O resultado da crise da Petrobras no Brasil levou a uma
reestruturação da empresa que vem se refletindo no aprofundamento da
privatização e internacionalização da mesma, que passará a ser diretamente
controlada pelas grandes multinacionais do setor, de acordo com seu plano de
negócios 2015-2019
por Andrey Cordeiro Ferreira // http://www.diplomatique.org.br/
A crise financeira global do capitalismo em 2008 desencadeou
uma nova corrida pelos recursos naturais e energéticos no mundo, que se
manifesta na geopolítica, economia e ecologia política. Essa corrida pode ser
percebida por algumas tendências aparentemente desconexas:
1) elevação dos preços dos recursos naturais e primários no
mercado internacional, dos investimentos externos diretos (IED) e lucratividade
das empresas desse setor;
2) eclosão de conflitos dentro dos Estados e entre Estados
(guerras convencionais e civis relacionadas a recursos naturais, com a
fragmentação e descentralização de alguns Estados e a centralização de poder em
outros; conflitos diplomáticos, governamentais e entre elites; conflitos entre
movimentos sociais, camponeses e povos indígenas);
3) luta pelo controle dos processos de produção de energia e
fluxos energéticos, especialmente a tentativa de colocar os mesmos sob controle
dos mercados e das grandes corporações dos países centrais.
Iremos mostrar aqui como fatores de economia política,
geopolítica e meio ambiente se combinam para produzir uma luta (entre grandes
potências, corporações, Estados nacionais, povos e classes sociais) que aparece
aos nossos olhos de forma relativamente enigmática.
Crise e corrida pelos recursos naturais
A luta pela energia e pelos recursos naturais se
intensificou depois da crise do capitalismo iniciada em 2008. Essa luta pode
ser observada por meio de diferentes estratégias e é condicionada por uma série
de fatores: 1) tendência de elevação dos preços internacionais das commodities,
especialmente da energia; 2) disputa pela redefinição do controle das reservas
de recursos naturais; 3) embate pelo controle das empresas de energia. Essa
luta se desdobrou em diferentes estratégias políticas e empresariais, desde a
intervenção militar direta, passando pelo apoio a forças militares locais em
guerra civil, até campanhas políticas de desestabilização de governos.
Os dados mostram que a crise de 2008 não criou a tendência
de expansão da indústria extrativa e energética, especialmente petróleo e gás,
mas deu a ela um novo impulso. Para demonstrar nosso argumento vamos considerar
a atuação de um ator-chave, os Estados Unidos. Uma boa forma de entender esse
processo é observando os Investimentos Externos Diretos (IED) dos Estados
Unidos no mundo.
Em 1999, os setores de manufatura e químicos lideravam os
IED dos Estados Unidos. Entre 2001 e 2005, o setor de indústria extrativa
(mining) cresceu no mesmo ritmo que o de química, mas, a partir de 2006, o
setor extrativo tomou maior impulso e tornou-se o segundo setor mais importante
dos IED, tendência que se manteve mesmo depois da crise de 2008 (ver Figura 1).
Ou seja, o investimento na indústria extrativa passou a ser o segundo mais
importante da economia dos Estados Unidos. Por outro lado, tal indústria
cresceu paralelamente ao crescimento do setor de manufaturados, o que nos
obriga a lembrar que energia e recursos naturais são produtos intermediários e
seu crescimento está condicionado pela expansão industrial e produção de bens
finais.
Figura 1- IED dos Estados Unidos por setor de atividade
econômica
Quando consideramos os Investimentos Externos Diretos na
indústria extrativa, vemos que desde o final dos anos 1990 existe uma tendência
de crescimento (saindo de US$ 70 bilhões naquele ano para algo em torno de US$
140 bilhões em 2007). Na sequência, os investimentos totais na indústria
extrativa saem de US$ 140 bilhões, em 2007, para US$ 220 bilhões, em 2014; os
investimentos em petróleo (petroleum) também crescem, saindo de US$ 140 bilhões
e alcançando cerca de US$ 210 bilhões, em 2014; enquanto os investimentos em
extração de óleo e gás (oil and gas extraction) saem de US$ 90 bilhões, em
2007, para US$ 120 bilhões, em 2014 (ver Figura 2).
