por Daniel Vaz de Carvalho // http://resistir.info/
Os grandes génios desapareceram, ao mesmo tempo a verdade foi violada de muitas maneiras, primeiro pela ignorância duma política à qual éramos alheios, depois pela paixão da adulação (…) é que à adulação liga-se a desonrosa censura do servilismo, enquanto a malignidade toma um falso ar de independência.
Tácito, Histórias, Livro Primeiro.
1 – O big brother existe
Uma sala imensa, um "open space", dezenas de funcionários procedem a escutas telefónicas. Trata-se simplesmente de uma das muitas instalações da NSA (Nacional Security Agency dos EUA). Uma advogada num telefonema a uma colega diz algo como: "mas então querem tornar este caso num novo Snowden." A cidadã, acaba de pronunciar uma das muitas palavras que a tornam de "alvo potencial" em "alvo". A partir daí os seus telefonemas, contactos informáticos, correspondência, vão ser espiados ao abrigo do "Patriotic Act" pela NSA e outros organismos de serviços secretos. Os seus contactos pessoais e profissionais acabaram de entrar na categoria de "alvos potenciais". [1]
Os EUA, como Estado oligárquico hegemónico, foram os precursores; na UE esses processos vão sendo aplicados. Os documentos divulgados por Snowden mostraram que serviços secretos dos EUA em ligação ou não com os de outros países fazem espionagem a instituições internacionais, embaixadas, governos, partilhando também informações de dados telefónicos e informáticos de cidadãos.
As medidas tomadas após os atentados em França e outros países europeus não procuram erradicar as causas do terrorismo – terroristas criados e apoiados pelos países ocidentais e seus aliados como a Arábia Saudita, Qatar, Turquia – mas permitem espiar com toda a tranquilidade a vida e os comportamentos dos cidadãos.
A NDAA, National Defense Authorization Act , define uma lista de pontos de vista "perigosos" como a defesa de direitos, oposição à guerra, organização para uma "justiça econômica, "teorizar sobre conspirações", desacordo com ideologias vigentes, oposição à globalização, referências aos campos de detenção à margem dos tribunais de organismos federais como FEMA , CIA, Departamento de Defesa. [2]
Relatava Chris Hedges: "O Estado policial norte-americano conta agora com 1 271 agências de segurança governamentais e 1 931 companhias privadas dedicadas ao "contraterrorismo", segurança interna e espionagem, sediadas em 10 mil locais por todo o país, segundo o Washington Post informava em 2010. Considera-se ainda que existam 854 mil indivíduos certificados para espionagem. [3]
A NSA tornou-se de facto a "agência nacional de insegurança". Segundo Paul Craig Roberts o objetivo é silenciar os críticos. O FBI invadiu casas de ativistas pela paz em vários Estados e apreendeu bens pessoais, orquestrando falsos "grupos terroristas" no que qualificou como investigação de "atividades relacionadas com o apoio ao terrorismo.
A perseguição é feita a quem divulga ou procura combater os lados obscuros do controlo sobre as populações, tortura, conspirações, como se verifica ou verificou em casos como Snowden, Assange, Bradley Mannig, Ana Bélen, "os cinco de Cuba", Angela Davies, Albert Woodfox (43 anos em regime de solitária, por razões políticas como militante do Partido Pantera Negra e lutar contra a segregação), etc.
Todos os imigrantes são obrigados a jurarem não ser comunistas para poder viver nos EUA. E sabemos como é flexivel e elástico este conceito… Trata-se de criminalizar ou discriminar opiniões politico-sociais. Mas não importa que sejam fascistas!
Os "poderes de emergência" do Estado francês permitiram que desde os ataques de terror em Paris em 13 de novembro, milhares de lares franceses tenham sido invadidos sem mandatos. Os governantes franceses concederam a si próprios poderes fascistas contra cidadãos, em resposta a atos terroristas – atos que eles em grande parte criaram através de anarquia internacional que estabeleceram. [4]
Foram de facto instituídos meios de criminalizar os cidadãos, torna-los inseguros e obedientes, perseguindo os mais pobres como antissociais e responsáveis pela sua condição, enquanto não faltam milhares de milhões para salvar banqueiros incapazes ou corruptos.
