O ajuste fiscal avança e mais de cinquenta projetos de lei - trinta com forte incidência nos direitos trabalhistas - aguardam votação no Congresso.
Tatiana Carlotti // www.cartamaior.com.br
A agenda neoliberal imposta pelo golpe sairá caro. Aos veículos do oligopólio midiático, em plena ação política, cabem duas missões: consolidar o golpe e convencer o brasileiro a aceitar o ajuste fiscal e a retirada de direitos básicos, inclusive, constitucionais.
Dia após dia, os jornalões das grandes empresas de comunicação batem na tecla da ameaça de um caos econômico, caso a presidenta Dilma Rousseff retorna; e na tecla da reconstrução do país, protagonizada pelo governo golpista, por meio do ajuste fiscal e pelo acerto da equipe econômica.
Entre janeiro e meados de maio, quando da posse de Michel Temer, a utilização política da crise econômica turbinou o caos nas manchetes da mídia. Após a posse, repentinamente, essa narrativa foi substituída pelo discurso da retomada da ordem e da recuperação econômica.
Em tempos de Olimpíadas, à mítica do “caos versus ordem”, soma-se o mito do sacrifício. O ajuste fiscal é apresentado não como uma das possibilidades, mas o único caminho. Sem espaços ao contraditório, o brasileiro vem sendo convencido a apoiar absurdos como a PEC 241/16.
A proposta de emenda da Constituição do governo interino estabelece um novo regime fiscal para o país, retirando as vinculações constitucionais dos investimentos em Saúde e Educação. Tamanho retrocesso não está sozinho. Há uma pauta-bomba, em termos de redução de direitos, aguardando votação no Congresso Nacional.
Após décadas de luta e da experiência efetiva de ampliação de direitos sociais, o desafio está posto aos golpistas: como convencer o brasileiro a pagar o preço da crise internacional, da especulação financeira e da agenda neoliberal?
“Poucas esperanças”
Uma das formas de manipulação da opinião pública é a fraude jornalística. Seis anos se passaram, mas o país ainda se recorda quando o Jornal Nacional tentou convencer os eleitores brasileiros sobre o forte impacto da bolinha de papel, jogada no então candidato José Serra, em 2010 (relembreaqui).
Neste 2016, a bola da vez foi lançada pela Folha de São Paulo. No afinco de consolidar o golpe, o jornalão divulgou a pesquisa Datafolha, em 17 de julho, distorcendo dados e desaparecendo com a opinião de 62% dos entrevistados - segundo as investigações do The Intercept Brasil - que desejavam a renúncia de Temer e de Dilma e a realização de novas eleições no país. (The Intercept Brasil, 21.07.2016).
Outras manipulações, porém, são mais sutis. Por exemplo, a capa do mesmo jornal em 1° de janeiro, com a chamada menor do artigo da presidenta Dilma Rousseff - “Governo federal está fazendo a sua parte e creio que 2016 será melhor” – ao lado da manchete que desautorizava qualquer otimismo: “Brasil pode perder até 2,2 mil de vagas formais neste ano”. A foto de uma bexiga com os dizeres “Fora Dilma, Fora PT” compõe o quadro.
O editorial “Poucas Esperanças”, daquele dia (FSP, 01.01.2016), bradava: “em 2016, só a política poderá salvar a economia”. Estava dado o mote da campanha midiática neste 2016. Com a economia no centro da pauta – Dilma apresentada como ameaça; Temer, a solução – a cobertura da crise que demandava um sério trabalho jornalístico, tornou-se arena política.
O ônus dessa conduta, frente à fragilidade econômica, está para ser escrito. O fato é que nos dois primeiros meses do ano, a dobradinha Folha e Estadão turbinaram, quase que diariamente, um cenário de caos capaz de derrubar qualquer ânimo de investimento.
Insistimos: é evidente que os números não foram positivos, mas a enxurrada de manchetes negativas exige atenção. Frente à ausência de crime de responsabilidade, capaz de justificar o impeachment, a crise econômica vem sendo talhada como justificativa do “Fora Dilma” pela imprensa golpista. De nada adiantam os índices positivos do primeiro mandato.
