram que vários padrões 

internacionais de direitos humanos, inclusive tratados dos quais o
 Brasil é signatário, são desrespeitados. São eles:
 
Presunção de inocência: “Talvez a mais básica de todas as garantias 

judiciais do processo penal”. “Na prática, o respeito ao direito à 
presunção de inocência implica, como regra geral, que o acusado 
deve ficar em liberdade durante os procedimentos criminais”, diz 
o parecer, repetindo o estudo da CIDH.
 
Ônus da Prova: significa, de acordo com a tradição histórica do Habeas 

Corpus nos países da tradição do Direito dos Costumes (principalmente 
Reino Unido e Estados Unidos), dizer que cabe ao Estado justificar as 
razões pelas quais alguém deve responder a um processo.
 
Princípio da excepcionalidade: a prisão antes do julgamento só deve 

ser usada apenas como “último recurso em situações específicas” 
nas quais estejam comprovações de que “medidas menos restritivas 
seriam ineficazes em garantir os objetivos do processo”. De todo modo,
 diz o parecer, as prisões processuais devem ser “o mais excepcionais
 e curtas possível”.
 
Razões legítimas para prisão: “É obrigação do Estado não restringir

 a liberdade de um acusado além dos limites estritamente necessários 
para garantir que ele não impeça o desenvolvimento eficiente de uma 
investigação”, dizem os barristers, mais uma vez citando o estudo da CIDH.
 
O parecer da Blackstone ainda acrescenta que características pessoais

 dos investigados e acusados não podem servir de motivo para a prisão
 preventiva. “O significado é óbvio”, diz o texto. Isso quer dizer, para os
 advogados, não se pode justificar uma prisão com base no argumento 
de que o réu é rico ou que é acusado de crimes graves, como corrupção.
 “Algo mais concreto, como o risco de fuga ou de intervenção nas 
investigações, é necessário.”
 
Lá fora
 
O parecer da Blackstone foi usado como base para uma reportagem 

da revista britânica The Economist intitulada Justiça estranha 
[Weird Justice, no original]. A conclusão do texto é que, enquanto 
suspeitos e acusados são presos antes do julgamento, os condenados 
recebem penas brandas, como a prisão domiciliar ou a obrigação de
 comparecer em juízo uma vez por mês.
 
Economist relata as críticas feitas à “postura carismática” do juiz 

Sergio Moro, que conduz a “lava jato” em Curitiba, e critica a prisão 
de mais de 600 mil pessoas, 40% das quais ainda não foram condenadas.
 Diz, porém, que os motivos são “menos óbvios” do que os discutidos 
na “lava jato”: o problema é que, no Brasil, afirma a revista, um único 
juiz pode mandar alguém para a cadeia sem a anuência de um júri popular.
 
Publicidade ostensiva
 
O procurador da República Vladimir Aras não gostou da reportagem 

da Economist. Para ele, trata-se de trial by media, a versão em inglês de 
um conceito chamado “publicidade ostensiva”, conforme escreveu em 
seu perfil no Facebook. Aras é o coordenador de cooperação internacional
 da Procuradoria-Geral da República.
 
Na versão brasileira, publicidade ostensiva é uma estratégia de acusação

 identificada com o Ministério Público e, principalmente, com a Polícia 
Federal: diante da deflagração de uma operação policial, ou do início de
 um processo penal considerado importante, informações relacionadas 
aos casos, como trechos de depoimentos ou recortes de documentos, 
são enviados à imprensa para divulgação.
 
Entre jornalistas, isso é considerado uma estratégia para “criar um

 clima” em torno do caso. Como a imprensa, por natureza, é muito
 mais rápida que o Judiciário, quando o caso finalmente vai a julgamento, 
certa opinião geral e generalizada a respeito do caso já está 
formada — e pressionar o juiz em uma ou outra direção fica mais fácil.
 
O advogado Nabor Bulhões, que hoje defende Marcelo Odebrecht,

 já sustentou a tese quando foi assistente da acusação do delegado
 da PF Protógenes Queiroz por desvio de função e corrupção.
 Protógenes foi um dos responsáveis pela operação satiagraha. 
Para Nabor, o delegado usou de sua posição para vazar informações, 
muitas vezes falsas, a respeito das investigações e criar uma
 imagem negativa de Daniel Dantas, um dos investigados.
 