2 – Lavagem ao cérebro
As classes dominantes estão exultantes. Ganham a batalha das ideias. Aproveitaram-se da crise, a sua crise, para operar uma radical inversão de valores e dar credibilidade à sua alternativa reacionária: o neoliberalismo. Asseguram a hegemonia da sua classe, o controlo social, a permanência no poder, uma acumulação infinda de lucros...
O novo admirável mundo novo neoliberal tem como ideologia nada mais que uma superstição de cariz medieval. Os mercados são vistos como entidades todo poderosas, omnipresentes, indiferentes às necessidades e aspirações dos seres humanos. É a teologia fatalista, pretensamente inquestionável, do "não há alternativa". Serve para iludir e chantagear os cidadãos ao sabor dos interesses dos em seu benefício que controlam os ditos mercados.
Comentadores-economistas e economistas-comentadores têm pelouro como pitonisas, procurando convencer os que os escutam que são ignorantes e impotentes perante os desígnios dos "mercados". Uma pseudociência económica dogmática justifica os processos de tirar a 99% dos cidadãos para entregar a 1% de oligarcas, seus associados e sicofantas.
Eles apenas nos dizem mentiras, assevera Paul Craig Roberts. [5] A comunicação social é controlada pela oligarquia e entidades políticas como a CIA que age não só nos EUA mas na generalidade dos países. Documentos internos da Agência reportam ligações a 400 jornalistas só nos EUA. [6]
O objetivo da lavagem ao cérebro é que os cidadãos deixem de o ser, que percam a noção da sua posição na sociedade, da capacidade de decidirem as orientações políticas dos seus países. Na UE acima da vontade dos cidadãos, e das constituições democráticas, apenas contam umas atabalhoadas "regras europeias" sobre as quais os cidadãos não se pronunciaram. "Regras" aplicadas discricionariamente conforme os países por uma burocracia com o poder de chantagear os países mais vulneráveis.
3 – A liberdade sindical pervertida
Conquistada no século XIX, é pervertida pela teoria das "novas relações laborais" que os comentadores-propagandistas divulgam como o melhor dos mundos. Para quem, não esclarecem.
Na Europa e nos EUA a percentagem de trabalhadores sindicalizados passou para menos de um terço do que era há 30 anos, exceto nos países nórdicos, justamente os que melhor têm reagido à crise. Enquanto isto, as desigualdades e os lucros do grande capital não pararam de crescer.
Em Portugal sucessivas revisões da legislação laboral – com o apoio do divisionismo sindical – conduziram a que 61,5% dos jovens tenham vínculos laborais precários; no total cerca de um terço dos trabalhadores estão em condições de precariedade; mais de 80% dos novos contratos foram precários. Em 2003 a renovação de contratos coletivos abrangeu mais de 1,5 milhão de trabalhadores; em 2014 apenas cerca de 200 mil…
Em França, o governo "socialista" procede a alterações ao código de trabalho indo ainda mais longe que as políticas de direita de Sarkozy. O ministro da Economia francês atingiu as cimeiras da abjeção, afirmando que a vida é mais fácil para os empregados do que para os 'empreendedores'. [6]
Não satisfeitos os burocratas da UE continuam a insistir em mais "flexibilidade laboral": o que significa trabalhar até morrer com o mínimo de condições. Por detrás dos pomposos encómios dos propagandistas, tudo se resume a pagar menos e despedir mais facilmente. Em resultado das infames "novas relações laborais" a mobilidade social faz-se na degradação de condições, o downgrading. A promoção do emprego permitida pelo sistema é a precariedade subsidiada com os impostos dos outros trabalhadores: trabalho gratuito para o patronato!
O objetivo é que a força de trabalho seja levada às mesmas condições que nos países chamado "terceiro mundo" dominados pelas transnacionais, neste sentido vão não só as sucessivas revisões de leis laborais e a precariedade instituída, mas também os tratados ditos de "comércio livre", como o TTIP.
Os trabalhadores já não têm real direito de sindicalização. Nos grandes grupos económicos, as tentativas de sindicalização são confrontadas com a repressão e despedimentos ilegais. Mas como podem os trabalhadores defender-se quando as leis estão contra eles e os tribunais são cada vez menos acessíveis?