Figura 2– IED nos subsetores da indústria extrativa
A figura 3 mostra uma mudança de distribuição da localização
desses IED por região. Em 2002, a Europa era o principal destino dos IED dos
Estados Unidos. Até 2008 essa tendência se manteve, mas, depois da crise, a
América do Sul deu um salto, chegando, em 2010, a ficar muito próxima da Ásia e
do Pacífico e acima da Europa. Em 2011, a África superou a América do Sul que,
por sua vez, concentrou ainda importantes investimentos em 2014.
Figura 3- IED dos Estados Unidos por subsetor da indústria
extrativa
O que podemos afirmar conclusivamente é que a crise de 2008
não interrompe certas tendências verificadas no início da chamada globalização
nos anos 1990. Nesse sentido, observa-se: 1º) um forte crescimento, que se dá
de forma paralela, dos investimentos em manufatura e em indústria extrativa;
2º) a partir da crise de 2008 ocorre um aprofundamento dos IED no setor de
extração, petróleo e energia, que provocam umboom na economia internacional;
3º) a substituição da Europa pela Ásia em termos de principal destino dos IED
dos Estados Unidos, ao longo dos anos 2000, e a retomada pela América do Sul,
assim como pela África, de uma importante posição em relação aos investimentos
externos. Em termos de economia política, a crise de 2008 não apenas não
reverteu como consolidou tais tendências e diversificou a alocação geográfica
dos Investimentos Externos Diretos.1
A quarta guerra mundial? O neoimperialismo e suas duas
táticas
O eurocentrismo é mais que um sistema de ideias ou uma
cosmovisão que afirma a centralidade das sociedades de origem europeia na
história e evolução humana. É um modo de conhecer, viver e narrar essa suposta
superioridade na história, na ciência, em suma, em todos os domínios. Pode ser
a exaltação das sociedades europeias, da sua estética, fisionomia ou a
invisibilização dos demais povos, ou essas várias coisas ao mesmo tempo.
Isso se reflete na forma como se define o conceito de
“guerra mundial” e a história política da humanidade: “guerra mundial é guerra
na qual estão engajadas as principais nações”. O mundo todo pode estar em
guerra, mas se as superpotências ou “nações mais importantes” não estiverem,
não se considera que haja uma guerra mundial. É por isso que a guerra fria não
é contabilizada como uma guerra mundial.2
O arcabouço epistêmico do eurocentrismo não é capaz de fazer
uma leitura satisfatória da geopolítica e da economia política mundial no final
do século XX e início do século XXI. Uma leitura antieurocêntrica surgiu
curiosamente de dentro de um dos conflitos armados na América Latina, sendo
realizada pelo Subcomandante Marcos no texto “A quarta guerra mundial”. Nesse
texto, expondo a cosmovisão zapatista, ou seja, de povos indígenas-camponeses
que vivenciavam uma guerra de libertação, ele propôs uma redefinição da
história: o mundo não viveria sob a ameaça da terceira guerra mundial, pois, na
realidade, já vivenciava a “quarta guerra mundial”.
Nessa periodização, fundada numa epistemologia periférica, a
terceira guerra mundial foi a guerra fria que perdurou entre 1945-1989: nela as
superpotências se enfrentaram indiretamente, por meio de outros países.A quarta
guerra mundial começou com a queda do Muro de Berlim e fim da URSS entre
1989-1991 e trouxe, segundo o Subcomandante Marcos, diferenças substanciais. Em
primeiro lugar, as guerras mundiais anteriores foram centradas na guerra convencional
entre Estados nacionais. Na quarta guerra mundial, com a supremacia e
unipolaridade relativa dos Estados Unidos no sistema interestatal, as guerras
convencionais deram lugar às guerras irregulares. Em segundo lugar, a política
das guerras, em razão do desaparecimento dos antigos inimigos, se modificou: da
guerra ideológica entre sistemas (nazismo x democracia e depois capitalismo x
socialismo), passamos a formas difusas como a “guerra ao terror” e a “guerra às
drogas”, em que o inimigo passou a ser representado por “redes
descentralizadas”. Assim, a quarta guerra mundial teria continuidades e
mudanças em relação às anteriores. Os fatores constantes seriam: 1º) conquista
e mudança na organização territorial ou do mapa-múndi. Isso aconteceu ao final da
Guerra Fria e também com a globalização; 2º) elas só terminam com destruição
total do inimigo (como ocorreu com o nazismo, o socialismo); 3º) elas implicam
na “Administração da Conquista”.
