Esperemos que as forças democráticas de nosso país consigam lutar para impedir que as consequências aqui não se assemelhem à tragédia ocorrida no passado.
Maria Rita Loureiro - Professora da FGV/SP e da FEA/USP // www.cartamaior.com.br
Diante da tragédia que vivemos hoje no Brasil em que o Estado Democrático de Direito está sendo violentado, exatamente por instituições que deveriam garanti-lo, é necessário lembrar a história. Para entendermos como isso é possível, é necessário olhar para os efeitos que o poder judicial, quando usado politicamente, pode ter para a vida civilizada e para a democracia.
É pertinente trazer para nosso presente uma situação extremada: o desmoronamento da República de Weimar na Alemanha (1919-1933). Analisando esse processo, o grande jurista e sociólogo alemão, Franz Neumann, mostra que o poder judiciário se constituiu como uma das principais forças que contribuiu para a destruição daquela que foi a primeira experiência democrática no país e ajudou a cimentar o caminho para o nazismo. Em sua mais famosa obra, Behemoth, Pensamento e Ação no Nacional Socialismo”, publicada nos Estados Unidos em 1944, ele afirma:
”O direito é a mais perniciosa de todas as armas nas lutas políticas, precisamente pelo halo que rodeia os conceitos de direito e justiça. Quando se converte em “politica” a justiça produz o ódio e a desesperança daqueles a quem fere. Ao contrário, os favorecidos por ela sentem um profundo desprezo pelo valor mesmo da justiça; sabem que pode ser comprada pelos poderosos. Como artifício para fortalecer um grupo político às expensas de outros, para eliminar os inimigos e ajudar aos aliados políticos, o direito ameaça então as convicções fundamentais em que descansam as tradições de nossa civilização (...) As possibilidades técnicas de adulterar a justiça com fins políticos, são muito abundantes em todo sistema jurídico(p.38, da edição espanhola, grifos meus).
Para confirmar que os tribunais penais da República de Weimar eram parte essencial do campo antidemocrático, Neumann compara as decisões desses tribunais em três causas célebres do período: 1) a tentativa de criação de uma república soviética na Bavária em 1919; 2) a tentativa de golpe de estado de direita de Kapp, em 1920; e 3) outra tentativa de golpe liderada por Aldofo Hitler em 1923.
Todos os acusados da república soviética foram condenados, em um total de mais de 2.200 pessoas, centenas inclusive sentenciados com penas severíssimas de trabalhos forçados. Ao contrário, nenhum dos envolvidos no Putsch de Kapp, de 1920, foi condenado. A atuação política dos tribunais da República de Weimar fica ainda mais explícita no processo contra o dirigente nazista. Mesmo sentenciado a cinco anos de prisão, sua condenação já previa a redução da pena a apenas seis meses por bom comportamento. De fato, foi liberado poucos meses depois. Na prisão, gozou de inúmeras regalias, em condições que mais “se assemelhavam a um hotel do que a uma penitenciária”(...). “Sua cela era espaçosa, bem arrumada e dava para uma paisagem campestre. Recebia visitas sempre que queria, era tratado com muito respeito pelos guardas e fazia suas refeições sob a bandeira da suástica pendurada na sala”, como relatam documentos da época.
Além das regalias gozadas pelo nazista na prisão, a atuação político-partidária da justiça de Weimar é estarrecedora quando se lê sobre o que ocorreu durante o julgamento de Hitler, então acusado de alta traição. Os juízes lhe permitiram fazer sua própria defesa, discursando durante horas, e, assim, usando o tribunal como palco de propaganda partidária. Desempenhava mais o papel de acusador do que de réu, até questionando testemunhas como se fosse o promotor. Tais informações constam do livro “A Cozinha Venenosa”, publicado no Brasil em 2013 da jornalista brasileira Silvia Bittencourt. Ele foi elaborado com base em ampla documentação recolhida pela sobre o jornal social democrata de Munique, Münchner Post, no período entre 1918 e 1933.
Ainda considerando o teor da condenação de Hitler, há outro elemento destacado por Neumann. Ele aponta que, embora o artigo 9º da Lei de Defesa da República ordenasse, de modo claro e inequívoco, a deportação de todo estrangeiro condenado por alta traição, o Tribunal do Povo de Munique considerou que tal medida não cabia a Hitler. Isso, com o despudorado argumento de que, a despeito de sua cidadania austríaca, “ele se considerava alemão” (p.40).
Para aqueles que imaginam que esse momento terrível e vergonhoso da história do século XX não pode ser comparado com o que vivemos hoje no Brasil, relembro apenas uma frase, já bastante conhecida, que acompanhou uma decisão da ministra Rosa Weber do STF: “ Não tenho prova cabal contra Dirceu, mas vou condená-lo porque a literatura jurídica me permite”. Isso sem falar nas enormes arbitrariedades cometidas pela atual Operação Lava Jato, fartamente analisadas por numerosos juristas brasileiros e estrangeiros.
Esperemos, porém, que as forças democráticas de nosso país, consigam lutar para impedir que as consequências aqui não se assemelhem à tragédia ocorrida no passado: como a história nos relembra sempre, o reconhecimento dos erros é condição para evitar que eles se repitam.
Créditos da foto: Cena do filme "Terra em Transe", de Glauber Rocha
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