Além disso, após a guinada à direita do governo, a mesma mídia que pressionou pelo ajuste fiscal, travando ataque diário desde 2014, acabou se refestelando com as consequências dessa opção. Apenas a título de exemplo, confiram algumas manchetes de janeiro:
“Inflação em 2015, de 10,67% é a mais elevada desde 2002 (FSP, 09.01.2016); Crise aumenta espera de desempregados por trabalho (OESP, 10.01.2016); “BC culpa crise externa e mantém juros em 14,25% (FSP, 21.01.2016) ”; “Estimativa para a inflação aumenta com Selic estável” (FSP, 22.01.2016); “Das dez maiores obras do PAC, só 2 foram concluídas” (OESP, 24.01.2016); “Setor público tem déficit recorde de R$ 111,2 bi” (OESP, 30.01.2016); “Capital limitado de banco público restringe plano para crédito (OESP, 31.01.2016).
Os “especialistas”
Ao bombardeiro de manchetes negativas, soma-se a inexistência de opiniões contrárias ao ajuste fiscal nessas reportagens. Com raras exceções, grassa o discurso único e neoliberal, apoiado em previsões e análises de “especialistas”, “analistas”, “economistas” que, curiosamente, trabalham para consultorias, bancos, empresas. Em suma, estão no mercado.
E mercado não é um ser imaterial. Ele é composto por empresas que têm interesses econômicos e financeiros. E são, justamente, esses interesses expressos em reportagens como “País caminha para a pior recessão de sua história”, realizada com base em previsões de empresas de consultorias e bancos (FSP, 07.02.2016).
Em fevereiro, os jornalões também turbinaram a perda do selo de bom pagador do Brasil pela agência de risco Moody´s (OGLOBO, 26.02.2016). Na reportagem, sequer uma linha problematizando o papel dessas agências e os interesses que elas representam. Em 28 de fevereiro, foi a vez de O Estadão estampar: “O Brasil pode quebrar?” incensando a quebra de confiança dos investidores (OESP; 28.02.2016). No dia seguinte, no mesmo jornal: “Cresce número de empresas que não evitam a falência” (OESP; 29.02.2016).
A construção do caos se acirrou com a proximidade da votação do impeachment na Câmara dos Deputados. Vejam algumas manchetes e chamadas de capa dias antes do afastamento da presidenta:
Nas manchetes da Folha: “Governo absorve 77% do crédito do país em 2015 (FSP, 03.04.2016), Governo sacrifica ajuste para ajudar a negociar na crise (OESP, 04.04.2016), Pedalada fiscal dispara com Dilma, revelam dados do BC (FSP, 06.04.2016) ”. Nas chamadas de capa de O Estadão: “A cada hora, 282 pessoas são demitidas no País” (OESP, 10.04.2016); “Bancos e governo temem calote de grandes grupos” (OESP, 11.04.2016).
Gráficos do Manchetômetro
A utilização política da conjuntura econômica, evidentemente, não começou em 2016. Lembrando que durante o seu primeiro mandato, a presidenta chegou a baixar a taxa de juros SELIC para 7,25%, mexendo com os interesses do setor financeiro, os gráficos do Manchetômetro dão boa visibilidade do “humor da mídia” e dos interesses de mercado que ela representa. Em vermelho, a predominância das manchetes negativas que sequer cruzam com as demais linhas no gráfico:
Curiosamente, após o afastamento da presidenta e da posse de Temer, os gráficos do Manchetômetro registram a mudança, com maior equilíbrio entre as notícias negativas, neutras e positivas nas últimas semanas (clique nas imagens para visualizar): Carrossel de imagens ou tirinha:
É nesse contexto, que o Estadão bradava, após a votação do impeachment na Câmara dos Deputados: “Temer quer superministros para economia, infraestrutura e social” (OESP, 19.04.2016). Um exemplo da euforia que, desde então, vem alimentando o discurso da reconstrução do país de acordo com a cartilha neoliberal.
Superministros
Assim que começou a montagem dos ministérios, à revelia da decisão final sobre o impeachment, os jornalões voltaram a incensar os quadros tucanos. Como se o PSDB nada tivesse a ver com o golpe, o grão tucano FHC passou a defender a participação da legenda no governo, sob o argumento da “responsabilidade política” e chegou a dar uma nota 7 de confiança a Temer. (FSP, 26.04.2016).
