Depois do vergonhosa comédia que constituiu o interrogatório
a que foi submetido no dia 4 de março, Lula repôs sua mitologia em ação.
Elizabeth Carvalho // www.cartamaior.com.br
Que fantasma é esse, que dissemina nas multidões do Brasil
um ódio jamais visto em sua história, que achincalha um ex-presidente que é a
própria imagem de seu povo, reconhecido internacionalmente como uma das mais
importantes figuras políticas do século XXI? Que fantasma é esse, que insufla
nas ruas um coro imoral de ofensas a uma mulher eleita pela segunda vez para
presidir o país pelo voto popular? Serão de fato os três milhões de brasileiros
enraivecidos e grosseiros que descem de seus prédios cercados de grades e
seguranças ,exibindo um falso orgulho nacional, representantes dos 220 milhões de cidadãos, de quem estão
roubando o direito inalienável de amar o Brasil?
Este país gigante, que ocupa metade do mapa da América do
Sul, continua sendo marcado por dramáticas rupturas nos breves momentos de
avanço em sua narrativa histórica.
Enfrenta mais uma vez o ciclo inevitável das dores de parto que
preconizam mais uma nova etapa de sua complexa conjuntura política. Dentro de pouco tempo, será possível dizer
se essa nova etapa poderá levar a um
salto em direção ao futuro, ou a um mergulho no abismo escuro do
retrocesso. As manifestações de 13 de
março de 2016 não apontam no melhor caminho.
A sociedade brasileira atravessou este domingo como que
impregnada pelo eco do movimento católico e conservador da Marcha pela família
com Deus pela Liberdade que precedeu o golpe militar de 64. Quem viveu esse
tempo se lembrará bem das senhoras ricas que abriram seus cofres de jóias para
entregar os anéis à campanha Doe Ouro para o bem Brasil, um gesto amplamente
divulgado pela mesma mídia que, em nome da democracia, conspira hoje contra as
frágeis instituições democráticas duramente construídas depois de 25 anos de
ditadura militar. O perfil dos manifestantes desenhado pelas pesquisas de
opinião pública nas últimas manifestações exibe uma massa elitizada, de renda
alta, como a que saiu às ruas no Brasil na véspera do golpe de 1964. Há muito
tornaram-se públicos os temores na época do embaixador norte-americano Lincoln Gordon
e seu adido militar Vernon Walters, de que o golpe pudesse fracassar pela
“limitada participação das classes mais baixas na marcha”. Mas golpe é golpe, e
ele se fez assim mesmo, pelas armas.
Observado com uma lente grande angular, o Brasil atravessa
esse momento em compasso com a maior parte de seus onze vizinhos : há uma « sincronicidade pendular », como bem
define o cientista político José Luiz Fiori, nos eventos que marcam os duzentos anos de
história que separam as antigas colônias europeias das nações soberanas
nascidas no continente ao final do século 19, quando se evidenciaram os
primeiros sinais de que o bastão da hegemonia mundial iria inevitavelmente
trocar de mãos.
Assim aconteceu nas crises dos anos 30, quando se
multiplicaram as rupturas pelo viés autoritário; nas democracias do pós-guerra;
nas ditaduras dos anos 60 e 70 do século 20;
e também na inédita guinada à esquerda do século 21, através de governos
democraticamente eleitos e reeleitos com amplo apoio popular. Hoje, ninguém ousaria chamar de « teoria do
complô » o envolvimento direto e comprovado do Departamento de Estado americano
nos sucessivos golpes de Estado que castigaram o continente sul-americano por
duas décadas.
Num país que padece de corrupção endêmica desde que seu
território foi repartido em capitanias hereditárias nos templos coloniais,
pretender combater corruptos constitui uma arma mais poderosa do que um
exército de ditadores. “Future training
should build on áreas like illicit finance task forces”, recomendava
explicitamente o relatório de um funcionário do serviço secreto da Embaixada
americana postado no site Wikileaks e datado de 2009, justamente o ano do
início das investigações cujos capítulos mais dramáticos assistimos neste
fatídico março de 2006.
Por tudo isso, é superficial e simplificadora a visão de que
a operação espetaculosa deflagrada em março de 2014, quando o Brasil vivia a
sua mais violenta e polarizada campanha eleitoral, é uma espécie de “operação
manu limpi” - que crucifica o Partido
dos Trabalhadores e os governos Lula e Dilma Rousseff por terem sido
supostamente infestados de ladrões contumazes – visando banir a corrupção do
Brasil.
Ela não será banida, pelo simples fato de que suas
investigações não se estendem aos tentáculos da cadeia subterrânea que sempre
agiu impunemente no país, como comprovam os quase 600 processos contra
funcionários dos governos Fernando Henrique Cardoso engavetados pelo então
Procurador Geral da República Geraldo Brindeiro – que se tornou conhecido no Brasil
como o “Engavetador Geral” da República. Ao contrário do que acontece hoje no
Brasil: ironicamente, a lei que melhor
define o crime de lavagem de dinheiro e regulamenta a delação premiada, um
recurso hoje devidamente usado e abusado nas investigações, foi aprovada pelo
segundo governo de Dilma Rousseff.
Portanto, não se trata de uma “teoria do complô” as
repetidas denúncias de que as investigações que há dois anos paralisam a vida
brasileira tem por trás claros objetivos: 1) impedir a presidente de governar;
2) afundar o país numa irresponsável crise política e econômica; 3) ferir
mortalmente a Petrobrás, a maior empresa estatal brasileira, a quinta maior
petrolífera de capital aberto do mundo, líder mundial no desenvolvimento de
tecnologia avançada para a exploração em águas profundas. Foram cumpridos com relativo sucesso. Falta agora a grande meta - atingir o
ex-presidente Luís Inacio “Lula” da Silva, de forma que ele e o partido que
criou sejam banidos, de preferência para sempre, do cenário político
brasileiro.
Mas destruir Lula, que permanece – ainda – sendo um dos
recursos políticos mais importantes dos humilhados e ofendidos do Brasil, pode
ser um erro tático, um tiro no pé. O cineasta João Salles, que realizou um
documentário histórico sobre a campanha de Lula em 2002 cujo título este artigo
toma emprestado, sintetizou numa frase o que mais importa nesse momento de
convulsão nacional: depois do vergonhosa
comédia que constituiu o interrogatório
a que foi submetido no dia 4 de março, Lula repôs sua mitologia em ação.
Por trás do boneco inflável vestido de
prisioneiro cujas imagens rodaram o mundo neste domingo há um gigante ferido
que não depôs as armas, e ainda pode mudar o rumo dos acontecimentos.
Créditos da foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula
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