Por outro lado, o Subcomandante Marcos chama a atenção para
o fato de que a globalização, que acompanha a quarta guerra mundial, implicou
num paradoxal processo de homogeneização e fragmentação. Mais uma vez os mesmos
casos ilustram: a difusão das instituições da democracia ocidental foi
acompanhada da divisão de países como Iraque, Afeganistão e Líbia,
representando esse duplo movimento de fragmentação e mudança do mapa-múndi e
organização territorial. O “inimigo difuso” permitiu que este pudesse ser
escolhido situacionalmente, identificado com um Estado ou governo a ser
destruído.3
No nosso entendimento, os processos que hoje estão em curso
no sistema-mundo podem ser compreendidos por estas lentes: hoje, o imperialismo
se organiza por meio da luta pelo controle de recursos naturais, especialmente
energéticos, que se dá num complexo quadro social que podemos chamar sem
exagero de quarta guerra mundial.
A geopolítica dos recursos naturais e energéticos,
entretanto, modifica-se bastante. Concomitantemente à expansão dos IED, existe
um aprofundamento da competição internacional entre empresas e o uso de
diversas estratégias dos países centrais, especialmente da intervenção militar
direta, indireta e ação política indireta por meio de oposições a governos
dentro de determinados países. Nesse sentido, se considerarmos América Latina e
África, vemos que foram palco não somente da exportação de capitais, mas também
da intensificação de conflitos e rebeliões populares, de conflitos
governamentais e guerras civis.
Se fizermos uma cronologia dos conflitos, podemos
identificar dois tipos: os conflitos militares dentro dos Estados africanos em
regiões que receberam muito investimento e que tiveram como resultado guerras
civis e renegociação dos contratos que envolvem acesso aos recursos
energéticos; os conflitos empresariais e governamentais (entre oposição e
situação nos órgãos de governo), que dividiram as posições sobre política
econômica, com destaque para o tema do petróleo e energia. Vejamos a cronologia
abaixo:
2011: Derrocada do governo Kadafi. Guerra civil e divisão da
Líbia. Hoje milícias controlam diversas cidades importantes, mas a produção de
petróleo foi retomada. Rebeliões populares na Síria contra o governo resultaram
em repressão e depois na criação de forças armadas de oposição ao governo.
Estados Unidos e União Europeia se colocam favoráveis à derrubada de Bashar
al-Assad, enquanto Rússia e Irã apoiam o mesmo.
2012: Na República Democrática do Congo, o início da
exploração de Petróleo pela companhia inglesa SOCO coincide com a criação do
M23 e o início de mais uma guerra civil envolvendo desta vez a exploração de
petróleo no Parque Nacional do Virunga;
2014: Na Venezuela, cresce o movimento de oposição ao
governo Maduro, mesmo ano em que Exxon Mobil ganha processo bilionário contra a
PDVSA, recebendo indenização pelas estatizações realizadas no governo Hugo
Chávez.
2014/15: No Brasil, inicia-se uma crise na Petrobras por
conta do processo contra a empresa nos Estados Unidos que resulta em perda
bilionária. Logo depois, a Operação Lava Jato investiga casos de corrupção
envolvendo a Petrobras, que será um dos principais estopins da “campanha pelo
impeachment”, organizada pelo PSDB-PMDB, com apoio dos Estados Unidos. A
Petrobras nesse contexto é pressionada a realizar um plano de negócios que
prevê privatização de patrimônio e desinvestimento.