Dias depois, Temer respondia: “Em aceno ao PSDB, Temer nega candidatura em 2018” (FSP, 29.04.2016) e “Temer define quarteto para economia com Serra no Itamaraty” (OESP, 29.04.2016). O jogo de cena é ainda mais evidente ao observarmos que o poleiro tucano se instalou, justamente, nas áreas centrais do novo governo.
Estamos falando de Henrique Meirelles (Fazenda), Ilan Goldfajn (Banco Central), Pedro Parente (Petrobras), Maria Silva Bastos (BNDES), Elena Landau (Eletrobrás) e, claro, José Serra (Relações Exteriores). “Superministros” que têm como missão, neste primeiro momento, de implementar a cartilha neoliberal no país.
O objetivo, inclusive, foi esclarecido pela Elena Landau, a dama da privataria tucana, em entrevista ao Globo: “Quanto mais se aprofundarem as mudanças estruturais necessárias, como a reforma da Previdência ou as privatizações, mais difícil será, numa eventual volta da presidente afastada, Dilma Rousseff, desfazer os avanços” (OGLOBO, 03.07.2016).
Missão posta, a mídia vem construindo de modo cuidadoso a imagem de Henrique Meirelles. A simples sondagem de seu nome, em abril, foi responsável pela alta de 2,35% na Bovespa, segundo O Globo: “Preferido de Temer, Meirelles anima mercado” (OGLOBO, 27.04.2016).
Na toada do ajuste fiscal, palavras como “privatização” voltam às manchetes de forma positiva: “Governo pretende obter até R$ 30 bi com privatizações” (FSP, 04.07.2016) e “Privatizar é melhor para aprimorar serviço’” (OGLOBO, 03.07.2016).
A Meirelles é permitido, inclusive, a defesa do retorno da CPMF, com direito a aspas e explicações nas páginas dos jornais: “Meirelles admite recriar CPMF e quer idade mínima no INSS” (FSP, 14.05.2016). Realidade muito distinta da vivida pela presidenta Dilma ao defender o retorno do tribuno no Congresso, em fevereiro. Na Folha e do Estadão, foram dados destaques não à sua fala, mas às vaias dos parlamentares: “Dilma defende nova CPMF e é vaiada no Congresso” (OESP, 03.02.2016) e “Dilma pede apoio ao Congresso e é vaiada ao defender a CPMF” (FSP, 03.02.2016).
Embora o vocabulário neoliberal retorne, a linguagem econômica ainda encoberta o desmonte dos direitos constitucionais: “Meirelles defende teto para gastos públicos” (OESP, 03.05.2016), “Meirelles quer limitar e desvincular gasto público” (FSP, 07.05.2016). Fato: investimentos sociais sempre foram gastos para a mídia golpista.
Otimismo galopante
Temer pega carona no bom humor da mídia, com direito a elogios pelo “rigor fiscal”. A substituição do “Brasil para Todos” pelo carcomido “Ordem e Progresso” se dá sob beneplácito da imprensa golpista: “Temer alterará governo para priorizar comércio exterior” (FSP, 12.05.2016); “Temer assume e defende reformas e gasto social” (FSP, 13.05.2016), “Ao assumir governo, Temer prega união e ´democracia da eficiência´ (OESP, 13.05.2016)”.
O “pacote de maldades" do interino, porém, exige ginástica nas redações. Em 8 de maio, em uma de suas chamadas de capa, o Estadão afirmava: “Empresas terão benefícios de R$ 270 bilhões neste ano”. A manchete que parecia positiva na capa transformava-se no caderno de Economia: "Bolsa empresário chega a R$ 270 bi neste ano e pode ser revista por Temer” (OGLOBO, 08.05.2016).
A blindagem é notória, ainda mais se observarmos a separação entre política e economia, na cobertura dos vários escândalos envolvendo os ministros escolhidos por Temer. Afinal, a “Queda de ministros não afeta agenda econômica, diz Meirelles” (O Globo 18.06.2016).
