Vladimir Safatle // http://www1.folha.uol.com.br/
O juiz Sérgio Moro conseguiu o
inacreditável: tornar-se tão indefensável quanto aqueles que ele procura
julgar. Contrariamente ao que muito defenderam nos últimos dias, suas últimas
ações são simplesmente uma afronta a qualquer ideia mínima de Estado democrático.
Não se luta contra bandidos utilizando atos de banditismo.
A divulgação das conversas de
Lula com seu advogado constitui uma quebra de sigilo e um crime grave em
qualquer parte do mundo. Não há absolutamente nada que justifique o desrespeito
à inviolabilidade da comunicação entre cliente e advogado, independente de quem
seja o cliente. Ainda mais absurdo é a divulgação de um grampo envolvendo a
presidente da República por um juiz de primeira instância tendo em vista
simplesmente o acirramento de uma crise política.
Alguns acham que os fins
justificam os meios. No entanto, há de se lembrar que quem se serve de meios
espúrios destrói a correção dos fins.
Pois deveríamos começar por nos
perguntar que país será este no qual um juiz de primeira instância acredita ter
o direito de divulgar à imprensa nacional a gravação de uma conversa da
presidente da República na qual, é sempre bom lembrar, não há nada que possa
ser considerado ilegal ou criminoso.
Afinal, o argumento de obstrução
de Justiça não para em pé. Dilma tem o direito de nomear quem quiser e Lula não
é réu em processo algum. Se as provas contra ele se mostrarem substanciais,
Lula será julgado pelo mesmo tribunal que colocou vários membros de seu
partido, de maneira merecida, na cadeia, como foi no caso do mensalão.
Lembremos que "obstrução de
Justiça" é uma situação na qual o indivíduo, de má-fé e intencionalmente,
coloca obstáculos à ação da Justiça para inibir o cumprimento de uma ordem
judicial ou diligência policial. Nomear alguém ministro, levando-o a ser
julgado pelo STF, só pode ser "obstrução" se entendermos que o
Supremo Tribunal não faz parte da "Justiça".
A fragilidade do argumento é
patente, assim como é frágil a intenção de usar um grampo ilegal cuja
interpretação fornecida pelo sr. Moro é, no mínimo, passível de questionamento.
Na verdade, há muitas pessoas no
país que temem que o sr. Moro tenha deixado sua função de juiz responsável pela
condução de processo sobre as relações incestuosas entre a classe política e as
mega construtoras para se tornar um mero incitador da derrubada de um governo.
A Operação Lava Jato já tinha
sido criticada não por aqueles que temiam sua extensão, mas por aqueles que
queriam vê-la ir mais longe. Há tempos, ela mais parece uma operação mãos
limpas maneta.
Mesmo com denúncias se
avolumando, uma parte da classe política até agora sempre passa ilesa. Não há
"vazamentos" contra a oposição, embora todos soubessem de nomes e
esquemas ligados ao governo FHC e a seu partido. Só agora eles começaram a aparecer,
como Aécio Neves e Pedro Malan.
Reitero o que escrevi nesta mesma
coluna, na semana passada: não devemos ter solidariedade alguma com um governo
envolvido até o pescoço em casos de corrupção. Mas não se trata aqui de
solidariedade a governos. Trata-se de recusar naturalizar práticas espúrias,
que não seriam aceitas em nenhum Estado minimamente democrático.
Não quero viver em um país que
permite a um juiz se sentir autorizado a desrespeitar os direitos elementares
de seus cidadãos por ter sido incitado por um circo midiático composto de
revistas e jornais que apoiaram, até o fim, ditaduras e por canais de televisão
que pagaram salários fictícios para ex-amantes de presidentes da República a
fim de protegê-los de escândalos.
O Ministério Público ganhou independência
em relação ao poder executivo e legislativo, mas parece que ganhou também uma
dependência viciosa em relação aos humores peculiares e à moralidade seletiva
de setores hegemônicos da imprensa.
Passam-se os dias e fica cada dia
mais claro que a comoção criada pela Lava Jato tem como alvo único o governo
federal.
Por isso, é muito provável que,
derrubado o governo e posto Lula na cadeia, a Lava Jato sumirá paulatinamente
do noticiário, a imprensa será só sorrisos para os dias vindouros, o dólar
cairá, a bolsa subirá e voltarão ao comando os mesmos corruptos de sempre, já
que eles foram poupados de maneira sistemática durante toda a fase quente da
operação.
O que poderia ter sido a
exposição de como a democracia brasileira só funcionou até agora sob corrupção,
precisando ser radicalmente mudada, terá sido apenas uma farsa grotesca.
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