As principais intervenções militares depois da crise de 2008
ocorreram na Líbia e Síria, países estratégicos na geopolítica do petróleo e da
energia. Estes foram países que vivenciaram ao mesmo tempo revoltas populares
durante a Primavera Árabe. Nigéria e Congo enfrentam guerras civis com
intervenção indireta de potências estrangeiras. Na Líbia, a derrubada do antigo
governo desenvolvimentista e a morte de Kadafi, em 2011, desencadearam uma
guerra civil que perdura até hoje; depois de 2008 a Ocidental Petroleum tentou
expandir suas operações na Líbia, juntamente com a empresa italiana de petróleo
e gás, ENI. Ou seja, podemos ver que a partir de 2008 houve um aumento
exponencial de batalhas, protestos e violência contra populações civis no
continente africano.
As grandes companhias de petróleo estão envolvidas em ações
cada vez mais nebulosas na África, incluindo o estreitamento de relações com
organizações paramilitares e a intensificação dos conflitos armados e da
violência contra a população civil. A Shell, na Nigéria, e a SOCO, no Congo,
foram acusadas publicamente de estarem envolvidas no financiamento de guerras
civis, todas elas motivadas pela luta pelo controle e exploração dos recursos
naturais, com destaque, nesses dois países, para o petróleo.
Figura 4 – Conflitos relacionados aos recursos naturais na
África 1997-2014. Fonte: Acled Dataset
Brasil e Venezuela, os produtores e detentores das maiores
reservas de petróleo da América Latina, vêm enfrentando movimentos internos de
desestabilização visando o impeachment ou a mudança de política econômica
(tendo como alvos, no Brasil, o PT e, na Venezuela, o PSUV). Em 2014, o governo
da Venezuela lançou formalmente uma acusação contraum grupo de opositores
venezuelanos – incluindo a deputada destituída María Corina Machado – e o
embaixador dos Estados Unidos na Colômbia, Kevin Whitaker, de planejarem um
golpe de Estado e uma tentativa de assassinato do presidente Nicolás Maduro.
Por sua vez, os Estados Unidos classificaram de “absolutamente falsas” e “sem
base” as acusações de autoridades venezuelanas contra o embaixador americano.4
No caso do Brasil, uma crise na Petrobras, espinha dorsal da
exploração energética no país, foi desencadeada em parte nos Estados Unidos.
Hoje, as denúncias de corrupção na Petrobras estão praticamente concentradas no
caso da “Operação Lava Jato”, mas na realidade essa operação ganhou impulso e
teve como desdobramentos principais os fóruns judiciais dos Estados Unidos: em
2014, a Astra Oil, parceira da Petrobras na aquisição da refinaria Pasadena, no
Texas/Estados Unidos, entrou com uma ação na justiça alegando que a empresa
brasileira deveria adquirir a sua parte (50% das ações) da refinaria em razão
de cláusulas contratuais. A aquisição da refinaria de Pasadena acabou custando
US$ 1,18 bilhão à petroleira nacional, mais de 27 vezes o valor que a Astra Oil
teve de desembolsar inicialmente. Essa questão se refletiu diretamente no
Brasil e nas pressões para reestruturação da empresa que resultaram no Plano de
Negócios da Petrobras anunciado em 2015. No final de 2014, fundos de pensão
entraram com ações contra a Petrobras em Providence e Nova York, nos Estados
Unidos. Ou seja, a judicialização da gestão das ações da Petrobras nos Estados
Unidos tem sido um dos principais mecanismos de apropriação de recursos da
mesma. O resultado da crise da Petrobras no Brasil levou a uma reestruturação
da empresa que vem se refletindo no aprofundamento da privatização e
internacionalização da mesma, que passará a ser diretamente controlada pelas
grandes multinacionais do setor, de acordo com seu plano de negócios
2015-2019.
