Não se pode enfrentar uma contra-revolução com meia-esperança, com meia-razão, com meio-programa, com meia-energia, com meio-plano de futuro.
Juarez Guimarães // www.cartamaior.com.br
1-Sem um programa para o futuro e os caminhos democráticos para viabilizá-lo, a maioria do povo brasileiro não se mobilizará para derrotar o golpe.
A esquerda brasileira esta reaprendendo a construir sua unidade na diversidade. A formação da Frente Brasil Popular já significou um imenso salto de politização frente a movimentos separados por suas próprias dinâmicas de reivindicação e de horizontes reivindicativos, quando não de culturas corporativas. A unidade entre a Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo tornou esta dinâmica unitária irresistível, isolando posições sectárias. A posição histórica do PSOL de denunciar e lutar contra o golpe, apesar de sua oposição ao governo Dilma, foi um marco. Este sentimento de unidade abriu espaço para um reposicionamento do PDT e para lideranças do campo democrático, cultural e intelectual. A forca imprevista de resistência popular ao golpe é uma conseqüência e depende fundamentalmente do aprofundamento desta unidade.
E a partir deste entendimento que se deve abordar o debate sobre o compromisso de um governo Dilma reconquistado em convocar um plebiscito popular para convocar novas eleições presidenciais versus a posição de combinar o Fora Temer com a retomada da normalidade constitucional do mandato de Dilma a partir de uma nova carta de compromissos com o povo brasileiro. Discute-se também a relação da luta contra o golpe e a convocação de uma Assembléia Constituinte Extraordinária para deliberar sobre uma reforma do sistema político. A unidade em torno ao Fora Temer e em torno à ênfase na denuncia da cassação dos direitos sociais posto em pratica já pelo governo golpista encontra um impasse, portanto, na definição de qual caminho democrático alternativo deve ser proposto ao povo brasileiro em alternativa ao golpe.
Se este movimento político de massas, amplo e unitário, tem sido capaz de denunciar a ilegitimidade do golpe, conquistando uma vitoria democrática decisiva contra os esforços de normalização e legalização, ele ainda não e capaz de impedir o governo Temer ou, mais simplesmente, impedi-lo de governar. Em geral, os que comparecem aos atos e mobilizações ainda conformam apenas uma parte dos eleitores de Dilma em 2014. Esta significativa minoria de brasileiros está sintonizada com o sentimento democrático majoritário ou potencialmente majoritário dos brasileiros. Mais anda não foi capaz de construir uma linguagem democrática capaz de firmar uma clara maioria e parece ter dificuldades de superar a mobilização restrita a vanguardas e suas bases populares mais orgânicas para uma mobilização ampla das bases sindicais, dos povos das periferias, das classes médias democráticas mas sem identidade de partido. Ainda não conseguimos passar de uma minoria ativa legitimada para uma maioria ativamente disposta a derrubar um governo ilegítimo.
É muito provável que a denúncia das medidas violentamente anti-populares do governo Temer aumente qualitativamente a sua rejeição e disponham mais trabalhadores e setores populares a ir para as ruas ou ate mesmo a paralisar suas atividades em uma greve geral. Seria simplista, no entanto, imaginar que a esquerda brasileira luta apenas contra a forca de classe dos golpistas. Na raiz do golpe e de sua possibilidade está também a drástica queda de popularidade do governo Dilma, parcialmente revertida no período recente, uma crise de confiança política entre as forcas majoritárias de esquerda e sua base eleitoral, uma profunda descrença na política em função das denúncias generalizadas de corrupção, a perda de confiança no futuro do pais diante dos efeitos devastadores da crise econômica em curso. A forca da direita, diariamente renovada pelos oligopólios de comunicação, vem em grande medida da descrença na capacidade da esquerda em oferecer um futuro de crescimento e ampliação dos direitos do povo na democracia brasileira.
Sem energias utópicas um povo não se move. O cidadão formado em razões e valores da emancipação social e do socialismo é capaz de ir à luta nas situações menos promissoras. Mas não o cidadão e o trabalhador para quem a cultura da participação política ainda não integra a sua identidade. Por isso, sem avançar na definição de qual futuro democrático a esquerda aponta para o povo brasileiro, a partir do seu nível atual de consciência, a maioria do povo brasileiro não aumentará a sua participação, em um padrão e tempo suficientes, para derrotar o golpe. E, sem este avanço na quantidade e principalmente na qualidade política do movimento Fora Temer, tornam-se mais escassas as chances mínimas que se tem de impor uma derrota, de fora para dentro, do golpe na votação definitiva no Senado ou no julgamento do STF sobre o mérito do impedimento. E, se isto não for possível, acumular decididamente forças para impedir e derrubar o governo Temer, já bastante abalado por tantas denúncias de corrupção, no período seguinte.
