Enquanto a economia cresceu sem flexibilização de direitos, discurso da competitividade não prosperou. Para magistrado do Trabalho Jorge Luiz Souto Maior, "negociado sobre o legislado não é tese, é ofensa"
por Vitor Nuzzi, Revista do Brasil publicado 15/08/2016 08:27, última modificação 16/08/2016 13:38
ANTONIO CRUZ/AGÊNCIA BRASIL
Em 2001, a Câmara, presidida por Aécio, aprovou o projeto de flexibilização trabalhista do então presidente FHC. Lula arquivou
"As alterações na CLT aumentariam o emprego, sem dúvida", diz um diretor da Fiesp. "Todas as conquistas constitucionais estão preservadas e o trabalhador terá mais poder", garante o governador paulista. "Nenhum direito do trabalhador será retirado", reforça um advogado e negociador patronal. As frases parecem ter sido pronunciadas agora, mas são de 2001, quando um projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados a toque de caixa. O texto, de autoria do Executivo então chefiado por Fernando Henrique Cardoso, mesmo polêmico, levou apenas dois meses para ser votado. Quem garantiu a agilidade na tramitação foi o então presidente da Casa, Aécio Neves.
Aprovado com placar relativamente apertado (264 a 213) na Câmara, o PL parou no Senado e acabou sendo arquivado em 2003, na véspera do 1º de Maio, no início do governo Lula. Mas a ofensiva empresarial – com apoio do governo interino e adesão, como dantes, da mídia tradicional, com editoriais agressivos contra dirigentes sindicais – volta com força em um momento de crise econômica e de fragilização de setores que podem se contrapor a iniciativas de "flexibilização".
Dizia o PL 5.483, de 2001, apresentado pelo governo FHC, que as condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não contrariem a Constituição e as normas de segurança e saúde do trabalho.
Diz o PL 4.962, apresentado neste ano pelo deputado Julio Lopes (PP-RJ), que as condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não contrariem a Constituição e as normas de medicina e segurança do trabalho.
A argumentação básica é a mesma de 2001 e de sempre. A legislação atrapalha o crescimento econômico e a criação de empregos. Flexibilizá-la, portanto, traria mais liberdade de contratação. Mas a realidade contraria essa linha de pensamento, observa o professor José Dari Krein, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e diretor do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da instituição.
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Robson de Andrade, da CNI, chegou a sugerir ao interino Michel Temer reformas em nome da competitividade e citou a França, onde estaria sendo discutida uma jornada de até “80 horas semanais”
Requentadas
"Desde os anos 1990 que está se colocando na agenda uma reforma trabalhista de caráter flexibilizador. O setor empresarial sempre pressionou. As medidas formuladas (naquele período) foram requentadas mais recentemente, a partir de 2013. Mas alguns argumentos empresariais não apresentaram comprovação empírica", diz o economista, lembrando que mesmo com uma legislação supostamente "engessada" o emprego e a formalização cresceram desde 2005, até pouco tempo atrás. "Em última instância", afirma Krein, "o emprego depende da dinâmica da economia", além do desenvolvimento de políticas públicas. "Regulação não cria emprego."
Também a argumentação, sempre repetida, de que o aumento do salário mínimo provocaria inflação e desemprego não se sustentou, lembra o professor. "De certa forma, o discurso perdeu força. Mas a demanda empresarial por flexibilização sempre existiu."
A chamada tese do negociado sobre o legislado ressurgiu com força devido ao aprofundamento da crise econômica e ao crescimento do conservadorismo. Faz parte de uma agenda que o professor da Unicamp vê como "um desastre do ponto de vista social, destruindo o pacto em torno da Constituição de 1988". É uma questão civilizatória, demarca. "Isso (propostas de reformas) transforma profundamente a vida social", afirma.
