Acusada de defender a mesma
doutrina estrita dos jihadistas, a Arábia Saudita também enfrenta os mesmos inimigos
xiitas. A família real, dividida, incomoda seu aliado norte-americano e sofre
com as consequências da guerra de preços do petróleo que ela mesma lançou em
meados de 2014
por Ibrahim Warde // http://www.diplomatique.org.br/
Somos simplesmente incapazes de
montar operações militares. Tudo o que sabemos fazer é assinar cheques.”1 Chefe
da inteligência saudita quando as tropas soviéticas ocuparam o Afeganistão
(1979-1989), o príncipe Turki al-Faisal explicou assim a contribuição de seu
país ao jihad afegão. Na época, e no espírito do acordo de Quincy,2 a Arábia
Saudita financiava as operações secretas dos Estados Unidos em países
“comunistas”, como Angola e Nicarágua. Sem fazer, ou se fazer, perguntas
demais.
Durante a Guerra do Golfo
(1990-1991), sob a presidência de George H. Bush, as tropas sauditas lutaram ao
lado do Exército norte-americano – e de uma coalizão internacional – para
desalojar as forças iraquianas do Kuwait. Mais tarde, quando George W. Bush – o
qual forjou laços estreitos com os governantes sauditas na época em que
trabalhava na indústria petrolífera texana – sucedeu a seu pai, a entente
cordial continuou, apesar dos atentados de 11 setembro de 2001. O príncipe
Bandar bin Sultan, embaixador nos Estados Unidos entre 1983 e 2005 (e filho do
poderoso ministro da Defesa), ganhou o apelido de “Bandar Bush”.3 As muitas
críticas ao reino, acusado principalmente de exportar o extremismo sunita para
o mundo,4 para não falar nas violações aos direitos humanos, vinham então
sobretudo da imprensa e de membros do Congresso.
Desde a chegada de Barack Obama
ao poder, as relações ficaram menos calorosas. Diversas vezes, os sauditas,
aproximando-se de países como França, Reino Unido, Rússia e sobretudo China,
tentaram mostrar que poderiam emancipar-se da tutela norte-americana. O reino
participa ativamente do G20 e de outros fóruns internacionais. Especialmente, a
diplomacia do talão de cheques não é mais incompatível com iniciativas
militares autônomas ou ingerências maciças nos assuntos dos países vizinhos,
sobretudo quando a Arábia Saudita pretende tentar combater a influência
iraniana ou afirmar sua liderança no mundo sunita.
Membros influentes da família
real não mais hesitam em exibir suas queixas contra os Estados Unidos e até em
acusar Obama de inconsistência, se não de perfídia. A ladainha de reclamações é
longa: ele se desinteressou do Oriente Médio em proveito da Ásia; abandonou o
ex-presidente egípcio Hosni Mubarak e mostrou (pelo menos no começo) simpatia
pela Primavera Árabe; renunciou a intervir na Síria em 2013, embora o regime de
Bashar al-Assad tenha cruzado a linha vermelha com o uso de armas químicas.
Acima de tudo, porém, rompendo
com décadas de hostilidade e isolamento, ele negociou com o Irã, inimigo
histórico da Arábia Saudita. Desde então, emburramentos e flutuações de humor
se multiplicaram. Assim, após ser eleito, graças a um intenso lobby, membro não
permanente do Conselho de Segurança da ONU, o reino desistiu. Depois, diante da
Assembleia Geral, o ministro das Relações Exteriores, o príncipe Saud al-Faisal,
recusou-se a pronunciar seu discurso em protesto contra a inação das Nações
Unidas na Síria.