2- Sem uma relegitimação com base no voto popular, a esquerda brasileira não conseguirá governar o Brasil
Mesmo um cidadão sem formação política sistemática sabe que não e possível um mero retorno de Dilma ao governo do Brasil. A sua coligação foi violentamente desfeita, o PMDB aderiu ao golpe, seu vice é um golpista numero um, a maioria dos partidos que formavam sua coligação votaram a favor do impeachment. Como Dilma governaria sem maioria na Câmara Federal e no Senado? Suas contas de campanha não estão sob investigação e com provável juízo condenatório por um TSE presidido por um golpista? Com qual programa, alias, governaria: com o de 2014 ou o de 2015? Se ela aparentemente não demonstrou compromisso ou não pôde cumprir seu programa de campanha, como a maioria do povo vai confiar que ela vá cumprir um programa feito para seu retorno ao governo? A esquerda tem hoje crédito para pedir um cheque em branco de confiança à maioria do povo brasileiro?
Em um nível mais abstrato de elaboração, pode-se e deve-se afirmar que o andamento do golpe revelou impasses e fragilidades estruturais da democracia brasileira: o mega financiamento empresarial das campanhas incentivou a corrupção sistêmica no estado brasileiro e levou ao limite a crise de representação dos partidos e do Congresso Nacional; a hiper concentração da comunicação em empresas de mídia corrompeu o processo de formação da opinião publica; um crescente processo de judicialização da política levou a um a insuportável grau de partidarização das instancias judiciais; o gráu de planejamento público e democrático da economia é insuficiente para enfrentar a crise internacional, em particular sem a republicanizacão do Banco Central que decide variáveis fundamentais do ciclo econômico; a violência do aparato policial e das políticas de segurança publica são incompatíveis com os direitos humanos e cidadãos; a opressão, subrepresentação e violência contra as mulheres e negros é incompatível com a democracia. O principio da soberania popular, base de todo o sistema democrático, encontra-se estruturalmente contrariado por estas dimensões e o processo de construção dos direitos na democracia encontra-se impedido pela ação e conspiração golpista do maior partido de oposição, com o decidido apoio das classes dominantes.
Em uma outra circunstância histórica, foi através de um plebiscito que Goulart adquiriu plenos poderes presidenciais. Entre as reformas de base, havia o pleito central de conferir o direito de voto aos analfabetos, concebido como fundamental inclusive para criar uma nova correlação de forcas reformista. O pleno poder presidencial de Goulart, no entanto, não foi suficiente para que, através do Congresso Nacional, os golpistas da época o impedissem de governar e fomentassem um clima de desestabilização política, afinado com os tempos de guerra fria. Agora, em uma outra circunstancia histórica, uma nova esquerda formada nos valores do socialismo e da democracia encontra impasses no status quo democrático para, legitimada pela soberania popular, fazer as transformações estruturais que o povo aspira. O seu caminho só pode ser, então, o de refundar a sua legitimidade majoritária através da soberania popular e acumular forcas para dirigir um processo histórico mais amplo de mudanças nas próprias instituições da democracia, ampliando o seu pluralismo político, a sua capacidade de representação social, garantindo a formação democrática da opinião publica e a participação do povo nas decisões e, principalmente, construindo um novo enquadramento democrático das pressões e iniciativas desestabilizadoras da democracia movida pelas classes dominantes.
Em uma primeira fase, a denúncia do golpe aliada à critica da política econômica do segundo governo Dilma foi fundamental para fundar a unidade e a força das lutas de ruas. Agora, com o governo golpista interino, o reconhecimento dos limites da liderança política de Dilma junto ao povo brasileiro e do grau avançado de corrupção das instituições da democracia, é fundamental para conquistar a posse e relegitimacão de um mandato democrático. Uma nova e articulada capacidade da liderança política da presidente Dilma e das forcas de esquerda em apontar saídas para o impasse democrático só fortalecerá a legitimidade para a reconquista do mandato. A aspiração de novas eleições já e majoritária na população e certamente permite uma ampliação da unidade na luta democrática contra o golpe. É preciso trazer a luta contra o golpe cada vez mais para o terreno democrático, recriar uma cena política que permita o reencontro da legitimidade da esquerda com os fundamentos da democracia, a partir de um novo programa de governo que solde a aliança principalmente com as classes trabalhadoras.
3-O controle do tempo político pelos golpistas pretende destruir o setor público e os direitos, além de criminalizar a esquerda antes de 2018
Uma hipótese estratégica alternativa a uma interrupção do mandato golpista de Temer apóia-se em um exame da correlação de forcas e em um dimensionamento do tempo político. Em uma situação defensiva, não teríamos forcas em um futuro imediato para derrubar o governo Temer. Caberia, então, acumular forças, combinando lutas de rua e a politização das eleições municipais de 2016 para derrotar as forcas golpistas nas eleições presidenciais de 2018, com a esquerda reunificada em um segundo turno com um provável a candidatura Lula. Esta aposta no calendário democrático, valorizando-o e centralizando-se nele, seria uma forma de se colar à institucionalidade democrática, mesmo golpeada, evitando a marginalização e ilegalizacao do PT e das forcas de esquerda.