Nesse sentido, a geopolítica pode ser melhor compreendida a
partir das duas políticas do que chamamos de neoimperialismo: 1ª) tomada do
controle estatal dos recursos naturais, especialmente energia e petróleo, nos
países periféricos, pelos Estados centrais e/ou suas corporações; 2ª)
expropriação por meio da centralização como uma forma que precede ou sucede a
política anterior, retirando o controle comunitário e local sobre os recursos,
eliminando direitos territoriais ou restringindo os mesmos (no que podemos
chamar, seguindo a tradição crítica latino-americana de ciências sociais, de
colonialismo interno), visando à expansão de um modelo de desenvolvimento
centrado no extrativismo (por sua vez, este expansionismo, em países como o
Brasil, pode ser denominado de subimperialista, uma vez que expandiu capitais
de corporações estatais e privadas para outros países e continentes, como
ocorreu com a Petrobras e as grandes construtoras). No caso de determinados
países da África e do Oriente Médio, esse controle se fez pela destruição dos
próprios Estados nacionais e/ou sua fragmentação; já nos países da América
Latina, a tomada de poder vem se dando pelo enfraquecimento do controle
estatal-governamental sobre os recursos energéticos, que ironicamente
promoveram a centralização do poder e o enfraquecimento do controle dos povos e
comunidades camponesas e indígenas sobre tais recursos, centralização essa que
foi condição necessária para a expansão do poder do capital monopolista das
corporações e do próprio imperialismo. Assim, no caso da América Latina, essa
acomodação estrutural ao regime de acumulação e aos interesses dos Estados
Unidos parece permitir um deslocamento da intervenção das formas militares para
o jogo político promovido pelas oposições internas e pela própria
judicialização dos conflitos envolvendo empresas multinacionais de energia em
tribunais dos Estados Unidos e Europa.
O ponto principal a ser observado dessa geopolítica é a
disputa pelo controle dos recursos naturais e energéticos, especialmente de
reservas e empresas estatais de energia. O mapa abaixo nos permite dimensionar
o que está em jogo na luta pelo controle das empresas de energia como a
Petrobras e a PDVSA. O mapa mostra o número das maiores empresas de energia do
mundo. Vemos que são poucos os países que atuam no mercado de petróleo e
energia. O mundo anglo-saxão (Estados Unidos, Inglaterra e Canadá) detém 18 das
23 maiores empresas, com destaque para os Estados Unidos. Submeter a Petrobras
e a PDVSA às políticas imperialistas mencionadas significa criar um
quase-monopólio nas Américas e ampliar o controle da exploração de reservas
importantíssimas em termos mundiais, já que as maiores reservas comprovadas
estão na Venezuela.
Figura 5– Mapa das maiores empresas de petróleo por país,
segundo dados da Forbes 2015
Para concluir, podemos dizer que a crise de 2008 consolidou
e mesmo acirrou uma tendência de luta pelo controle dos recursos naturais,
especialmente energéticos. Essa tendência da economia se expressou em termos
geopolíticos numa luta e competição internacional entre empresas de energia e
petróleo, que se articula a movimentos de oposição aos governos estatizantes do
setor energético na América Latina e à realização de intervenções militares
diretas e indiretas no Oriente Médio e África, com o recrudescimento das
guerras civis e da fragmentação dos Estados. A fragmentação de países e a
concorrência entre empresas monopolistas compõem, portanto, esse quadro da
quarta guerra mundial.
Nesse sentido, é fundamental romper com a leitura
eurocêntrica da geopolítica internacional. O eurocentrismo conduz a uma leitura
que reduz os conflitos acima a “intrigas palacianas” ou guerras entre elites
(como no caso do Brasil, em que se tentou reduzir os conflitos apenas a uma
luta PT versus PSDB), ou a disputas entre Estados e intervenções “externas”
maquiavélicas. Como procuramos demonstrar, os processos de descentralização ou
fragmentação dos Estados periféricos em determinadas regiões, como África e
Oriente Médio, são acompanhados por outros de centralização do poder estatal e
colonialismo interno em países da América Latina, e ambos são entrecortados por
conflitos étnicos, de classe e campo-cidade. Logo, o conflito interestatal e o
conflito entre diferentes elites não são uma chave suficiente para entender a
geopolítica internacional.