Publicidade ostensiva da defesa
 
Aras, em sua postagem no Facebook, considera que a contratação do

 parecer da Blackstone também é publicidade ostensiva, mas 
praticada pelos advogados da Odebrecht. “Embora ainda não 
seja comum entre nós, essa estratégia também pode servir de 
instrumento da defesa para sutilmente sugerir temas e visões 
a serem considerados pelos tribunais, por ocasião de julgamentos
 importantes”, escreveu, no dia 11 de dezembro.
 
Ele diz que o trial by media foi usado pela empresa de auditoria 

Arthur Andersen quando a responsabilidade dela no caso 
Enron foi julgada, em 2002. A companhia foi condenada, 
mas um recurso dela está pendente de análise pela Suprema 
Corte dos Estados Unidos.
 
“A companhia Odebrecht tem usado essa mesma estratégia no 

caso ‘lava jato’”, diz Aras, no Facebook. “Ao optar legitimamente 
por não colaborar com as investigações do MPF e da PF — diferentemente 
da Camargo Corrêa, da Setal Óleo e Gás e da Andrade Gutierrez —, 
a Odebrecht vem simultaneamente defendendo seu caso na mídia, 
por meio de publicidade em grandes jornais, notas públicas, 
campanhas em redes sociais e outras estratégias de marketing.”
 
O procurador reclama do fato de a Economist entrevistar o advogado 

Augusto de Arruda Botelho, presidente do Instituto de Defesa do 
Direito de Defesa (IDDD), “um dos advogados que atuam na defesa
 de Marcelo Odebrecht na ‘lava jato’”. “Isso é trial by media em prol 
da defesa, prática válida numa democracia como a nossa, mas que 
precisa ser explicitada para que todos saibam como se movimentam 
as grandes bancas nos maiores casos de criminalidade econômica 
e financeira.”
 
Cobertura ostensiva
 
O próprio parecer da Blackstone traz a discussão, ainda que de 

maneira incipiente. Segundo o texto, alguns fatores preocupam 
os autores. “A presunção de inocência pode ser violada tanto 
pela conduta de um tribunal quanto por comentários negativos 
a respeito de um réu feitos por agentes públicos para indicar 
uma visão concluída da culpa”, dizem os barristers.
 
Ainda segundo o parecer, “uma cobertura adversa da mídia 

também pode prejudicar o direito a um julgamento justo”. 
O texto cita três casos julgados pela Corte Europeia de Direitos 
Humanos em que a cobertura da imprensa é discutida.
 
O primeiro, conhecido como Abdulla Ali vs Reino Unido, 

foi julgado em 30 de junho de 2015, quando a Corte afirmou 
que “uma campanha virulenta da imprensa pode afetar 
negativamente um julgamento justo por meio da influência 
da opinião pública e, consequentemente, dos jurados 
chamados a decidir a culpa de um acusado”.
 
Naquela ocasião, a corte desconsiderou a hipótese de as paixões

 levantadas pela cobertura da imprensa contaminarem o julgamento. 
O fundamental ali era debater a postura dos agentes públicos 
responsáveis pela acusação.“É importante enfatizar o fato de que
se autoridades públicas foram a fonte de informações prejudiciais 
ao réu é relevante apenas para discutir se os leitores viram tais
 informações como mais autorizadas ou não por causa da fonte”, 
diz o acórdão. 
 
Como exemplo, os barristers citam as declarações do procurador 

da República Manoel Pastana à ConJur para defender o uso das 
prisões preventivas para forçar as delações premiadas. “Em crime 
de colarinho branco, onde existem rastros mas as pegadas não ficam, 
são necessárias pessoas envolvidas com o esquema para colaborar. 
E o passarinho pra cantar precisa estar preso”, disse, em novembro 
de 2014.
 
“O ponto focal deve ser a conduta desses agentes, e não a 

imparcialidade do tribunal. Portanto, apesar do viés autoritário 
do material publicado, é improvável que se chegue à conclusão 
de que um julgamento justo não é mais possível.” 
 
De acordo com o parecer, no entanto, o Conselho de Estado do 

Reino Unido, em 2003, considerou que a atenção dada a um caso 
de homicídio prejudicou o direito dos réus a ter um julgamento justo. 
“Suas excelências discutiram apontaram que a questão decisiva 
era se as dúvidas quanto à imparcialidade do julgamento foram 
objetivamente demonstradas. E o debate não se restringiu aos 
efeitos da publicidade do caso nos jurados, mas também 
incluiu o papel do juiz”, conclui o parecer.


Créditos da foto: Agência Brasil

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