O aparente realismo desta estratégia se dissolve, no entanto, frente às duras realidades do movimento político liderado pelos golpistas. À derrubada do governo Dilma, impôs-se simultaneamente uma violenta cassação de direitos históricos, inclusive constitucionalizados, dos fundamentos da economia do setor publico brasileiro aliada a uma generalizada criminalização das lideranças de esquerda, inclusive e principalmente do companheiro Lula. Alem disso, os golpistas pretendem alterar o próprio caráter majoritário do sistema político brasileiro com a mudança do regime presidencialista, criando barreiras institucionais para a expressão das vontades majoritárias na democracia. Trata-se, na verdade, de uma verdadeira contra-revolução, destruindo décadas de luta democrática e projetando um novo espaço-tempo de dominação neoliberal no Brasil, afinado com as tendências recentes da globalização.
Se o golpismo prevalecer, superando gradativamente a sua ilegitimidade através da sua crescente legalidade e normalização, ele irá impondo sucessivas derrotas estruturais à esquerda, a partir de cada posição conquistada. Por isso, é fundamental agir para que a ilegitimidade se imponha sobre a legalidade golpista a partir de um novo protagonismo de nosso movimento político, interrompendo o tempo político do golpe e de seu programa. Mas o recurso a plebiscito e eleições não apenas renovará a legitimidade dos golpistas através da sua forca eleitoral majoritária? Ora, se conseguirmos derrotar o golpe, as forcas políticas que o apoiaram estarão na defensiva e em processo de desmoralização política, estarão mais divididas frente às diferentes alternativas e exatamente o contrário ocorrerá com as forcas de esquerda, que estarão em um processo de ascensão. O potencial de vitoria das esquerdas será, neste caso, diverso deste ambiente defensivo no qual adentramos de forma mais evidente desde 2015
A vitória parcial do golpe significa que já não estamos em uma normalidade democrática. Tomar o calendário eleitoral como base de uma estratégia seria, neste sentido, um grande erro. A luta eleitoral, de enorme importância, deve se subordinar agora a estratégia e ao tempo da luta contra o golpe.E dimensões decisivas de poder e de sua reprodução serão decididas antes de 2018.
4-A dinâmica ascendente da luta democrática tende a colocar a convocação de uma Assembléia Constituinte no centro da luta política
Entendida em um período histórico mais longo, a contra-revolução golpista em curso é uma tentativa de resolver pela direita e pelo retrocesso os impasses que a Constituição republicana democrática de 1988 cristalizou na correlação de forcas da transição conservadora. Estes impasses ganharam, a partir das primeiras eleições presidenciais, o sentido de uma disputa entre a agenda neoliberal e uma agenda de aprofundamento da republicanização democrática do pais. Se a agenda neoliberal nutria-se de uma clara correlação de forcas favoráveis no plano internacional, a agenda da republicanização democrática pelos direitos nutria-se das redes movimentalistas e da forca política crescente das esquerdas brasileiras. Apos quatro derrotas sucessivas nas eleições presidenciais, os neoliberais optaram pelo caminho de violar o principio da soberania popular para atacar os direitos previstos na Constituição de 1988 e a ela acrescentados por novas conquistas.
Mais do que uma disputa de agenda, e necessário entender que os impasses estavam cristalizados na própria Constituição de 1988. Se ela consagrou pela primeira vez em nossa história política o princípio da soberania popular, ela manteve varias dimensões patrimonialistas e autoritárias do Estado brasileiro, como no seu aparato de segurança, em seu sistema jurídico, no funcionamento liberal e patrimonialista de suas instituições econômicas. Se a Constituição de 1988 incorporou pela primeira vez princípios de participação popular como conselhos, conferências, possibilidades de plebiscitos, referendos e iniciativa popular de leis, ela manteve um sistema político eleitoral aberto a dinâmicas fisiológicas e de corrupção pelo poder econômico. Se ela afirmou a liberdade de expressão, não criou os fundamentos de uma opinião publica democrática nem indicou os caminhos para superar o padrão oligopólico privado mantido e atualizado pela ditadura militar. Se ela avançou na afirmação histórica de direitos – inclusive com um projeto avançado de criação de um sistema de saúde publico, universal e de qualidade - , claramente não criou as fontes econômicas de seu financiamento histórico, mantendo uma estrutura tributaria basicamente regressiva. Se, enfim, ela avançou na afirmação dos direitos à reforma agrária, dos índios e dos quilombolas, ela não foi capaz de assegurar os instrumentos legais para garantir a democratização da propriedade agrária no Brasil.
