terça-feira, 15 de março de 2016

O Brasil no entreato

Ricardo Stuckert/Instituto Lula
Depois do vergonhosa comédia que constituiu o interrogatório a que foi submetido no dia 4 de março, Lula repôs sua mitologia em ação.

Elizabeth Carvalho // www.cartamaior.com.br

Que fantasma é esse, que dissemina nas multidões do Brasil um ódio jamais visto em sua história, que achincalha um ex-presidente que é a própria imagem de seu povo, reconhecido internacionalmente como uma das mais importantes figuras políticas do século XXI? Que fantasma é esse, que insufla nas ruas um coro imoral de ofensas a uma mulher eleita pela segunda vez para presidir o país pelo voto popular? Serão de fato os três milhões de brasileiros enraivecidos e grosseiros que descem de seus prédios cercados de grades e seguranças ,exibindo um falso orgulho nacional, representantes dos  220 milhões de cidadãos, de quem estão roubando o direito inalienável de amar o Brasil? 

Este país gigante, que ocupa metade do mapa da América do Sul, continua sendo marcado por dramáticas rupturas nos breves momentos de avanço em sua narrativa histórica.  Enfrenta mais uma vez o ciclo inevitável das dores de parto que preconizam mais uma nova etapa de sua complexa conjuntura política.   Dentro de pouco tempo, será possível dizer se essa nova etapa poderá levar  a um salto em direção ao futuro, ou a um mergulho no abismo escuro do retrocesso.  As manifestações de 13 de março de 2016 não apontam no melhor caminho.

A sociedade brasileira atravessou este domingo como que impregnada pelo eco do movimento católico e conservador da Marcha pela família com Deus pela Liberdade que precedeu o golpe militar de 64. Quem viveu esse tempo se lembrará bem das senhoras ricas que abriram seus cofres de jóias para entregar os anéis à campanha Doe Ouro para o bem Brasil, um gesto amplamente divulgado pela mesma mídia que, em nome da democracia, conspira hoje contra as frágeis instituições democráticas duramente construídas depois de 25 anos de ditadura militar. O perfil dos manifestantes desenhado pelas pesquisas de opinião pública nas últimas manifestações exibe uma massa elitizada, de renda alta, como a que saiu às ruas no Brasil na véspera do golpe de 1964. Há muito tornaram-se públicos os temores na época do embaixador norte-americano Lincoln Gordon e seu adido militar Vernon Walters, de que o golpe pudesse fracassar pela “limitada participação das classes mais baixas na marcha”. Mas golpe é golpe, e ele se fez assim mesmo, pelas armas.

Observado com uma lente grande angular, o Brasil atravessa esse momento em compasso com a maior parte de seus onze vizinhos :  há uma « sincronicidade pendular », como bem define o cientista político José Luiz Fiori, nos  eventos que marcam os duzentos anos de história que separam as antigas colônias europeias das nações soberanas nascidas no continente ao final do século 19, quando se evidenciaram os primeiros sinais de que o bastão da hegemonia mundial iria inevitavelmente trocar de mãos. 


Assim aconteceu nas crises dos anos 30, quando se multiplicaram as rupturas pelo viés autoritário; nas democracias do pós-guerra; nas ditaduras dos anos 60 e 70 do século 20;  e também na inédita guinada à esquerda do século 21, através de governos democraticamente eleitos e reeleitos com amplo apoio popular.   Hoje, ninguém ousaria chamar de « teoria do complô » o envolvimento direto e comprovado do Departamento de Estado americano nos sucessivos golpes de Estado que castigaram o continente sul-americano por duas décadas. 

Num país que padece de corrupção endêmica desde que seu território foi repartido em capitanias hereditárias nos templos coloniais, pretender combater corruptos constitui uma arma mais poderosa do que um exército de ditadores.  “Future training should build on áreas like illicit finance task forces”, recomendava explicitamente o relatório de um funcionário do serviço secreto da Embaixada americana postado no site Wikileaks e datado de 2009, justamente o ano do início das investigações cujos capítulos mais dramáticos assistimos neste fatídico março de 2006.

Por tudo isso, é superficial e simplificadora a visão de que a operação espetaculosa deflagrada em março de 2014, quando o Brasil vivia a sua mais violenta e polarizada campanha eleitoral, é uma espécie de “operação manu limpi” -  que crucifica o Partido dos Trabalhadores e os governos Lula e Dilma Rousseff por terem sido supostamente infestados de ladrões contumazes – visando banir a corrupção do Brasil.

Ela não será banida, pelo simples fato de que suas investigações não se estendem aos tentáculos da cadeia subterrânea que sempre agiu impunemente no país, como comprovam os quase 600 processos contra funcionários dos governos Fernando Henrique Cardoso engavetados pelo então Procurador Geral da República Geraldo Brindeiro – que se tornou conhecido no Brasil como o “Engavetador Geral” da República. Ao contrário do que acontece hoje no Brasil:  ironicamente, a lei que melhor define o crime de lavagem de dinheiro e regulamenta a delação premiada, um recurso hoje devidamente usado e abusado nas investigações, foi aprovada pelo segundo governo de Dilma Rousseff.

Portanto, não se trata de uma “teoria do complô” as repetidas denúncias de que as investigações que há dois anos paralisam a vida brasileira tem por trás claros objetivos: 1) impedir a presidente de governar; 2) afundar o país numa irresponsável crise política e econômica; 3) ferir mortalmente a Petrobrás, a maior empresa estatal brasileira, a quinta maior petrolífera de capital aberto do mundo, líder mundial no desenvolvimento de tecnologia avançada para a exploração em águas profundas.  Foram cumpridos com relativo sucesso.  Falta agora a grande meta - atingir o ex-presidente Luís Inacio “Lula” da Silva, de forma que ele e o partido que criou sejam banidos, de preferência para sempre, do cenário político brasileiro.

Mas destruir Lula, que permanece – ainda – sendo um dos recursos políticos mais importantes dos humilhados e ofendidos do Brasil, pode ser um erro tático, um tiro no pé. O cineasta João Salles, que realizou um documentário histórico sobre a campanha de Lula em 2002 cujo título este artigo toma emprestado, sintetizou numa frase o que mais importa nesse momento de convulsão nacional:  depois do vergonhosa comédia que constituiu o  interrogatório a que foi submetido no dia 4 de março, Lula repôs sua mitologia em ação. Por  trás do boneco inflável vestido de prisioneiro cujas imagens rodaram o mundo neste domingo há um gigante ferido que não depôs as armas, e ainda pode mudar o rumo dos acontecimentos.


Créditos da foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula

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