por Aldo Fornazieri // http://jornalggn.com.br/
A crise das esquerdas, particularmente no Brasil, é de larga magnitude e de ampla significação. A sacramentação do golpe, que deverá ocorrer em agosto, selará uma derrota histórica das esquerdas, particularmente do PT. O que é estranho nessa crise é que boa parte dos dirigentes e dos militantes das organizações de esquerda não se deram conta da profundidade e da gravidade da crise e continuam girando numa escala analógica quando os acontecimentos estão se movendo em velocidades digitais.
Se a tese do golpe foi importante num determinado momento para estimular o retorno às ruas de dirigentes e militantes acuados, o problema é que já nesse segundo momento ela se transformou numa mera zona de conforto e numa espécie de autojustificação moral, principalmente dos dirigentes, que pensam que com o golpe a história os absolverá de seus erros e de sua passividade, pois eles estariam no “lado justo” dessa contenda. O mais provável é que a história condene tanto os golpistas quanto os dirigentes das esquerdas, particularmente os dirigentes petistas, já que eles também foram coparticipes da construção da presente tragédia política.
A crise das esquerdas brasileiras é de tal grave singularidade que é até mesmo difícil imaginar que sobre os escombros das atuais organizações é possível construir uma nova perspectiva de futuro. Ocorre que boa parte dos dirigentes e dos militantes da esquerda opera no passado, voltada para o passado. Apenas para dar um exemplo: muitos julgam que os recursos do Estado são infinitos e que um governante pode gastar o quanto quiser desde que gaste em favor dos desvalidos, embora muitos gastem em favor de seus partidos e, inclusive, muitos terminem se locupletando privadamente como está sobejamente demostrado.
Tomem-se os três principais partidos de esquerda: PT, PC do B e PSol. No caso do PT, na medida em que o partido foi galgando postos de poder abriu as portas para uma massa de novos filiados que nada tem de esquerda, mas que era ávida para encetar uma carreira política, galgar postos no partido e no Estado, auferir bons salários e acender social e economicamente. O cargo e o provento passaram a ser mais importantes do que o significado da atividade política que exerciam. Tornaram-se uma espécie de “encostados” dos cargos de confiança, dos gabinetes etc. Por fim, a corrupção erodiu a credibilidade do partido.
O PC do B e o PSol se mostraram partidos combativos no processo do golpe. Se o primeiro é amplo nas alianças, é estreito enquanto opção dos diversos setores sociais que possam conferir força política e eleitoral significativa ao ele. O segundo é estreito nas alianças e nos conceitos, com exceções, claro, a exemplo de Marcelo Freixo e outros. O PSol, pela sua dinâmica interna, pelo ideário que esposa, padece do mesmo mal do PC do B: a impossibilidade de ser potencializado de força política e eleitoral pelos amplos setores sociais.
A erosão de um e as particularidades dos outros retiram dos nossos mais importantes partidos de esquerda aquela condição reclamada por Antônio Gramsci: a de ser o “moderno príncipe, o mito-príncipe”, capaz de construir uma vontade coletiva, capaz de propor uma nova e mítica “fantasia concreta”. Com a consumação do golpe, os três partidos se encontrarão no cômodo lugar que gostam: fazer oposição. Mas ao mesmo tempo em que fazem oposição, disputarão espaços políticos e movimentos sociais entre si, como mostram as eleições municipais em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, apenas para ficar em exemplos gritantes.
Mudar o giro da história
O processo de luta contra o afastamento da presidente revelou um certo paradoxo: ao mesmo tempo em que se percebia o desmoronamento do PT e o limite de forças do PC do B, do PSol e dos sindicatos, observava-se a emergência de movimentos sociais combativos e de um número muito significativo de jovens progressistas e de esquerda, mas que se recusam a dar o passo da militância partidária, ao menos nos partidos que estão aí.
A crise das esquerdas parece requerer uma mudança do giro da história, uma mudança de paradigmas conceituais e organizativos, a criação de uma nova perspectiva de futuro. Desta forma, os líderes honestos e responsáveis, sejam eles socialistas, de esquerda, democratas, republicanos e progressistas, precisam perceber essa ocasião que se oferece e a necessidade de agir desde já para proceder a essa mudança de giro que não será algo de dois, cinco ou oito anos, mas requererá um período mais alargado no tempo.
A par dessa mudança paradigmática põe-se a tarefa de lutar para conter o avanço das forças conservadoras e os estragos que elas podem e querem fazer nos parcos avanços sociais e nas liberdades civis. Esta tarefa se constitui de vários momentos, como as eleições municipais de 2016, a resistência dos trabalhadores à precarização do trabalho, as lutas dos movimentos sociais por seus direitos e contra o desmanche da cultura, da pesquisa e dos nichos de excelência que se constituíram no setor público ou com recursos do mesmo e que o governo Temer vem se preparando para acelerar quando se consolidar no poder.
Mas o momento angular desta tarefa, no médio prazo, serão as eleições presidenciais de 2018. Ali se demostrará se o projeto conservador tende a se consolidar ou se ele pode ser enfrentado e contido pela união das forças democráticas e progressistas. Desta forma, se impõe uma dupla tarefa para os líderes honestos, responsáveis e realistas: ao mesmo tempo em que se trabalha para uma mudança do giro da história é preciso construir esse novo “mito-príncipe”, instrumento da formação da nova vontade coletiva. Esse novo “mito-príncipe” parece que não será um partido, já que as evidências não apontam para isto, mas uma frente de partidos, de grupos políticos e de movimentos sociais, em face da necessidade de dar vasão aos novos movimentos e ativistas de causas plurais que sugiram. A organização da Frente requer também a construção de um programa para o Brasil.
Olhando para 2018 dever-se-ia almejar uma candidatura única dessa Frente e desse programa. Uma candidatura comprometida e emergida desse processo. Uma candidatura que poderá ser Lula, se tiver condições, Ciro Gomes ou outro, desde que esse candidato não seja candidato de si mesmo ou de um grupo e assuma compromissos com esse processo.
Em face da crise das esquerdas brasileiras, muitas pessoas têm olhado para as experiências do Podemos (Espanha) ou Syriza (Grécia). São experiências que devem ser observadas, de fato. Mas não servem de modelos. Podem contribuir com indicações positivas. A Frente Ampla do Uruguai, contudo, parece ser mais propícia para sinalizar os caminhos da construção de uma frente de partidos, grupos políticos e movimentos sociais no Brasil.
A Frente Ampla pode sinalizar algo mais potente, pois ela revela mecanismos de superação do velho anátema da esquerda: a divisão, os ódios, as perseguições, os expurgos, as disputas intestinas, quando não as execuções. Outra inovação que a Frente Ampla sugere é que partidos e grupos políticos se compõem com movimentos sociais sem instrumentalização e sem uma relação de hierarquia. Esta relação mediatizada, respeitosa e democrática entre o político e o social implicaria, com certeza, a necessidade de uma nova pedagogia política.
Aldo Fornazeri – Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
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