Foi exatamente explorando os limites da Constituição de 1988, forçando a sua interpretação regressiva ou simplesmente violando-a, que os golpistas avançaram. Esta violação constitucional atinge crescentemente todos os poderes da Republica: um poder executivo ilegítimo, um poder legislativo profundamente corrompido e um poder judiciário que se vê cada vez mais envolvido na legitimação do golpe. Assim, diante dos golpistas a esquerda brasileira hoje se identifica plenamente com os fundamentos republicanos e democráticos da Constituição de 1988. Mas a sua defesa cada vez mais só pode ser atualizada historicamente através do aprofundamento de seus princípios democráticos e republicanos a partir do principio da soberania popular e de um renovado ascenso das lutas do povo brasileiro e das classes trabalhadoras.
A vitoria parcial dos golpistas só tem sido possível ate agora pelo fato de terem ocupado a agenda democrática através do uso instrumental e seletivo das denuncias de corrupção ao qual vinculam a agenda do Estado mínimo e pela forte retomada da agenda neoliberal que marcou os últimos anos, encontrando o seu ponto de síntese exatamente na candidatura quase vitoriosa de Aécio Neves. A posição defensiva da esquerda brasileira tem sua origem em uma adaptação programática a uma institucionalidade estatal corrompida, com centro no financiamento empresarial das campanhas eleitorais, e, mais recentemente, à ofensiva neoliberal no plano econômico. Assim, a retomada de seu protagonismo, no sentido histórico, depende de um grande movimento de retomada da luta democrática e de uma refundação dos horizontes da vida econômica do pais, em um quadro de renovada conquista de direitos. Este novo protagonismo vem junto a um ascenso da luta das mulheres e de um novo patamar da luta anti-racista, tendo como eixo um novo movimento político das classes trabalhadoras da cidade e do campo. A luta contra o golpe e o inicio deste novo protagonismo deve atualizar, de forma crescente, a reivindicação de uma Assembléia Constituinte exclusivamente convocada para aprofundar as dimensões democráticas e republicanas do estado brasileiro.
5- O programa e a estratégia da revolução democrática é o caminho histórico para derrotar o golpe e construir uma nova hegemonia
Não há nenhuma razão que justifique uma estratégia de acomodação e redução de danos diante do golpe a democracia em curso no país. Pelo contrário, este é um momento de novas esperanças e de profunda renovação da esquerda brasileira. Mais do que nunca, a auto-confianca na potência democrática do povo brasileiro e dos trabalhadores deve prevalecer sobre um sentimento de impotência e derrotismo. Mas toda esperança exige a apresentação de suas razoes.
A identidade da esquerda socialista e democrática não é dogmática mas dramática, não é auto-complacente mas critica, não se nutre de certezas mas de utopias inscritas em potencial na realidade da luta de classes.
A própria necessidade da luta contra o golpe está exigindo da esquerda brasileira reencontrar suas raízes e reinventar suas dimensões democráticas radicais. Os direitos de resistência, atualizados pelas lutas dos povos contra os regimes despóticos e fascistas, previsto na Carta dos Direitos Fundamentais da ONU, abarca o direito a objeção de consciência (exemplarmente e magnificamente adotado pela presidente Dilma em sua recusa a aceitar a legalidade de um golpe ilegítimo), o direito à insubordinação civil (exemplificado na ocupação de ministérios e em outras dimensões simbólicas de não reconhecimento da legalidade golpista), o direito à greve política (inicialmente praticado pelos petroleiros mas que se prepara já como greve geral), o direito à auto-determinacão (como se discutiu através do direito a retomar o principio da soberania popular diante de instituições da democracia que violam o principio republicano fundamental) se completa com o direito à revolução democrática ( o direito do povo derrubar, pelos meios que forem necessários, um governo usurpador).
Não se pode enfrentar uma contra-revolução com meia-esperança, com meia-razão, com meio-programa, com meia-energia, com meio-plano de futuro. Não subestimemos a forca dos interesses e das paixões que movem o golpe. Será preciso buscar as raízes mais fundas da energia, da inteligência e das capacidades políticas do povo brasileiro. Um ciclo político de reformas históricas importantes mas auto-contidas, em regimes de coalizão ampla e adaptadas a correlação de forcas institucionalizadas, chegou ao fim. Um novo PT e uma nova unidade da esquerda brasileira estão nascendo. O caminho da revolução democrática já esta sendo aberto e quanto mais formos capazes de trilhá-lo mais crescerão as possibilidades de derrotar o golpe e construir uma nova hegemonia democrática das esquerdas no Brasil.
Créditos da foto: roberto stuckert filho
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