A periferia entende o que está em jogo, afinal essa é sua luta diária. Cabe hoje àqueles que se juntam aos eternos combatentes não apenas combater o golpe.
Renato Balbim // www.cartamaior.com.br
No roteiro do golpe a semana santa pode entrar para a história nacional. Não por conta do listão da construtora, não devido ao descompasso social do Judiciário, em recesso em meio a maior crise da democracia, tampouco por conta do puxão de orelha em El LocoMoro, nem mesmo em função do regabofe pseudo acadêmico dos golpistas em seu momento de auto-exílio português. É uma semana para comemorar o fato de termos agora um Ministro da Justiça, enfim, após cinco anos algo haveria de ser feito. Mas também não por isso entrará para a história.
Nos últimos dias inúmeros manifestos foram lançados Brasil afora por coletivos, organizações, grupos sociais, sindicatos, agremiações de todos os tipos que saíram em defesa da democracia e contra o golpe em curso no país. Foram inúmeros os discursos, muitas as manifestações de rua com chamados para a luta e não ao luto. Muitas foram as cartas abaixo assinados em defesa da carta magna, nossa Constituição.
Em comum cada uma dessas cartas tem uma coisa, todas elas partem do palco da vida, do cotidiano das classes sociais que a partir das conquistas democráticas, passando pelas conquistas sociais dos anos recentes, defendem as instituições e a legalidade na condução dos processos. Todas essas cartas têm em comum um aqui e agora que mira ao passado e não quer perder a possibilidade de futuro.
O presente cotidiano nessas manifestações suprapartidárias é um só, é o cotidiano da vida de cada um dos seus signatários, refletindo o lugar de vida, nossas cidades, onde residem 85% da população brasileira. Grupos ligados à produção cultural, coletivos de universitários, de professores, de juristas, feministas, trabalhadores das mais diversas profissões, pessoas de classes sociais diferentes, raças, credos e religiões distintas, trouxeram para o debate politico um compromisso único que agora os unem.
Essa é a luta da rua, o lugar da política, esse é o resultado da busca democrática pelo respeito à diversidade na diferença, essa é a força das pessoas, coletivos e do povo dizendo não, não somos bobos. Não, nós não somos o gigante que acordou. Nós somos as vozes que podem ser ouvidas do outro lado da ponte, e se hoje nos ouvem, não é simplesmente porque gritamos mais forte. Não, os gritos ecoam desde a senzala!
Essas vozes são hoje ouvidas porque o amplo campo democrático da sociedade passou a falar uma mesma lingua. Em outros momentos no Brasil essa coalisão de classes e raças lutando por direitos coletivos já havia surgido. Mas, atualmente, e as manifestações organizadas dessa semana revelam, há como nunca antes na história um potencial expressivo para que essa união se desenvolva como uma reunião permanente para a necessária e efetiva transformação social.
Concorrem para tanto: i) o advento da nova classe media com acesso ao emprego formal e à educação superior; o acesso à tecnologia da informação e da comunicação em bases similares em todas classes sociais (o celular é hoje “um satélite na cabeça”); e, o surgimento de uma nova cidadania que tem ao menos duas bases, a democracia participativa dos conselhos que se multiplicaram e a apropriação e valorização do espaço da rua, seja para o lazer, a cultura ou no uso de modos alternativos de transporte.
Em 2013, pela primeira vez no Brasil, as pautas ligadas à questão urbana irromperam tanto no cenário, quanto na escala nacional. A deterioração das condições de transporte, trânsito e mobilidade em todas as médias e grandes cidades uniu uma diversidade de pessoas de distintos espectros politico-sociais, tomando as ruas e revindicando melhores serviços.
Esse movimento, infelizmente, foi contaminado já em seu nascedouro por radicalismos e autoritarismos tanto do lado do estado, quando do lado de manifestantes. As pseudo apolíticas convocações para as manifestações possibilitaram o rompimento do ovo da serpente, deu-se o sangramento virulento de ódios sociais historicamente estancados “num país bonito por natureza”.
A violência de 2013 que desafiou prefeitos e governadores, volta-se hoje contra o Estado Democrático de Direito.
Nada disso se deu por geração espontânea, da noite para o dia. O enraizamento do ódio social e de classe, do racismo, não apenas no seio das familias e grupos sociais, mas em várias das instituições democráticas, em especial às ligadas ao exercício do poder, ao não ser combatido, apenas “floresceu”.
O estado nacional e sua política de desenvolvimento e inclusão social quase que exclusivamente via mercado, reforçando o “cidadão imperfeito” e pari-passu o “consumidor mais-que-perfeito”, como ensina M. Santos, explica parte importante da atualidade. No caso da crise da mobilidade o governo federal ao invés de pedagogicamente implantar necessárias reformas urbanas, sujeitou-se ao conservadorismo do anuncio de obras de engenharia.
Exclusão, segregação socioespacial e fragmentação urbana, são aspectos da vida cotidiana geradores de violências, tanto por parte dos que se revoltam contra suas condições desumanas de vida, mas sobretudo por parte daqueles que enxergam na configuração do espaço urbano a legitimação dos discursos corporativos, classistas e racistas.