As grandes transnacionais dispõem de quadros especializados na repressão à atividade sindical e pró-sindical, na perseguição aos ativistas. Por outro lado, os países enfrentam sempre a ameaça de deslocalização da empresa se a atividade sindical os afetar. Não admira por isso que reacionários de todos os matizes defendam o "investimento estrangeiro" e ataquem o investimento público.
Os trabalhadores estão cada vez mais vulneráveis; os cidadãos controlados pela insegurança da precariedade e do desemprego, vêm-se na situação limite da sua prioridade ser a sobrevivência diária, coartando a capacidade de se oporem às arbitrariedades e reivindicarem melhores condições de vida, em suma, a sua consciência de classe esvai-se.
Os que recebem apoios do Estado são considerados "subsídio dependentes", "praga" ou "useless eaters"como foram classificados nos EUA. Face a tudo isto, com a sobranceria dos ignorantes ou caluniadores, "comentadores" falam do "fracasso" do movimento sindical que "não se modernizou" e "só existe nas empresas públicas", culpando-o pelas malfeitorias do neoliberalismo.
4 – Sociedades conduzidas pela ganância de uns e a ignorância
Com os direitos de cidadania alienados para os "mercados", a insegurança atinge todos, exceto os oligarcas protegidos por instituições internacionais financeiras, políticas e também militares.
Em vez de cidadãos de pleno direito, servidão aos "mercados", súbditos da oligarquia financeira e mercantil. Mobilidade, empreendedorismo, flexibilidade, têm sido conceitos usados para degradar a condição humana.
O importante no mundo da globalização capitalista é que as pessoas não se deem conta da sua real situação, percam a noção de cidadania, dos seus direitos e deveres para com o coletivo, o comum. O cidadão reduzido à condição de "público" pronto a ser manipulado pelos "especialistas em comunicação".
As desigualdades estão no seu ponto mais alto desde há quase um século. Os do topo desfrutam de uma cada vez maior parcela do rendimento nacional, enquanto cresce o número de pessoas abaixo do nível de pobreza. Difunde-se a tolerância e o conformismo perante as desigualdades como bom para a economia e que acabará por tornar todos mais ricos. Economistas justificam estas disparidades citando a "teoria da produtividade marginal", refere Stiglitz.
Um dos principais objetivos de propagandistas e enfatuados teóricos é convencerem o cidadão comum que os défices não são devidos a uma iníqua política de permissividade fiscal para a oligarquia, como seus "paraísos fiscais", mas devido ao "Estado Social", apelidado de "socialismo", cuja responsabilidade caberia à falta de "coragem" dos políticos para afrontarem preceitos base da democracia e liquidarem o "despesismo" das funções sociais. Foi nisto que se empenhou o governo PSD-CDS.
Escrevia La Boetie no século XVI, no seu "Discours de la servitude volontaire": "As ferramentas da tirania, são os jogos, os bordéis, as tavernas." Dando-lhes outros nomes, ou os mesmos, o objectivo da alienação é sempre idêntico: "distrair os homens, torná-los frouxos, para assim poderem ser ludibriados e habituados a servir".
As prioridades deste "admirável mundo novo" consistem em garantir os direitos do grande capital acima dos direitos humanos, austeridade permanente, ignorar as necessidades sociais, institucionalizar aparelhos repressivos, justiça discriminatória, ataque aos direitos sociais, pobreza e desemprego,
O novo "admirável mundo novo" trouxe servidão em vez de democracia e soberania; conspirações, guerras, terrorismos em vez de paz e cooperação entre os povos. Face a este "Império do caos" [7] , o socialismo tornou-se mais necessário que nunca, de facto: "Um outro capitalismo não é possível". [8]
[1] Em "The good wife", série da Fox Life.
[3] A ascendência de uma elite financeira criminosa, James Petras
[4] Orwell Bienvenue to France – Encore! , Finian Cunningham
[5] They Tell Us Nothing But Lies , Paul Craig Roberts,
[6] The CIA And The Media , Carl Bernstein
[7] O império do caos, Pepe Escobar, Ed. Revan, 2016
[8] Un autre capitalisme n'est pas possible , Remy Herrera, Ed. Sylleps, 2010
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