O imperialismo hoje se manifesta por meio da exportação de
capitais monopolistas que tendem a produzir conflitos armados e/ou oposição
política dentro de Estados da periferia. Esses conflitos assumem diferentes
formas em função da relação previamente estabelecida no sistema interestatal;
países como o Brasil, se inseriram no ciclo de expansão capitalista tentando
combinar o subimperialismo com o colonialismo interno. No caso da África e
Oriente Médio a situação é distinta. Alguns Estados nacionais foram induzidos à
fragmentação por meio de guerras civis com intervenção estrangeira e colocados
numa posição de neocolônias, seja formalmente, como no caso do Iraque em que
ocorreu uma conquista territorial, ou de profunda dependência e subordinação,
como no caso de Líbia e Congo. Na América Latina, os chamados governos
progressistas se apoiaram no colonialismo interno e/ou subimperialismo, sendo
preciso entender como muitas vezes projetos desenvolvimentistas nacionais
auxiliam na centralização e expropriação necessárias à expansão do imperialismo
que hoje os desestabiliza. Na África e Oriente Médio, o neocolonialismo foi a
principal forma de estruturação das relações e geopolítica.
A dialética da energia: fome, crise ambiental e resistências
O que é a energia? Que recurso é esse, objeto da luta
global? Podemos dizer que a energia é uma categoria complexa, essencialmente
dialética. Na teoria física moderna, especialmente na termodinâmica, “energia é
a capacidade de realizar trabalho”. Desse ponto de vista energia é trabalho.
Quando falamos de recursos energéticos estamos falando sempre de energia para
alimentar a maquinaria capaz de realizar trabalho produtivo: vapor,
eletricidade, petróleo, são fontes de energia que substituem ou intensificam o
trabalho humano. Mas a energia também é uma categoria da ecologia: os próprios
seres vivos e os seres humanos dependem de fontes de energia que podem ser
transformadas em energia humana. A alimentação é um tipo de transformação de
energia. Todas essas formas de energia são, em última instância, equivalentes
do trabalho.
Essa dialética emerge na ofensiva e luta pela energia no seu
conjunto. Por exemplo, por meio dos dados da FAO, podemos observar que
paralelamente ao processo de expansão do preço das commodities, ocorreu, no
mesmo período, um enorme aumento do preço dos alimentos. Desse ponto de vista,
alimentos geram energia para seres humanos, enquanto petróleo e eletricidade
geram energia para máquinas.
Figura 6- Inflação global do preço dos alimentos. Fonte:
FAO-ONU
A luta por recursos naturais e energéticos é um dos
principais motores da quarta guerra mundial em curso. É cada vez mais claro que
a combinação de fatores de economia política e geopolítica (exportação de
capitais e luta pelo controle dos recursos naturais, conflitos entre Estados,
povos e grupos sociais, elevação dos preços dos alimentos), somados aos
ambientais (mudanças climáticas, degradação ambiental, destruição dos
ecossistemas locais), estão provocando, sem supormos nenhuma relação linear de
causa e efeito, uma situação que induziu ao aumento dos preços dos alimentos.
A energia tornou-se mais cara para os humanos e várias
causas contribuem para isso: aumento da exportação de capitais aplicados na
atividade extrativista e de petróleo e gás; aumento nos preços dos alimentos;
elevação nos custos de produção agrária e agroindustrial; processos de
expropriação e conflito territorial; desestabilização política e intervenção
militar direta e indireta; desestruturação de sistemas ecológicos e produtivos
locais que erodem a economia de subsistência, ampliando a desnutrição, a
expulsão de populações e a fome.
O paradoxo então é que o aumento da produção de energia para
o capital e a produção levou a um desequilíbrio na produção de energia para os
seres humanos. Assim, na luta pela energia existe uma importante questão
ecológica e política, que é a ampliação da fome ou do custo da alimentação que,
do ponto de vista energético, é a distribuição desigual da energia entre
capital e trabalho, entre máquinas e seres humanos, entre campo e cidade, e
entre povos, comunidades, classes sociais e nações centrais e periféricas.
A luta pelos recursos energéticos pode ser considerada então
de dois grandes pontos de vista: 1) da produção capitalista e mercantil, em que
recursos energéticos são absorvidos pelo capital; 2) de economias de
subsistência nas quais alimentos são recursos energéticos para reprodução
material e social humana. O impacto, já debatido, sobre a expansão da indústria
extrativa sobre os preços dos alimentos, sobre a exaustão dos recursos naturais
e destruição de sistemas de organização social e sua base ecológica são apenas
a expressão da dialética da energia (que pode ser combustível para a maquinaria
ou alimento para sociedades humanas), da luta social e ecológica entre capital
e trabalho.