O fato é que mesmo antes das medidas serem colocadas em prática – aguarda-se a definição do impeachment e, também, as eleições municipais -, entre junho e julho, o que se viu na mídia foi uma onda de otimismo, salpicada de reportagens positivas.
Em boa parte, essas reportagens têm como base as previsões dos economistas. Na Folha, do dia 29 de maio, “Economistas veem indícios de saída da crise mais aguda” (FSP, 29.05.2016). Em 2 de junho: “Recessão se aprofunda, mas surgem sinais de estabilização (FSP, 02.06.2016). No Estadão, “Mercado externo reabre para empresas brasileiras (OESP, 10.06.2016).
Até mesmo os dados negativos são apresentados sob novo viés. Em “PIB retrocede cinco anos”, O Globo se esmera. Os dados dizem: além da queda de 0,3% do PIB, trata-se do oitavo trimestre seguido de recessão, retrocedendo o PIB ao patamar de cinco anos atrás e deixando o país atrás de Grécia em termos de crescimento. Mas, a reportagem afirma que o resultado foi uma “surpresa positiva para o mercado, que esperava recuo maior”, levando boa parcela de economistas “a considerar que o pior da crise já passou. Mesmo que se espere retração no segundo trimestre, a trajetória da economia começou a mudar” (OGLOBO, 02.06.2016).
Crescimento de 2% do PIB?
Nessa toada, um mês depois, da Folha dispara: “Indústria dá sinais de retomada após 2 anos” (FSP, 02.07.2016). Dois dias depois, em reportagem sobre o endividamento das famílias brasileiras que chega a 44,3% da renda, O Globo pondera: “histórico de recessões do país mostra reação mais forte e rápida”, trazendo várias previsões, entre elas, uma bastante otimista de crescimento do PIB a 2% ou mais” (OGLOBO, 04.07.2016)
Esses mesmos 2% surgiriam em outra reportagem “Exportação reage, e mercado já prevê alta de 2% do PIB”. A fonte? “Com a melhora nas exportações e a expectativa de reação da indústria, analistas já preveem que a economia brasileira poderá crescer 2% no ano que vem”. (OGLOBO, 12.07.2016).
Frente à tanto otimismo, Temer se manifestou, dando novo destaque à notícia da véspera: “— Aliás, ontem, viu, Meirelles, li uma notícia que até me preocupou um pouco, pelo exagero — disse Temer, rindo e completando: — Porque dizia assim: no ano que vem crescerá 2% do PIB, no mínimo. Se isso acontecer, nós temos que ganhar o aplauso nacional.” (OGLOBO, 14.07.2016).
Enquanto eles encenam a euforia, em 17 de julho, pesquisa Datafolha registrava 34 pontos de aumento da expectativa de avanço da situação econômica no país, considerando fevereiro e julho. E 17 pontos a mais em relação à perspectiva pessoal dos entrevistados (FSP, 17.07.2016).
O ápice viria três dias depois. Nossa imprensa tupiniquim turbinou, em 20 de julho, a mudança de humor do FMI em relação à economia brasileira: ao invés de retroceder 3,8%, como havia estimado em abril (FSP, 14.04.2016), agora, o Fundo previa um encolhimento de 3,3% do PIB.
Eis o aceno - e os interesses? - do FMI: “É uma combinação de vários fatores. A gente vê evidências de mudanças e virada na economia”, avaliava Oya Celasun, diretora da divisão de estudos da economia mundial do FMI (G1, 20.07.2015). Ao comentar as projeções do Fundo, a colunista de O Globo, Miriam Leitão ponderava que “lenta e gradualmente, o país está saindo do buraco em que foi colocado pelo governo Dilma exatamente pelo excesso de poções mágicas para forçar o crescimento”. (OGLOBO, 20.07.2016).
Enquanto isso, o ajuste fiscal avança e a pauta-bomba, com mais de cinquenta projetos de lei - trinta com forte incidência nos direitos trabalhistas - aguarda votação no Congresso. Em defesa do retrocesso representado pela agenda neoliberal, à mídia golpista cabe um outro discurso: o do “sacrifício necessário” no enfrentamento da crise, conforme veremos na próxima reportagem.
Créditos da foto: Beto Barata e montagem
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