O ministro interino do Trabalho, Ronaldo Nogueira, tem repetido como mantra que o trabalhador "não será traído" com as reformas. Insiste em pelo menos dois pontos: flexibilização da legislação, sem detalhar as mudanças pretendidas, e regulação da terceirização. Entre os líderes sindicais, o posicionamento é distinto em relação ao processo de impeachment e ao governo interino. A CTB e a CUT não aceitaram conversar com representantes da gestão provisória. Força Sindical – cujo presidente, deputado Paulo Pereira da Silva, o Paulinho (SD-SP), apoia o impeachment –, CSB, Nova Central e UGT participam de fórum sobre a Previdência e de reuniões com autoridades no Planalto.
Essas seis centrais formalmente reconhecidas (com base em lei de 2008), mais a CGTB e a CSP-Conlutas, sentaram-se à mesa em 26 de julho e acertaram um dia nacional de protestos por emprego e redução dos juros. As divergências políticas foram momentaneamente esquecidas. "Não importa o posicionamento em relação ao governo. O que unifica é a defesa dos direitos", afirma o presidente da CUT, Vagner Freitas. "Toda vez que se fala em flexibilização é para tirar direitos", acrescenta.
Papel do Estado
Ele se disse preocupado com declarações "intempestivas" do presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Braga de Andrade, que durante encontro com Michel Temer defendeu reformas em nome da competitividade e citou a França, onde estaria sendo discutida uma jornada de até 80 horas semanais (60, na verdade). Com a repercussão ruim, a CNI divulgou nota para afirmar que "jamais" defendeu jornada acima do previsto pela Constituição brasileira – 44 horas semanais. Para as centrais, tratou-se de uma "provocação estapafúrdia" à população.
"As condições (para as reformas) estão dadas", avalia o analista político Antonio Augusto de Queiroz, o Toninho, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Para ele, os setores conservadores dificilmente terão outra oportunidade de implementar as mudanças pretendidas, na verdade, desde 1988. "Há uma operação de revisão do papel do Estado e também em relação ao uso do orçamento. Nos dois casos, em benefício do setor privado", afirma.
Em parte, Toninho acredita que isso ocorre por falta de esclarecimento político da população. "Não cuidamos, lá atrás, de criar uma base esclarecida e bem formada. Desde a redemocratização a esquerda brasileira aboliu a formação política", diz o analista, acrescentando que o cidadão desconhece os três "monopólios" do Estado: imposição de condutas, poder de legislar e de tributar. "Falta esclarecimento sobre a importância da política na vida das pessoas."
Dari Krein, da Unicamp, também vê em andamento a discussão sobre o "tamanho" do Estado e do gasto social, com fortalecimento da iniciativa privada. Destaca três itens já citados pelo ministro do Trabalho como prioritários: além do negociado sobre o legislado, a terceirização (com projeto já aprovado na Câmara e agora tramitando no Senado, como PLC 30) e a ideia de tornar permanente o Programa de Proteção ao Emprego (PPE), que originamente foi pensado para uso apenas em situações de crise.
Defensor do PPE, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Rafael Marques, diz que o programa pode ser mantido, desde que não seja usado indiscriminadamente, mas "em momentos em que reconhecidamente há uma crise instalada em determinada atividade econômica". E isso após um necessário balanço entre trabalhadores e empresários sobre os impactos do programa, depois de quase um ano de sua implementação. Inclusive para evitar oportunismos. "Tem empresa, por exemplo, querendo discutir o fim da carência", conta Rafael, referindo-se a um item da lei (13.189), que veda demissões durante o PPE e, depois de seu término, por um período equivalente a um terço da vigência do programa.
Para o professor da Unicamp, algumas das propostas em discussão significam "uma profunda desconstrução" do Direito existente. "Você tem uma composição política mais favorável para aprovar sua implementação. Mas é uma agenda que não passou pelo crivo eleitoral. São propostas de caráter muito antipopular", observa. A percepção de que as propostas pioram as condições de vida pode provocar reação na sociedade e barrar essas iniciativas. "O que existe é um jogo ainda jogado."
A agenda proposta pode melhorar a economia? Não há nada que prove isso, diz Krein, que considera o discurso da "segurança jurídica" um eufemismo para "precarização". Ele também reage ao argumento de que a legislação precisa ser modernizada. "O que é velho? É você poder se aposentar, receber um salário mínimo, ter direito a uma jornada de trabalho?"