Embora amplamente antecipada, a
conclusão do acordo entre o Irã e o “P5 + 1”,5 em 2 de abril de 2015, produziu
um choque na monarquia. Desde a Revolução Iraniana de 1979, uma verdadeira
guerra fria, marcada pela demonização mútua, opôs de fato os dois vizinhos do
Golfo. Mas essa rivalidade é ainda mais antiga. Após a saída das tropas
britânicas da região, em 1971, a estabilidade do Oriente Médio se assentava, em
teoria, segundo os termos da “doutrina Nixon”, na estratégia dos “dois
pilares”, Irã e Arábia Saudita.6 Na realidade, era o xá que, até a Revolução de
1979, era considerado a verdadeira autoridade da região. Ele era o único que
gozava de certos privilégios, como o “cheque em branco” que lhe permitia
comprar dos Estados Unidos, sem limite nem controle do Congresso, todo
equipamento militar que desejasse.
Os líderes sauditas temem que a
recente aproximação entre Estados Unidos e Irã seja feita em seu detrimento.
Eles não se cansam de demandar “paridade estratégica” com o Irã, além de
garantias de segurança adicionais. Tão logo se concluiu o acordo, Obama
reafirmou “o compromisso inabalável” de seu país “em favor da segurança de seus
aliados do Golfo” e reiterou sua promessa de intervenção “em caso de agressão
externa”. Ele também foi rápido em convidar para Camp David, a fim de
tranquilizá-los, os líderes dos seis países do Conselho de Cooperação do Golfo
(CCG) – Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Kuwait, Catar e Omã.
Em um último movimento de irritação, o rei Salman recusou-se a ir. A visita do
soberano acabou ocorrendo em 4 de setembro. Em troca de garantias de segurança
adicionais, a Arábia Saudita voltou para os braços da única potência capaz de
oferecer-lhe a proteção desejada contra o Irã.
Esse retorno à razão explica-se
também pela queda do preço do petróleo desde a metade de 2014, além do acúmulo
de decepções. A emancipação (relativa) do reino em relação aos Estados Unidos
pode se justificar pela riqueza petrolífera acumulada após mais de uma década
de mercado em alta. Como mostraram os Saudi Leaks, o reino se tornara uma
potência regional, cortejada por todos.7 A diplomacia do talão de cheques
permitiu afirmar seu papel de liderança no mundo sunita e na contrarrevolução
árabe, enquanto Turquia e Catar fizeram o papel de patrocinadores da Irmandade
Muçulmana. Desde o golpe do marechal Abdel Fatah al-Sisi, em julho de 2013, ela
insiste em ajudar a economia egípcia a não desmoronar. De acordo com
estimativas do FMI, o custo desse apoio já chegaria a US$ 6,5 bilhões.8
Graças à renda do petróleo, o
regime parecia ser capaz, numa região em plena efervescência, de manter a paz
social e aliviar as tensões. O Estado de bem-estar ao estilo saudita traduz-se
em repasses frequentes de dinheiro à população: US$ 130 bilhões durante a
Primavera Árabe, US$ 29 bilhões na ascensão do novo monarca etc. Sem esquecer o
impacto dos megaprojetos: infraestruturas (portos, aeroportos, estradas,
ferrovias etc.), grandes iniciativas em áreas como educação, habitação e saúde;
investimentos em energia renovável e agricultura, a fim de diversificar a
economia e reduzir sua dependência do petróleo e das importações.
Paradoxalmente, a aposta mais
arriscada foi a política petrolífera do governo. Embora tradicionalmente a estratégia
saudita fosse estabilizar os mercados, a reunião da Organização dos Países
Exportadores de Petróleo (Opep) de 27 de novembro de 2014 marcou uma virada
radical. O preço do petróleo bruto, que nos meses anteriores subira para cerca
de US$ 115 por barril, caiu para US$ 70. Citando a necessidade de lutar contra
o gás de xisto norte-americano, o ministro do Petróleo, Ali al-Naimi, aprovou
uma política de guerra de preços: em vez de fechar as válvulas, ele achou
melhor inundar o mercado, pois, uma vez que os perfuradores dos Estados Unidos
fossem neutralizados, os preços voltariam a subir.9 Essa política deveria levar
também a um importante e vantajoso efeito colateral: sufocar a economia do
inimigo iraniano. Mas nada disso aconteceu. A queda dos preços não resultou nem
na alta ulterior nem na neutralização dos produtores de gás de xisto. E as
negociações com o Irã continuaram muito bem, com a república islâmica apostando
tudo no impacto econômico da suspensão do embargo.