Essa luta esteve e está na base dos conflitos pós-crise de
2008: o termo food revolt (revoltas alimentares) expressa exatamente uma
tendência global. A luta dos povos camponeses e indígenas pelo mundo para se
manter nos seus territórios pode ser lida não somente como uma luta pela
identidade cultural, mas como uma luta pela capacidade de produção e acesso a
alimentos e, consequentemente, pela redistribuição “da” e acesso “à” energia.
Vários países do mundo enfrentaram a intensificação dos conflitos e
resistências, e cresce o número de conflitos envolvendo petroleiras, mineradoras,
empresas agroindustriais que absorvem muitos recursos naturais e energéticos, a
começar pela apropriação da terra.
É por isso que vários analistas tentaram relacionar as
revoltas da Primavera Árabe com a inflação global de alimentos. Tunísia,
Camarões, Líbia, Zimbábue e Egito são todos países altamente dependentes do
mercado internacional para a compra de alimentos. Além disso, a partir dos anos
1990, outros conflitos relacionados aos recursos naturais (terra, água,
minério, petróleo) cobriram o território africano e também o Oriente Médio.
Como podemos ver pelo mapa abaixo, existem registros de revoltas e protestos em
quase todo o continente africano.
Figura 7- Conflitos armados e revoltas relacionados a
recursos naturais - África 1997-2014. Fonte: Acled Dataset
Na América Latina, esse período de expansão dos IED e de
ofensiva pelos recursos naturais engendrou diversos conflitos. Antes da crise,
podemos citar a tentativa de golpe contra Hugo Chávez, na Venezuela, em 2002
(em razão dos conflitos, especialmente envolvendo o petróleo) e as “guerras da
água e do gás”, na Bolívia, no início dos anos 2000. Mas, todo o ciclo de
governos chamados de “progressistas” (PT, no Brasil, Tupamaros, no Uruguai,
Partido Justicialista, na Argentina, PSUV, na Venezuela, e vários outros)
desencadeou um processo de centralização do poder e repressão contra povos
indígenas e camponeses, visando exatamente favorecer a exploração extrativa e a
produção de energia. Ou seja, a expansão dos investimentos e a luta por
recursos naturais têm provocado uma intensificação da violência e de conflitos
também na América Latina. Segundo dados da ONG Global Witness, o Brasil lidera
o ranking de violência no campo, com 477 “ativistas ambientais ou agrários”
assassinados desde 2002.Nesse período, apenas em 2011, o Brasil não liderou a
lista de assassinatos no campo, estando à frente de países como Colômbia,
Filipinas e Honduras, com 25, 15 e 12 mortes, respectivamente, no ano de 2014.5
O Brasil, um dos principais destinos dos IED e realizador de um modelo
econômico industrial comandado pela indústria de transporte e pela cadeia
mercantil da logística (que inclui indústria extrativa, energia, construção
civil), foi o país que mais registrou mortes durante esse “ascenso” do
extrativismo e da industrialização, como podemos ver pelo mapa abaixo. A figura
mostra a distribuição de vítimas em conflitos socioambientais no mundo segundo
a ONG Global Witness, em que fica claro o lugar ocupado pela América Latina.
Figura 8– Fonte: Global Witness, Mortes de ativistas
agrários e ambientais no mundo
Na Colômbia, Equador e diversos outros países, têm se
intensificado os conflitos com povos indígenas e camponeses, especialmente em
razão do processo de reorganização territorial nos Estados nacionais. Se no caso
da África a quarta guerra mundial se apresenta como a
fragmentação/descentralização dos Estados, na América Latina essa se mostra
como a centralização do poder sobre os territórios nas mãos de instituições
estatais. Assim, o neoimperialismo não age na América Latina apenas de forma
direta, mas indireta, por meio dos governos desenvolvimentistas e nacionalistas
que concentraram o poder de reorganização territorial, implicando na
expropriação de camponeses e indígenas; em processos de aprofundamento da superexploração
do trabalho, que são uma forma de apropriação da energia humana; e na
transferência de riquezas para a mão do capital (que podem ser vistos no seu
conjunto como exploração de diferentes fontes de energia).