As iniciativas de flexibilização vão do atacado ao varejo. Além da CLT, os empresários miram, por exemplo, na Norma Regulamentadora (NR) 12, que trata de saúde e segurança no setor de máquinas e equipamentos. Revisada em 2010, a norma já sofreu algumas mudanças, mas há quem defenda simplesmente sua extinção. Em palestra na CNI em 26 de julho, o ministro interino da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, Marcos Pereira, referiu-se à NR 12 como uma "trava" para o setor produtivo. "Essa norma é uma anomalia", declarou.
No movimento social, a ideia de greve geral passou a circular nos últimos meses, mas é discutida com cautela. "A greve não é uma vontade do dirigente, não se impõe pela nossa vontade. Trabalhador não faz greve por política, faz greve por direito. Mexeu nos nos direitos, é greve", diz Vagner Freitas, da CUT.
Eleito para a presidência da Câmara até fevereiro, com um enigmático apoio de forças de esquerda, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) já manifestou compromisso com essa agenda. Seu colega no Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), idem. Os dois mostraram afinação com o interino Michel Temer, com quem se reuniram para jantar em 19 de julho, no Palácio do Jaburu. Sem fotos oficiais, segundo uma nota em coluna de jornal, para que a reunião pudesse transcorrer de maneira mais informal.
Jorge Luiz Souto Maior: Não é tese, é ofensa explícita
Para o juiz do Trabalho e professor Jorge Luiz Souto Maior, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o "negociado sobre o legislado" não é uma tese, mas uma ofensa explícita aos trabalhadores. Segundo ele, o que se quer é destruir avanços, sob o argumento de modernização. Souto Maior avalia que as entidades empresariais não criaram o chamado golpe, mas dele se aproveitam para "cobrar a conta" do governo interino.
O governo interino parece relacionar a melhoria da economia com as pretendidas reformas, particularmente da Previdência e trabalhista. Uma coisa depende mesmo da outra?
Se melhoria da economia estivesse relacionada à redução dos custos trabalhistas o Brasil seria uma das maiores potências econômicas do mundo, pois o custo do trabalho no Brasil é um dos mais baixos do planeta. Além disso, o Brasil tem feito reformas trabalhistas, na linha da redução de custos, desde 1964, e nenhum resultado positivo se obteve para a economia nacional. Os benefícios serviram às multinacionais que se enriqueceram às custas do trabalhador brasileiro, sendo que os lucros foram remetidos ao exterior.
Em texto, o senhor afirma que o propósito central do golpe é eliminar direitos trabalhistas. A CNI e outras entidades empresariais estariam "cobrando a fatura" do governo interino?
O golpe não se estabeleceu pelas entidades empresariais, mas algumas delas perceberam que a onda de quebra institucional instalada no país e justificada para, supostamente, acabar com a corrupção ou a imoralidade, constituiria o ambiente favorável para eliminar as instituições que, apesar de tudo, ainda resistem aos avanços da exploração do trabalho, quais sejam, a Constituição Federal, a Justiça do Trabalho e o Direito do Trabalho. Desde o final de 2015 passaram, então, a insuflar o impeachment, favorecendo grupos políticos específicos, e agora, efetivamente, cobram a conta do governo interino, até porque este não tem como se manter no poder senão com o apoio dessa parcela empresarial, afinal não possui qualquer base eleitoral. Essa associação entre o governo e parte do setor empresarial denuncia a existência do golpe de Estado, já que o impeachment não está de fato relacionado a efetivas e significativas infrações da presidenta e sim ao propósito de obter vantagens com a quebra institucional.
O que o senhor pensa da tese do negociado sobre o legislado? É, de fato, uma "modernização" do universo do trabalho?
Isso não é uma tese. É uma ofensa explícita à classe trabalhadora, uma vez que nunca houve obstáculo para que o negociado prevalecesse sobre o legislado, com a exigência de que o que se negocia traga vantagens aos trabalhadores superiores às garantias já fixadas em lei, que são fruto de lutas históricas. Então, o que se quer é destruir os avanços conquistados, sob o falso argumento de que se está "modernizando" as relações de trabalho, valendo lembrar que argumento igual a esse já se expressava desde o início da década de 90.
