Ao cometer graves equívocos editoriais, os veículos se arriscam a perder a já pouca confiança de que dispõem.
Renato Francisquini // www.cartamaior.com.br
A institucionalização da democracia envolve tanto um componente especificamente institucional, associado às leis e regras que formalizam os direitos políticos e canalizam os conflitos de interesses inerentes a toda e qualquer sociedade liberal, quanto um elemento psicológico-comportamental, ligado, por sua vez, a certa cultura política que se desenvolve entre os membros de uma associação política e que corresponde às expectativas mútuas que alimentamos em relação às atitudes uns dos outros ao longo do tempo. A consolidação de uma tradição cívica, inclinada aos valores democráticos, concorre para o fortalecimento de um equilíbrio desejável no que toca às atitudes e às práticas dos cidadãos, produzindo um ciclo virtuoso de estabilização do regime político, que se torna paulatinamente mais afeito à tolerância e ao acato das regras do jogo democrático.
Os dados do Latinobarómetro evidenciam que o apego à democracia segue relativamente baixo no Brasil - em 2015, apenas metade da população (54,4%) afirmou considerar a democracia preferível a qualquer outra forma de governo, índice que vem se mantendo relativamente estável nas últimas pesquisas. Há diversas razões a que se poderia atribuir tal resultado, dentre elas a confiança interpessoal e nas instituições que constituem o sistema político e social, que podem ou não contribuir para a institucionalização da democracia. Afinal, a construção de um sistema democrático depende de uma série de mecanismos que promovem a legitimidade das decisões coletivas, que permitem aos membros da comunidade política as considerarem moralmente aceitáveis e politicamente convenientes.
Gostaria de direcionar o olhar a um elemento específico da ordem democrática, que me parece particularmente importante nesse aspecto, a saber, a formação da opinião pública que, de uma forma ou de outra, tem efeito significativo sobre as decisões tomadas pelos atores investidos de mandato eletivo (afinal, deputados, senadores, prefeitos, vereadores etc. dependem da aprovação pública, que se expressa por meio do voto, para assegurarem seu emprego). Sabemos que os meios de comunicação desempenham um papel essencial nesse sentido, pois é através da imprensa escrita e dos meios eletrônicos que temos acesso às informações necessárias à formação das nossas opiniões e preferências, assim como são essas as instituições que nos permitem tornar públicos os nossos pontos de vista e participar da construção do que poderíamos chamar de "opinião pública".
A necessidade de conquistar a independência financeira, que assegura autonomia aos veículos de comunicação perante o Estado, os obriga a um esforço contínuo para conquistar a confiança do público, pois é do número de assinantes, leitores e da audiência que depende o sucesso comercial desse negócio. É precisamente esta a questão sobre a qual gostaria de me debruçar. Para que a mídia desempenhe a função mínima que dela se espera em uma democracia, que é dotar a cidadania de condições para tomar decisões bem fundamentadas, é imprescindível que ela também desfrute de uma imagem confiável perante o público. O mesmo Latinobarómetro, contudo, nos mostra que, em 2015, 50,8% dos brasileiros disseram ter pouca ou nenhuma confiança nos meios de comunicação, sem que haja uma diferença significativa entre a imprensa escrita e a televisão (outros 39,9% têm "alguma" confiança na mídia, ao passo que apenas 7,4% disseram ter muita confiança). Para que um veículo qualquer tenha credibilidade, é fundamental que haja uma percepção difundida entre uma parcela do público (seu "público-alvo" ou coisa que o valha) de que as informações apresentadas em suas páginas e telejornais são verdadeiras ou de que pelo menos as interpretações ali contidas não sejam demasiadamente contaminadas por visões ideológicas estreitas ou pela tentativa de conduzir seu público a formar impressões falsas. Não é por mera coincidência que a autonomia financeira e a neutralidade política são vistas como mutuamente constitutivas.
A ascensão das novas mídias, das redes sociais e das formas inovadoras de acesso à informação têm sido considerados os principais desafios dos veículos tradicionais, que ao redor do mundo vêm tentando se adaptar a este contexto. Proliferaram recentemente um sem número de blogs e colunistas, que não dependem mais do suporte físico da imprensa nem estão submetidos ao crivo de editores com a prerrogativa de adequar o conteúdo ao perfil das empresas de comunicação. Muitos chegaram a se questionar sobre a viabilidade das mídias tradicionais em um mundo de interação comunicativa cada vez mais fragmentada e especializada em nichos crescentemente restritos e pouco abertos a conhecer, de fato, as perspectivas alheias.
