Além de encarcerar Lula e caçar o
registro do PT, é necessário redesenhar o arcabouço institucional para que algo
como o 'lulismo' jamais possa se repetir.
André Kaysel* // www.cartamaior.com.br
O artigo “Impeachment e Reforma
do ‘Estado Camarão’, do cientista político Bolívar Lamounier, publicado em O
Estado de S. Paulo, deste domingo, 31/1/2016, é leitura obrigatória para todos
aqueles que desejam entender o programa e as intenções das hostes que se uniram
em torno do desígnio de derrubar a presidenta Dilma Rousseff, propósito, aliás,
que consta já do título do texto. Ecoando um artigo do professor Ricardo
Vellez-Martinez – “O Patrimonialismo de Longa Data”, publicado no mesmo jornal,
em 26/01/2016 - , Lamounier aprova o diagnóstico de seu colega colombiano de que o “mal” do Brasil, e de toda a América
Latina, diga-se de passagem, seria o “velho”, “corrupto” e “ineficiente” Estado
patrimonialista, sempre remetido ao
“legado ibérico”, com a obrigatória
remissão a Os Donos do Poder (1958), de Raymundo Faoro. Essa caricatura, já
difundida aos quatro cantos pelos liberais nativos, o professor Lamounier
arremata com essa expressão de gosto duvidoso: “Estado camarão”, em referência
à cabeça avantajada e de conteúdo indigesto desse crustáceo.
Não quero perder meu tempo com a
desconstrução dessa farsa historiográfica e sociolóogica, tão apreciada pelos
nossos colonizados mentais, de direita e de esquerda. Esse combate, o professor
Jessé de Souza já tem feito em diversos trabalhos, como em seu último A Tolice
da Inteligência Brasileira (2016). Quero sim me deter no prognóstico defendido
pelo politólogo mineiro: um ambicioso
programa de reforma do Estado, destinado a decepar de uma vez por todas a
pútrida cabeça do nosso camarão estatal. As medidas, em princípio, são nossas
velhas conhecidas: privatizações de tudo que se possa vender; eliminação da CLT
(sempre atribuída ao fascismo); descentralização administrativa e fiscal; voto
distrital; adoção do regime parlamentarista, etc. Enfim, o programa
liberal-conservador para o Brasil, feito sob medida para que nossas elites
possam figurar no “concerto das nações civilizadas”.
Porém, chama a atenção a defesa,
feita por Lamounier da redução do tamanho do parlamento. Oportunismo moralista
a parte, a proposta merece ser levada à sério, não tanto por uma questão
matemática ou contábil, mas, como deixa claro o próprio autor, pelos seus
fundamentos políticos. Segundo Lamounier, os constituintes de 1987/1988 teriam
se “deixado levar” pelo propósito de “ampliar a base da pirâmide política”,
inchando a representação parlamentar, o que teria convertido nosso Congresso em
uma “turba”, expressão explicitamente retirada do “Artigo Federalista”, no. 51
de James Madison (1788).
Madison, um dos founding fathers
dos Estados Unidos, escreveu, ao lado de Alexander Hamilton e John Jay, uma
série de artigos, conhecidos em seu conjunto como O Federalista, para defender
a instituição de uma República federativa e representativa no território das
outrora treze colônias britânicas. Lamounier associa Madison e o sistema
constitucional estado-unidense a uma “verdadeira democracia”, em contraste com
o que seria a “falsa democracia” brasileira. Porém, uma leitura minimamente
atenta de O Federalista revela que seus autores não tinham a menor intenção de
implantar uma democracia. Pelo contrário, em “O Federalista” 10, fica claro que
a República representativa por eles almejada deveria ser um obstáculo à
democracia, entendida como ameaça à minoria proprietária. Esse traço elitista e
mesmo aristocrático do pensamento dos foundig fathers é sublinhado por
estudiosos contemporâneos que estão muito distantes de posições “de esquerda”,
como o historiador Richard Hofstadter, em seu trabalho sobre o advento do
sistema partidário nos EUA, ou o teórico-político Bernard Manin, em sua obra
sobre a teoria da representação política.
Claro que um politólogo veterano
como Lamounier sabe disso muito melhor do que eu. Não o sabem seus crédulos e
ignorantes, embora presunçosos, leitores da classe média paulistana. A questão
é que, sob o rótulo de “democracia”, o que Bolivar quer implantar no Brasil é
seu contrário: um regime liberal-elitista, no qual a soberania popular seja
nada mais, nada menos do que um simulacro, um carimbo para o que o andar de
cima decida.
Mas não é precisamente isso que
ocorre hoje? Não o suficiente para os propósitos de nosso articulista e a
burguesia transnacional à qual ele serve. O fato de que a maioria dos
brasileiros tenha sufragado, nas últimas quatro eleições, um projeto político
popular que, ainda que não tenha posto
em questão os interesses do capital, é
alheio à classe dominante brasileira já
se tornou para eles insuportável. Assim, além de depor a presidenta,
encarcerar Lula e caçar o registro do PT, faz-se necessário redesenhar todo
arcabouço institucional do país para que
algo como o “lulismo” jamais possa se
repetir. Em síntese, o que um dos mais inteligentes e lúcidos representantes do
golpismo explicitou é que as hostes da reação desejam, mais do que uma troca de
guarda no poder, uma mudança de regime que transforme por completo a face do
Estado, enterrando a Constituição de 1988, a
“Era Vargas”, e qualquer vestígio de soberania nacional e popular que
possa haver ou ter havido entre nós.
Só há um problema. Como levar a
cabo esse programa depois de uma década e meia na qual as expectativas de
bem-estar e empoderamento da massa popular foram descomprimidas de maneira
inédita? O vizinho Maurizio Macri, novo ídolo dos liberal-conservadores
tupiniquins, já deu a resposta: com graus igualmente inéditos de autoritarismo
e repressão policial. Eis o grande não dito do artigo de Lamounier. As frações
hegemônicas da burguesia nativa e seus porta-vozes políticos e intelectuais já
puseram na conta da “reforma do Estado camarão” o uso da violência para mandar
a escumalha para os porões obscuros dos quais nunca devia ter saído.
O artigo de Lamounier, no
contexto da caça aberta a Lula e do pedido tucano de cancelamento do registro
do PT, deixa claro, se alguém no campo democrático ainda tinha dúvidas, que não
estamos lidando com gente que esteja disposta a chegar a um acordo: nada menos
do que o aniquilamento dos inimigos interessa. Hoje, a defesa da democracia
requer a clareza de que a direita cruzou, ou está disposta a cruzar, o ponto de
não retorno. Qualquer outro diagnóstico é ingenuidade ou má fé.
*Professor de Ciência Política da
Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA)
Créditos da foto: Ricardo Stuckert/Instituto
Lula
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