Há um projeto na Câmara que trata do tema. As condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevaleceriam sobre o disposto na lei, desde que não contrariem a Constituição e as normas de medicina e segurança do trabalho. O presidente do TST, ministro Ives Gandra Filho, é simpático à proposta.
O que está dito não é o que se quer realizar, até porque se a negociação não pode contrariar a Constituição e se a Constituição diz que as normas infraconstitucionais, incluindo as que decorrem de negociação coletiva, devem melhorar a condição social dos trabalhadores, não haveria a possibilidade jurídico-formal, conferida pelo próprio PL, de uma negociação coletiva reduzir direitos fixados em lei. O que se quer é usar a negociação para reduzir direitos e, mais ainda, o que se pretende é mesmo acabar com a proteção legal do trabalho, promovendo, ao mesmo tempo, uma destruição da ação sindical. Ora, em um ambiente sem garantia de emprego e com desemprego alarmante os sindicatos seriam facilmente chantageados a aceitar reduções de direitos e isso dificultaria ainda mais a identidade do trabalhador com a entidade sindical, sendo que o mesmo problema ocorreria se o sindicato não aceitasse a redução e a empresa, por vingança, efetivasse a dispensa coletiva de trabalhadores. A questão é que a ação sindical serve para melhorar as condições de trabalho e não para legitimar reduções. Atribuir essa função ao sindicato equivale a destruí-lo na essência.
O interessante é que nos momentos de pleno emprego, com sindicatos fortes, instrumentalizados por um direito de greve não submetido a intervenção estatal, os empregadores não querem a livre negociação coletiva, defendendo a prevalência da legislação, como se deu no Brasil na década de 30. A promessa constitucional foi a da melhoria da condição social dos trabalhadores, e nenhum argumento de crise pode obstar a implementação de um esforço neste sentido, até porque o Direito do Trabalho é essencialmente um direito de tempos de crise, para impor limites à sanha autodestrutiva do capital.
E quanto ao projeto de terceirização, aprovado na Câmara e agora tramitando no Senado? Governo e empresas falam em "segurança jurídica", enquanto os trabalhadores afirmam que a proposta, como está, representa "precarização".
Se essas empresas defendem segurança jurídica, por que não aceitam conferir aos trabalhadores estabilidade no emprego? Isso sim seria uma segurança jurídica saudável para as relações de trabalho e para a economia como um todo. Independentemente disso, qualquer cidadão ou empresa só terá efetiva segurança jurídica se cumprir as leis. O que parcela do empresariado quer, para satisfação de seus interesses particulares e não para a melhoria da economia nacional, é descumprir a Constituição, que alçou os direitos trabalhistas a patamar de direitos fundamentais. E querem fazer isso com "segurança jurídica", sendo que a melhor forma que encontraram para atingir esse objetivo foi a de fragilizar a classe trabalhadora, precarizando não apenas as suas condições de trabalho, mas a sua própria condição humana, vez que essa situação praticamente impede a ocorrência de reações individuais ou coletivas no sentido da exigência quanto ao efetivo cumprimento de direitos.
Em 2014, em entrevista, o empresário Benjamin Steinbruch falou que nos Estados Unidos "você vê o cara comendo sanduíche com a mão esquerda e operando a máquina com a direita". Sugeriu que o horário de almoço poderia ser objeto de negociação direta entre as partes. Talvez seja factível, mas não é um exemplo extremo?
Já que disse isso, seria, então, muito interessante ver esse senhor trabalhando como terceirizado na construção civil, comendo com uma mão e serrando madeira com a outra; ou em um frigorífico, comendo com uma mão e passando o facão na carne com a outra; ou como motorista de carreta, dirigindo 14 horas por dia, sete dias por semana, e comendo com uma mão e dirigindo com a outra...
Retóricas à parte, o fato é que a ordem jurídica, voltada à preservação da dignidade humana, foi construída de forma a não sofrer qualquer tipo de abalo diante das cobranças do pensamento econômico que despreza a condição humana do trabalhador.
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