Queda do petróleo e ajuste fiscal
Em agosto de 2015, o preço do
petróleo bruto caiu abaixo da marca de US$ 40, refletindo o excesso de oferta e
as preocupações com a economia chinesa. Mas Riad precisa do barril a US$ 106
para equilibrar seu orçamento.10 Então é necessário cortar gastos. Quais? A
lista é longa: aos compromissos assumidos quando os preços do petróleo estavam
altos somaram-se grandes gastos militares – um efeito do medo causado pela
reintegração do Irã no concerto das nações. Será possível continuar a comprar a
paz social?
Cabe ao novo monarca, Salman bin
Abdulaziz al-Saud, de 79 anos, que sucedeu a seu meio-irmão Abdullah, falecido
em 23 de janeiro de 2015 aos 90 anos, resolver esses dilemas. O novo “Guardião
das Duas Mesquitas Sagradas” (seu título oficial) apressou-se, como de costume,
em garantir que continuaria no caminho traçado pelo falecido. Mas ele tenta dar
garantias aos conservadores, preocupados com o reformismo, embora cauteloso, de
seu antecessor. Uma de suas primeiras decisões foi substituir o chefe da polícia
religiosa, conhecida como “Comissão para a Promoção da Virtude e Prevenção do
Vício”, que os conservadores consideravam muito tímida. A vice-ministra da
Educação, a mulher em mais alta posição no governo, cuja nomeação, em 2009, foi
saudada como um sinal de progresso, teve o mesmo destino.11
No entanto, a decisão mais
controversa do novo soberano foi mexer na hierarquia política. Uma grande
novidade, em um país acostumado à gerontocracia: dois homens pertencentes à
“terceira geração” – a do neto do fundador Abdulaziz, na qual os aspirantes se
contam às dezenas – subirão ao trono quando chegar a hora. O ministro do
Interior, Mohamed bin Nayef, de 55 anos, nomeado vice-príncipe herdeiro na
coroação de Salman, foi promovido a príncipe herdeiro em lugar do príncipe
Muqrin, um dos últimos sobreviventes da “segunda geração” – sendo este,
portanto, descartado. E o ministro da Defesa, Mohamed ben Salman, de 30 anos,
filho do rei (e chefe do gabinete real), tornou-se o segundo na linha de
sucessão. Enquanto o primeiro se encarrega da luta contra o terrorismo, o
segundo supervisiona os assuntos militares e econômicos. Essa revolução
palaciana marca o retorno do clã Sudeiri, que por muito tempo controlou o
grosso da máquina do Estado, sobretudo os ministérios do Interior e da Defesa.
Liderada pelo reino com a ajuda
de oito países sunitas12 (e apoio das potências ocidentais e da ONU), a Guerra
do Iêmen deveria ser oportunidade para esses novos homens provarem seu valor.
Mas o objetivo declarado – acabar com a rebelião huti apoiada pelo Irã e
recolocar no poder o presidente eleito Abd Rabo Mansur Hadi – está longe de ser
alcançado. E, acima de tudo, o custo humano é desastroso: 5 mil mortos, um
terço deles composto de civis.
Pode-se imaginar que a escalada
bélica vai prosseguir, o que deixará muita gente feliz nas capitais ocidentais.
Só para os Estados Unidos, as encomendas militares chegariam a US$ 90
bilhões.13 A França também aumentou consideravelmente suas vendas.14 Mas uma
política que faz a felicidade dos fornecedores de armas estrangeiras não é
necessariamente bem recebida no reino, onde o novo soberano e os dois príncipes
herdeiros são muito criticados, inclusive por sua própria família.
Multiplicam-se os pedidos de abdicação do monarca – que dizem estar com doença
de Alzheimer – e interdição de príncipes herdeiros.15 O tumulto em Mina, perto
de Meca, em 24 de setembro, durante a peregrinação (hajj) anual, que teria
feito mais de 2 mil mortos, também não ajudou. Essa catástrofe, a mais mortal
da história moderna da peregrinação, pareceu mais um exemplo da incompetência
da equipe no poder.
