segunda-feira, 13 de junho de 2016

Dizer que juiz não é Deus virou zombaria? Por Jari da Rocha

Foto juiz Tijolaço 12 de junho
A velocidade das informações nos aprisiona em expectativa constante da sucessão dos acontecimentos que nos limita ver e entender o quebra-cabeça do jogo do poder.
Em meio a fumaça, uma figura se sobressai e, acreditem, não é a figura do parlamentar nem, tampouco, da corrupção, essa corrupção cada vez mais subjetiva.

A figura que se destaca é pública e, independente de sua esfera, resume-se em um nome: juiz.
Se apurado, possivelmente o tema central das discussões e análises dos últimos tempos não seja política, propriamente dita, mas justiça, judiciário, lei, processo, liminar, acusação, decisão, condenação e, por fim, arbítrio.
O sinal de alerta surgiu, ironicamente, de uma escuta ilegal que causou indignação e encheu de pruridos a sociedade e, principalmente, a corte suprema do país. Como assim, acovardado?
Os episódios subsequentes foram nos mostrando que a expressão – em princípio ousada, usada em foro íntimo – não está dando conta para qualificar o que está saindo de dentro dessa caixa de Pandora.
As tentativas diárias da imprensa em acobertar os disparates que caracterizam nitidamente a situação atual do país como um estado de exceção, as atitudes – e também os privilégios – daqueles que deveriam prezar pela lei os desnudam.
Acreditam realmente que é possível calar o país, diante de seus próprios escândalos?
O caso emblemático do juiz pego numa blitz, no Rio de Janeiro, sem carteira de habilitação, sem as placas e sem os documentos do veículo foi notável abuso de poder, no entanto, o desdobramento foi ainda pior.
– Eu sou juiz, disse ele.
– O senhor é juiz, mas não é Deus, respondeu a agente de trânsito.
A agente, autora da blasfêmia, foi condenada, em 1ª e em 2º instância, a pagar cinco mil reais.
E não estamos mais falando de um juiz, já são três, os envolvidos. O desembargador da 14ª Câmara Cível do TJ-RJ, que manteve a condenação em segunda instância, escreveu na sentença:
“Ao apregoar que o demandado era ‘juiz, mas não Deus’, a agente de trânsito zombou do cargo por ele ocupado, bem como do que a função representa na sociedade”.
Na época, assunto viralizou, mas só era uma pontinha do iceberg, há séculos, ‘estacionado’ na(s) costa(s) brasileira(s).
No fim das contas, ficou por isso mesmo. O que mais se lia nas redes era “sensação de impotência” e “impunidade”.
Nas últimas semanas, sucessivas ações contra jornalistas da “Gazeta do Povo” têm mostrado outro lado pérfido da justiça.
Ações em massa, com o claro objetivo de ‘matar no cansaço’ os atrevidos que ousaram mostrar dados – com as devidas fontes – dos vencimentos dos juízes, foram vergonhosamente articuladas.
Esta mesma intimidação têm ocorrido sistematicamente, como os casos de Marcelo Auler, Luis Nassif e Paulo Henrique Amorim.
O objetivo não pode ser outro senão intimidação, no entanto, a perversidade escancara ainda mais o precipício que separa, de um lado, vantagens astronômicas de uma categoria que se mostra a cima da lei e, do outro, os pobres mortais sujeitos à dureza da lei e, também, às desculpas de ‘se adequar orçamentos’.
Os juízes não querem que seus benefícios caiam na boca do povo porque, diante de uma atitude dessas, fica claro que eles pensam a mesma coisa que nós.
Os benefícios podem até ser legais, mas são penduricalhos escandalosamente imorais.
O que pensam? Querem demonstrar poder para ninguém se meter à besta com eles?
Impossível não recorrer à base fundadora dos direitos civis, duzentos anos atrás. A Revolução Francesa e sua tríade iluminista: Liberdade, igualdade e fraternidade.
Com a liberdade ameaçada, a igualdade desigual e a fraternidade escondida nalgum fundo de baú, a ficção permite que se tente interpretar o mundo que, há dois séculos, já idealizava o conceito de felicidade como meta central para organizar uma sociedade.
Para isso, a conquista de justiça social seria a base para uma sociedade igualitária em que as diferenças entre os seres humanos fossem progressivamente desaparecendo.
Em que momento da história nos perdemos?
Como esses senhores e senhoras de toga querem, afinal, serem tratados?

A El Rei trata-se por vós,
a Deus trata-se por tu,
como trataremos nós
o Juiz de Igarassu:
Tu ou vós, vós ou tu?
(Gregório de Mattos Guerra)

O cineasta polonês, Krzysztof Kieslowski, no último filme de sua vida, em 1994, propõe um juiz como personagem incômoda no centro da trama. (Trilogia: “A liberdade é azul; A igualdade é branca e, por fim, A fraternidade é vermelha”)
A jovem modelo, Valentine, após atropelar um cachorro, leva-o ao dono: um juiz aposentado e amargurado, que passava os dias bisbilhotando a intimidade dos vizinho através de escutas ilegais.
A ironia é avassaladora.
Quando, ainda estudante, foi prestar concurso para juiz, ao atravessar a rua, deixou os livros que carregava caírem no chão. Um deles caiu aberto. Então ele lê a página que está aberta. Foi exatamente o que caiu na prova, por isso ele passou.
Tempos depois, encontrou sua mulher com outro homem na cama.
A mulher vai embora com o homem: um engenheiro que, anos depois será processado por causa de um acidente numa obra na qual era o responsável.
Quem era o juiz? Depois de condenar à prisão o homem que ‘roubou’ a mulher amada, o juiz solicitou sua aposentadoria.
A ficção de Kieslowski é reveladora. Aprofunda os dramas pessoais e, ao mesmo tempo que humaniza o juiz, o mostra execrável. No fim de sua vida, tem uma chance (de Deus?) para experimentar fraternidade, através de Valentine.
Haveria esperança?
Há em comum entre ficção e realidade a mesma motivação. Enquanto o juiz do filme, em sua vingança solitária, não consegue mais esquecer a interferência que causou na vida de outra pessoa, de forma covarde, na vida real a fraternidade parece não ter lugar.
Quando se chega ao ponto de uma orquestração vingativa para causar danos a outro(s), a covardia é maior, pois, se trata de ataque em bando e mais grave, de caso pensado.
Ao contrário do filme, que sugere uma possível esperança de reavaliação da própria conduta, na vida real não há nada que sinalize que haverá mudanças espontâneas.
O que esses senhores e senhoras ainda não entenderam é que ninguém aguenta apanhar calado por muito tempo. A Revolução Francesa mostrou isso com períodos sucessivos de terror.
Embora se imaginem inatingíveis, justamente por esquecerem seu verdadeiro papel na sociedade, estarão muito mais ao centro do alvo de novas crônicas, poemas satíricos, dramas…
Pois, como bem afirmou Aristóteles: A arte é a representação da vida.
Toda soberba, inevitavelmente, será representada.
Naquele ano, 1994, o filme “A Fraternidade é Vermelha” concorreu ao ‘Palma de ouro’ do Festival de Cannes, mas não ganhou.
O grande vencedor foi “Pulp Fiction – Tempos de violência”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12