Logo as resistências e revoltas colocam uma importante
contribuição à reflexão crítica sobre o “capitalismo extrativista”. Em primeiro
lugar, tais resistências mostram que as políticas dos Estados e os modelos
nacionalistas de gestão da energia são tão antipopulares quanto os modelos corporativo-privatizantes
de produção e gestão dos fluxos energéticos. Da ótica energética, esses
conflitos podem ser considerados como a luta entre a apropriação da energia
centralizada-capitalista e a apropriação descentralizada/não capitalista. Povos
indígenas e camponeses vivem da pequena agricultura, caça-coleta e pequena
extração. Os produtos agrícolas dessa pequena produção (cereais, leguminosas
etc.) ou da coleta (fruta, raízes) são depósitos naturais de energia: a matéria
viva das plantas converte a energia solar por meio da fotossíntese, os
alimentos consumidos pelas sociedades são fontes energéticas e, por sua vez, a
fonte do trabalho dessas sociedades. Assim, a agricultura é, como atividade
social, cultural e econômica, um modo de transformação da energia. Quando as
terras são incorporadas pela indústria extrativa e energética, elas perdem essa
funcionalidade energética descentralizada e concentram o controle dos fluxos
energéticos no capitalismo monopolista.
A luta pelos recursos naturais e energéticos é hoje parte do
centro da dinâmica do sistema-mundo capitalista. Existe uma guerra em escala
global na qual esta luta se realiza por diferentes estratégias. Sem
compreendê-la, não compreendemos os conflitos e transformações nos sistemas
políticos. Por isso, devemos dimensionar a importância da questão energética
num sentido amplo para as resistências e lutas dos povos e classes, que se
apresenta como uma luta entre dois modelos energéticos de sociedade: as
sociedades de capital monopolista-centralizador dos fluxos energéticos (seja
pelos Estados centrais, seja pelos periféricos); e as de descentralização
socializada dos recursos energéticos de acordo com modos culturais e políticos.
Esse conflito está em curso e será chave para a compreensão da economia política
do século XXI.
Andrey Cordeiro Ferreira
Professor do Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade – CPDA/Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Coordenador do Núcleo de Estudos do Poder – NEP (https://nepcpda.wordpress.com).
1 A atual queda no preço do petróleo e de commodities pode
ser interpretada de diversas maneiras. Alguns trabalham com a tese do “pico”,
ou seja, a valorização do preço do petróleo alcançaria um patamar máximo e
depois tenderia a cair, e alguns projetam isso para a próxima década, de forma
que tal reversão representaria a crise da própria “civilização”. No nosso
entendimento, o atual processo é parte de um ciclo de estagnação, mas também
tem sido útil para a recuperação econômica em países que são intensivos em
energia.
2 Essa análise poderia ser considerada como fantasiosa.
Entretanto, mesmo com toda as controvérsias possíveis sobre medição de mortes,
é certo que as guerras civis revolucionárias e guerras coloniais deixaram mais
de 7 milhões de mortos na Coreia e no Vietnã nos anos 1950. Durante a chamada
globalização, a guerra civil em Ruanda (1994-95) e a 1ª e 2ª Guerra do Congo
(1996-97 e 1998-2003) deixaram pelo menos 6 milhões de mortos. O envolvimento
de países como Estados Unidos, Inglaterra, França e Bélgica nas guerras
africanas é notório. Ou seja, existe uma invisibilização do caráter mundial dos
conflitos locais e da ferocidade da guerra.
3 O Iraque foi identificado como portador de armas de
destruição em massa, o Afeganistão acusado de ser a sede da Al-Qaeda (terrorismo
internacional) e o Irã de desenvolver armas nucleares.
4
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/05/eua-negam-acusacao-de-tentativa-de-assassinato-contra-maduro.html.
5 Pelo 4º ano seguido, Brasil lidera ranking de violência no
campo. http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/04/150419_relatorio_mortes_ativistas_rm.
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