A violência policial nas periferias negras e pobres sempre revelou o que hoje os neo fascistas pensam poder expressar violentamente nos centros urbanos, nas mídias e nos processos jurídicos. Os golpistas de hoje se sentem protegidos e empoderados pelas instituições, que seu ódio tomou de assalto, e pela grande mídia, que nunca foi nada além de um senhorio no velho engenho chamado Brasil.
Seria curioso, se não fosse apenas parte escondida da mesma engrenagem, o fato de muitos dos golpistas de hoje serem os mesmos que se opõem a abertura de avenidas para a fruição da cidadania, ou da livre manifestação e dos direitos iguais para gays, lésbicas e minorias. Figuras como Serra, Bolsonaro ou El LocoMoro apenas são a expressão (des)humana da configuração do espaço das nossas cidades, partidas, separando por força da lei e da ordem, negros, pobres, mulheres, inválidos e tantos outros daqueles que se julgam eleitos, brancos e letrados.
Mas hoje o que se vislumbra é que a luta diária da maioria dos brasileiros pela sobrevivência ganha essa nova dimensão histórica e social. A periferia se manifesta fazendo uso das mesmas técnicas e lingua, tomando como base os mesmos preceitos constitucionais, como os juristas, universitários, artistas e outros tantos que lutam contra o golpe e pela democracia.
“Periferias, vielas, cortiços… (E aí) você deve estar pensando o que você tem a ver com isso”.
É que nessa cruzada civilizatória a periferia ao adentrar os centros urbanos, ao sentar nas cadeiras universitárias, ao se dirigir aos aeroportos, ao usar smartphone e ter acesso 4G, ao passear na Paulista aos domingos, etc., fez com que os pretensos cidadãos de primeira categoria enfim abandonassem os mitos da democracia racial e da cordialidade na formação do povo brasileiro.
Mas “não adianta querer ser, tem que ter pra trocar, o mundo é diferente da ponte pra cá”.
Entre as diversas cartas da semana o “Manifesto: Periferias contra o Golpe”, e a “Carta do Hip Hop Brasileiro à Democracia”, dão o sentido à luta comum a ser enfrentada, mirando muito além da superação do golpe.
“Nós, que conquistamos só uma parte do que sonhamos e temos direito, não admitimos retrocesso. Reivindicamos o respeito à soberania das urnas e a manutenção do Estado Democrático de Direito. Reivindicamos as ruas enquanto espaço de diálogo, debate e fazer político, mas nunca como território do ódio. Reivindicamos nossa liberdade de expressão, seja ela ideológica, política ou religiosa. Reivindicamos a desmilitarização das polícias, da política e da vida social. Reivindicamos o avanço das políticas públicas, dos direitos civis e sociais”.
“(...) aos que pedem a volta do regime militar, convidamos para se mudarem para a periferia, (afinal) por aqui o cacete e a bala continuam ditando o terror”.
Nós, que enchemos laje em mutirão pra garantir nosso teto e conquistar um pedaço de chão, sem acesso à terra tomada por latifundiários e especuladores. Nós, que sacolejamos por três, quatro horas por dia, espremidos no vagão, busão, lotação, enfrentando grandes distâncias entre nossas casas aos centros econômicos, aos centros de lazer, aos centros do mundo. Não vai ter golpe. Não vai ter luto. Haverá luta!
A periferia entende muito bem o que está em jogo, afinal essa é sua luta secular e diária. Cabe hoje àqueles que se juntam aos eternos combatentes não apenas combater o golpe. Cabe a cada um de nós construir sob os escombros do terror sob o qual hoje jogamos luz, uma nova sociedade, na qual a democracia seja radicalizada, que a participação social não seja apenas um discurso ou a simples confraternização de iguais para referendar acordos prévios. Cabe a todos nós defender e valorizar a polis, o espaço da política.
Cabe a cada um de nós que vivemos em lados opostos da cidade lembrar que “a ponte não é de concreto, não é de ferro, não é de cimento; a ponte é até onde vai o pensamento”.
Edificadas hoje as pontes entorno de objetivos comuns, no amanha da história devemos todos fazer valer as palavras finais do discurso da Presidenta quando recebeu o apoio de juristas essa semana no Palácio do Planalto:
“O fim da miséria é só um começo. Um começo de reivindicações, de novos direitos e de novos avanços. Juntos, tenho certeza, que iremos defender as instituições das ameaças que estão sofrendo. Juntos vamos fazer esse Brasil, tão querido, avançar. Queremos muito para o Brasil, por isso estamos aqui. Queremos crescimento, que gera riqueza e empregos. Queremos inclusão social, que consolida e amplia direitos. Queremos tolerância, que viabiliza a convivência na diversidade. Diversidade tão importante para nossa cultura. Tolerância, tolerância e tolerância. Queremos diálogo e queremos paz”.
Queremos Presidenta eleita, queremos futuros governadores, a valorização do espaço do acontecer solidário, o espaço do público e coletivo, onde a politica nasça e floresça, onde as pontes da tolerância se concretizam. O amalgama de uma sociedade partida se consolida no cotidiano, no respeito às instituições, na igualdades e no livre acesso a bens e serviços urbanos. Reforma urbana já!
Geógrafo, Pós-Doutorando pela Universidade da California Irvine
Créditos da foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12