Entretanto, se por um lado as novas mídias põem em xeque o monopólio dos meios de comunicação como difusores de informações e opiniões, por outro possuem limites que as impedem de realizar em sua totalidade o papel destes meios. Pensando apenas na imprensa escrita, sobretudo nos jornais de circulação nacional, há pelo menos dois elementos que justificam a sua importância, mesmo num ambiente marcado pela comunicação digital: o primeiro é justamente a qualidade e a confiabilidade das narrativas que ocupam as suas páginas, que, ao menos idealmente, passam por critérios mais exigentes de checagem; o segundo, relacionado a este, é a plausibilidade de apresentar uma visão mais abrangente e imparcial sobre os eventos apresentados, tendo em vista a exigência comercial que os impede, mais uma vez idealmente, de adotar vigorosamente uma posição político-partidária. Nesse aspecto, enquanto as notícias veiculadas nas redes sociais surgem de fontes obscuras e são enquadradas por jornalistas com uma posição política bem definida - são enviesadas, portanto -, a imprensa comercial seria relativamente neutra e, por isso também, mais preocupada com a credibilidade do conteúdo transmitido, sobretudo no espaço reservado à reportagem. Ademais, enquanto os blogs independentes falam a um público específico, que de modo geral já tem uma visão ideológica mais próxima à dos seus colunistas, a imprensa tradicional tem um perfil mais catch all.
Em contextos de forte polarização política, o esforço no sentido de apresentar uma visão razoavelmente imparcial torna-se mais importante e, ao mesmo tempo, mais demandante. Mais importante porque, tendo em vista que contamos com as informações e interpretações transmitidas pelos meios para a formação das nossas opiniões, alguma imparcialidade nos permite, sobretudo aos que não têm uma posição política bem consolidada, formar uma percepção de tolerância com os que pensam diferente de nós. Mais demandante porque é natural que o acirramento dos ânimos seja acompanhado de um crescimento da desconfiança do público em relação ao que lhe é apresentado por esses veículos.
Inúmeros episódios recentes deixam suspeitar que os meios de comunicação brasileiros têm sido no mínimo pouco efetivos nessa empreitada. Ganhou destaque há alguns dias a divulgação da pesquisa Datafolha pelo jornal ao qual pertence o instituto. A capa da Folha de São Paulo de 17 de julho, um domingo, estampava infográfico que afirmava que 50% da população brasileira entendia que a permanência do presidente interino era "o melhor para o Brasil", ao passo que somente 3% diziam preferir novas eleições. A matéria omitia, porém, que esta última opção não foi incluída pelo instituto entre as alternativas oferecidas aos entrevistados, mas, ainda assim, foi mencionada espontaneamente por parte deles. O resultado divulgado pelo jornal surpreendeu parte do leitorado, o que motivou alguns jornalistas a buscar uma explicação plausível.
A história é conhecida e está bem relatada no The Intercept. O que é importante notar aqui é o fenômeno mais amplo, do qual episódios como este aparecem como um exemplo eloquente: ao cometer graves equívocos editoriais, sobretudo quando justificados da forma como o fez o editor da Folha (Sérgio Dávila sugeriu não existir interesse jornalístico na informação de que a maioria dos eleitores [60%], segundo outra parte da pesquisa realizada - e omitida pelo jornal -, preferia a realização de novas eleições), os veículos se arriscam a perder a já pouca confiança de que dispõem. Se essa desconfiança prejudica comercialmente os jornais, ela pode ser ainda mais perniciosa para a democracia brasileira. Em primeiro lugar, porque cria dificuldades para a formação de preferências bem fundamentadas sobre os temas de interesse público. Mas principalmente porque abre espaço para o fortalecimento de perspectivas cada vez mais polarizadas, representadas pelos inúmeros blogs e sites de origem e gosto duvidosos, afastando a possibilidade do surgimento de consensos mínimos, necessários à compreensão da sociedade como um empreendimento cooperativo, ainda que marcado pelo pluralismo de valores e identidades. O resultado do fenômeno soa sobremaneira mais grave quando pensamos na estrutura de propriedade dos meios de comunicação no país, marcada pelos oligopólios familiares e pela presença de lideranças políticas locais entre os donos de concessões de canais de rádio e televisão (como atesta o relatório da ONG Repórteres Sem Fronteiras ), o que limita também a plausibilidade de encontrarmos visões concorrentes sobre os eventos.
Conforme afirma Hannah Arendt, em Verdade e Política, fatos e eventos são entidades frágeis, pois "ocorrem no campo das ocupações dos homens, em sempiterna mudança, em cujo fluxo não há nada mais permanente do que a permanência, reconhecidamente relativa, da estrutura da mente humana". Embora a disputa de narrativas interpretativas sobre o que a filósofa alemã denomina de "verdade factual" seja natural e saudável em uma sociedade democrática, que valoriza a liberdade de expressão, a corrupção da informação em prol de preferências políticas, como não poderia deixar de sugerir a postura da Folha no caso mencionado, contribui para a emergência de uma situação danosa. Com isso, até mesmo a distinção entre realidade e ficção fica, por vezes, comprometida, confundindo-se em um jogo de linguagens e intervenções políticas camufladas como narrativas imparciais. A carência de elementos confiáveis, que nos permitissem elaborar mentalmente um contexto factível, trabalham no sentido de intensificar as disputas para a definição de uma opinião que pudesse contar com um assentimento mínimo.
Créditos da foto: Wikimedia Commons
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