quarta-feira, 4 de maio de 2016

As pedras no caminho e as lições da crise

Não basta derrotarmos o impeachment, centro da crise política. Precisamos vencer também a crise econômica.

Paulo Rubem Santiago -Professor da UFPE / Presidente da Fundação Joaquim Nabuco // www.cartamaior.com.br

Embora a atual conjuntura esteja marcada por forte crise política, cujo centro é o desenvolvimento de um processo de impeachment, já admitido na Câmara e ora em andamento no Senado, é na crise econômica e nas respostas que lhe serão dadas, por Dilma ou Temmer, que se concentram os prejuízos e as ameaças que atingem mais diretamente o bolso e o futuro dos direitos dos trabalhadores. Estamos diante de indicadores perversos, que combinam uma inflação fora da meta, queda do PIB, desemprego recorde, perdas reais nos salários e elevado déficit público. A gravidade dessa conjuntura nos ensina desde já que não basta ganhar eleições e administrar a herança dos outros governos, sobretudo quando as forças vitoriosas em 2002 se colocavam como oposição de esquerda, democrática e popular àqueles períodos. Para que obtivéssemos outros resultados desde então, teria sido necessário acionar a marcha pelas reformas estruturais, ancoradas naqueles votos e nas organizações populares da sociedade, o que defenderam dezenas de integrantes da própria bancada do PT eleita naquele ano, embora sem sucesso junto ao primeiro mandato de Lula. Ao não fazer essa opção e repetindo o “modus operandi” dos adversários, na política, na governabilidade e nas campanhas eleitorais, os governantes pós-2002 correm o risco de se tornarem, nesse aspecto, pouco diferentes dos que os antecederam, pois tinham a consciência dos erros daqueles e, em vez de transcendê-los, deram continuidade aos mesmos em grande medida. Como explicar que atravessamos 14 anos de governos do PT, do PC do B, do PDT (após 2007), PSB (até 2013) e demais aliados, sem uma autêntica reforma política? Com isso, que interesses foram preservados e que armadilhas foram deixadas pelo caminho? Como explicar que a cada vitória liderada pelo PT aumentava a força do capital privado lícito e ilícito nas eleições? Para que evitássemos essa combinação tóxica (eleições e partidos sob essa crescente tutela), seria preciso produzir e sustentar maioria parlamentar no Congresso ancorada em constante organização, pressões e mobilizações sociais. Não foi o que se fez. A história já nos ensinou, sobretudo nesse continente, que as oligarquias podem até perder eleições. Porém, quando contrariadas em seus maiores interesses, tudo fazem para desestabilizar os governos eleitos democraticamente, controlando a mídia empresarial nos países onde operam, usando suas ferramentas históricas de poder e as alianças que constroem a parti daí, cooptando forças armadas e mantendo sob pressão outras esferas do aparelho de estado. Por outro lado, se a economia não é tudo numa sociedade, ainda que em tempos de internacionalização voraz do capital, em muito determina e molda seus avanços e atrasos. Por isso não pode acontecer divorciada da democracia, como se fosse esfera autônoma da vida em sociedade. Seus temas e decisões não podem ser assuntos privativos dos grupos interessados na produção e na concentração da riqueza. Partidos políticos de esquerda que abandonam o debate da macroeconomia, seus indicadores e suas soluções, diluindo-se na disputa por cargos públicos, ministérios e verbas orçamentárias, serão um simulacro de governo, tutelados pelos atores financeiros e pela mídia que lhes alicerça em sua estratégia de hegemonia. A atual crise econômica (inflação acima da meta, desemprego, déficit público, queda do PIB e na renda dos assalariados) pode ser lida por uma conjugação de fatores externos e internos. Nesse caso a explicação se dá tanto pela ausência da maioria da esquerda do debate macroeconômico no país quanto por decisões erradas de governo na política monetária, provocando, a um só tempo, o desvio das receitas públicas do investimento na infraestrutura e as migrações do capital, que sai da esfera produtiva para sua multiplicação remunerada a juros no sistema da dívida pública, destino maior daquelas receitas desviadas. Essa é a razão maior da atual crise e frente a ela não se pode governar sem que se rompam estruturas e barreiras, com tapinhas nas costas das antigas oligarquias e Medidas Provisórias carregadas de benesses para notórios conservadores e parasitas históricos das finanças públicas. Foi agindo dessa maneira que se pavimentaram os caminhos nos quais estamos hoje. Sem tensões não se fortalece a musculatura. É no enfretamento concreto das barreiras que nos impedem de sermos um país mais justo que poderemos nos fortalecer e avançar. Partidos políticos que defendem mudanças reais na sociedade, mas que tangenciam os problemas, repetem métodos e se lançam ingenuamente à tarefa de atender a ambos os lados das contradições não governam de fato. Mesmo reduzindo as desigualdades, findam prorrogando o status quo. Servem muito bem a quem comanda e concentra riqueza e poder junto ao aparelho de estado, servindo mal, porém, aos que demandam transformações estruturais, embora afirmem agir em nome desses e para esses. Por isso, para a superação da crise que ameaça os trabalhadores, há que se moverem algumas pedras no meio do caminho. Algumas delas são representadas pelos partidos políticos que, tomados pelo credo e pela dependência do capital financiador da vida política, divorciaram-se de suas bases de sustentação. Não fossem as revelações da Operação Lava Jato muitas das atuais forças de esquerda (e seus aliados desde 2002) seguiriam nas planilhas das empreiteiras da vida, até o próximo escândalo revelar essa contraditória relação. Outras pedras estão representadas pela crença ou tolerância frente a uma economia monetária que se pretende ciência exata, que afirma a neutralidade da moeda a longo prazo e que propõe, por isso, o combate à inflação pelo controle da demanda, com juros altos, além da redução de salários e da promoção do desemprego. Contra esses absurdos precisamos desmontar as engrenagens da política econômica vigente desde 1999, seus diagnósticos errados feitos desde então, os remédios aplicados, além dos indicadores que vem produzindo para o país, como vimos antes. A pedra maior, porém, é a descrença de milhões na política, ante a corrupção e o desencanto com seus antigos representantes, além da frustração de expectativas pós-2014. Essa imensa rocha só sairá do meio do caminho com novas práticas políticas, um claro e convincente programa de mudanças. Pedras só se movem com potencias, alavancas ou correntezas. É preciso, porém, vontade política de fato para aplica-las, opera-las ou gera-las. Por isso, não basta derrotarmos o impeachment, centro da crise política. Precisamos vencer também a crise econômica. A omissão frente a mesma só nos trará retrocessos ainda piores dos que já colhemos na atual conjuntura.


Créditos da foto: Lula Marques / Agência PT

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