segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A hora do delírio

                                                                                                                                                               Pedro Ladeira/Folhapress
Lula
Lula vai à posse da ministra Cármen Lúcia na presidência do STF, enquanto no ar solene se difundem as notas do Hino Nacional cantado por Caetano Veloso
Em nome de uma “convicção” os fanáticos do apocalipse de Curitiba denunciam Lula na qualidade de “comandante supremo” da corrupção na Petrobras. E vem à baila o famoso triplex de 200 m2...
por Mino Carta // http://www.cartacapital.com.br/

Assisto a um espetáculo de pura demência, e dentro dele ninguém mais habilitado ao papel de oficiante do que o promotor Deltan Dallagnol, milenarista fanático do Apocalipse. O que me ofende, humilha, destroça, é o comportamento de muitos na assistência, incapazes de entender o grau de parvoíce atingido pelo Brasil da casa-grande e da senzala, cada vez mais mergulhado na treva medieval.
Já não me refiro ao quociente de inteligência a que o País se deixou reduzir, aludo ao quociente de delírio. A denúncia do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não passa de uma pregação desvairada e raivosa, baseada em devaneios do ódio represado, manifestados com uma enxurrada de palavras pronunciadas no tom do eremita Pedro, o marqueteiro da primeira Cruzada.

Soa nos meus ouvidos a diatribe frenética, e me pergunto a que tempo pertence. Não é certamente contemporâneo do mundo de hoje, por mais decadente. Ao cabo, sobram o indiciamento por causa do celebérrimo triplex da praia dos farofeiros e a acusação relativa a uma propina de 3,7 milhões de reais, alegada sem provas ao afirmar o enriquecimento ilícito de alguém que se contenta com pouco. O padrão habitual é o de Eduardo Cunha, que recebeu 52 milhões.

O tal apartamento do Guarujá está no centro de uma história brutalmente enfadonha, também ela prova da pobreza mental e da aterradora ausência de espírito crítico por parte de quantos a leram e ouviram repetida ad infinitum sem experimentar ao menos um arrepio de perplexidade. Depois de ter pago uma cota para adquirir o imóvel, ainda no tempo de Lula presidente, já cidadão comum ele desistiu da compra e o apartamento hoje é de outro proprietário.

O fumacento arrazoado do promotor Dallagnol basta para fazer do ex-presidente “o comandante máximo” da corrupção na Petrobras? Tanto mais porque a gravíssima acusação nasce da “convicção” dos pregadores curitibanos, a brandirem infográficos de dar inveja em jornalões e revistões nativos?

Parece sandice acreditar no acerto da denúncia, mas neste parvo Brasil haverá quem acredite, mesmo porque o desenho do golpe, ao alcançar Lula, atinge o alvo final da farsa trágica e o indiciamento do candidato favorito às próximas eleições presidenciais e líder do PT, figurava nas previsões até do mundo mineral. O impeachment de Dilma Rousseff é apenas uma passagem da encenação urdida em proveito da casa-grande com o preciso propósito de destruir o Partido dos Trabalhadores.

A operação faz sentido aos olhos dos senhores. Verdade factual: no poder o PT portou-se como os demais partidos brasileiros, mas os graúdos insistem em enxergá-lo como a agremiação da ralé, único entrave possível à criação do Estado mínimo, à sujeição total aoneoliberalismo, à genuflexão ao deus mercado.

Não é por acaso que Lula comandou o melhor governo pós-ditadura, ao dar passos importantes para reduzir a monstruosa desigualdade social que caracteriza o País. E também ao praticar uma política externa independente, desatada do interesse de Tio Sam.

O indiciamento de quarta-feira 14 confirma a participação dos magistrados curitibanos nogolpe ainda em andamento. Participação canhestra, eivada de irregularidades e concluída por um indiciamento inepto à luz da lei.

Penoso resultado, para não dizer risível, de um golpe que uniu Justiça, na instância regional e na Suprema, Polícia Federal, Congresso, empresariado rentista, mídia nativa. Manobristas descarados de um processo que escolhe o culpado antes de definir a culpa.

Difícil estabelecer a hierarquia dos responsáveis por tanto descalabro. Causa-me extrema vergonha de cidadão ofendido, e de jornalista humilhado pela amoralidade dos ditos colegas, o desempenho do Supremo Tribunal Federal, teoricamente sentinela da lei. Teoricamente.

Ao longo deste penoso episódio, até agora não encerrado, a Suprema Corte entregou-se sem mossa a um silêncio aterrador, quando, a bem da sacrossanta verdade, compete-lhe a análise do mérito dos passos dados nos mais diversos quadrantes, em defesa da Constituição. A Carta foi, e continua a ser rasgada, e o será, receio, sem que o STF cumpra seu dever.

O indiciamento é a bola rolada na pequena área para que Lula chute com o goleiro batido. Permito-me, porém, não entender a presença do ex-presidente à posse da ministra Cármen Lúcia no comando do Supremo, a significar respeito por quem o desrespeita.

Pergunto-me se o ex-presidente se deu conta de que estava a legitimar o golpe também tramado naquele canto da Praça dos Três Poderes, habitado por figuras de toga dispostas a trair seu compromisso para atuar politicamente e discutir matérias em julgamento.

Ainda ecoam os anátemas de Dallagnol, exemplar perfeito dos brasileiros a viver uma espantosa crise mental. País à matroca, devolvido ao seu tempo mais remoto, dos aborígenes crentes do valor das miçangas, ou dos escravos vergados pelo peso da chibata.

A casa-grande aposta na natureza de muitos prontos a engolir o insulto, quem sabe sem lhe entender o significado. Os senhores confiam na ignorância e na credulidade e não hesitarão em chegar às últimas consequências. Que se cuidem Michel Temer e seus asseclas, nesta operação não passam de peões.

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