Ibrahim Warde é professor
associado na Universidade Tufts (Medford, Massachusetts, EUA). Autor de
Propagande impériale & guerre financière contre le terrorisme,
Marselha-Paris, Agone - Le Monde Diplomatique, 2007.
1
Steve Coll, Ghost Wars: The Secret History of the CIA, Afghanistan and bin
Laden, from the Soviet Invasion to 10 September 2001 [Guerras fantasmas: a
história secreta da CIA, Afeganistão e Bin Laden, da invasão soviética a 10 de
setembro de 2001], Penguin, Nova York, 2004.
2 Selado em 14 de fevereiro de
1945 no cruzador USS Quincy entre o rei Abdulaziz e o presidente Franklin
Roosevelt, o acordo garantia a proteção do reino contra qualquer ameaça
externa, em troca do fornecimento energético norte-americano. Ele foi retomado
em 2005 por George W. Bush.
3 David B. Ottaway, The King’s
Messenger: Prince Bandar bin Sultan, and America’s Tangled Relationship with
Saudi Arabia [O mensageiro do rei: o príncipe Bandar bin Sultan e as confusas
relações entre América e Arábia Saudita], Walker and Company, Nova York, 2010.
4 “Avatars of checkbook diplomacy: From the
Afghan jihad to the Arab Spring” [Avatares da diplomacia do talão de cheques:
do jihad afegão à Primavera Árabe], Fletcher Security Review, v.2, n.1, fev.
2015.
5 Os cinco membros permanentes do
Conselho de Segurança das Nações Unidas – ou seja, China, Estados Unidos,
França, Reino Unido e Rússia – mais a Alemanha.
6 Joseph A. Kechichian, Faysal:
Saudi Arabia’s King for All Seasons [Faisal: rei da Arábia Saudita em todas as
estações], University Press of Florida, Gainesville, 2008.
7 Ver Marc Lynch, “How leaked
Saudi documents might really matter” [Como os documentos sauditas vazados podem
realmente ter importância], The Washington Post, 21 jun. 2015.
8 “Egypt, Yemen are top
recipients of Saudi aid” [Egito e Iêmen são os principais destinatários da
ajuda saudita], Arab News, Jidá, 9 maio 2015.
9 Alex Lawler, Amena Bakr e
Dmitry Zhdannikov, “Inside OPEC room, Naimi declares price war on US shale oil”
[Na sala da Opep, Naimi declara guerra de preços ao gás de xisto dos Estados
Unidos], Reuters, 28 nov. 2014.
10 Ambrose Evans-Pritchard,
“Saudi Arabia may go broke before the US oil industry buckles” [Arábia Saudita
pode quebrar antes que a indústria de petróleo norte-americano caia], The
Telegraph, Londres, 5 ago. 2015.
11 Yaroslav Trofimov, “New Saudi
monarch brings major change at home: King Salman nudges country back in more
conservative direction” [Novo monarca saudita faz grandes mudanças em casa: rei
Salman recoloca país em uma direção mais conservadora], The Wall Street
Journal, Nova York, 29 abr. 2015.
12 Bahrein, Catar, Egito,
Emirados Árabes Unidos, Jordânia, Kuwait, Marrocos, Paquistão e Sudão.
13 Christopher M. Blanchard, “Saudi Arabia:
Background and US relations” [Arábia Saudita: antecedentes e relações com os
EUA], Congressional Research Service, Washington, 8 set. 2015. Disponível
em: www.fas.org.
14 Dominique Gallois, “Ventes
d’armes: la stratégie gagnante de la France” [Venda de armas: a estratégia
vitoriosa da França], Le Monde, 21 ago. 2015.
15 Hugh Miles, “Saudi Arabia:
Eight of king Salman’s 11 surviving brothers want to oust him” [Arábia Saudita:
oito dos onze irmãos vivos do rei Salman querem derrubá-lo], The Independent,
Londres, 24 out. 2015.
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