Luis Nassif // http://jornalggn.com.br/
Nos anos 90, entrei em uma lista de procuradores da República, para me defender de críticas pelo fato de ter condenado, na época, o uso abusivo da prisão preventiva. Uma subprocuradora me enviou um e-mail pessoal, contando as agruras dela com alguns colegas. Dois procuradores adversários enviaram uma denúncia em off para o Correio Braziliense. Com base na denúncia, fizeram uma representação contra ela na corregedoria.
Li o relato, e, embora nada soubesse da subprocuradora, confirmei e denunciei a manobra, por abusiva.
Tempos depois, participei de um programa do Observatório da Imprensa com um procurador penal que atuara do caso Banestado, justamente para discutir o papel do MP. No ar, ao vivo, ele dispara:
- Este jornalista defendeu uma subprocuradora que foi a última pessoa que autorizou o repasse para as obras do TRT em São Paulo. E ele atacou o pedido de prisão preventiva dos empresários suspeitos. Logo, é cúmplice do golpe do TRT.
Agradeci ao Alberto Dines a oportunidade de uma análise de caso, ao vivo. Ao vivo, mostrei o ridículo das ilações e ponderei: se eu não estivesse ali, para rebater na hora as insinuações do procurador, qual seria o resultado final? Ficaria a suspeita lançada.
Do início do Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência) para cá, tanto a PF quanto o MPF receberam instrumentos poderosíssimos de investigação:
· A integração com a fiscalização do BC, COAF, TCU e Receita.
· A cooperação internacional, com acesso a contas em paraísos fiscais.
· O Instituto da delação premiada.
· A tecnologia de trabalhar com grandes massas de informação.
· Aprenderam a usar o Power Point.
Falta apenas um dado para completar o quadro: capacidade analítica, que, pelo visto, pouco mudou.
O que se vê, hoje em dia, além do partidarismo político, é muito amadorismo nas investigações, falta de conhecimento sobre o objeto investigado, com delegados e promotores enfiando provas à martelada, para conseguir montar relações de causalidade entre fatos muitas vezes completamente distintos.
Desmoralizam os suspeitos junto ao público leigo, e as investigações junto ao público bem informado. Pior, criam o efeito manada graças a uma imprensa igualmente sem filtros, deixando o Judiciário entre ou analisar tecnicamente as provas apresentadas ou se submeter ao clamor da besta, a multidão bestializada querendo linchamentos a partir das análises disseminadas.
Hoje em dia, a investigação penal se resume aos meios:
1. Escuta telefônica.
2. Delação pressionada.
3. Quebra de sigilos fiscal e bancário.
4. Montanha de dados fornecidos por diversos órgãos, e que são submetidos – pelos exemplos tornados públicos – a análises simplórias, sem nenhuma sofisticação analítica, tipo pão-pão queijo-queijo, ou forçando ilações inexistentes.
Para entender melhor seu método de investigação, vamos dissecar de novo a “teoria do fato”, que está na base das investigações do MPF, e já foi analisada em outro Xadrez.
Passo 1 – a teoria do fato
Trata-se de um método – a "teoria do fato" (não confundir com a teoria do domínio do fato) – que, intuitivamente, sempre utilizei na investigação de fatos complexos – aqueles que geram uma grande quantidade de informações. Descrevo ela no livro “O Jornalismo dos anos 90”, no capítulo referente à CPI dos Precatórios.
Quando já se tem uma quantidade suficiente de indícios, monta-se uma hipótese de trabalho, o que facilita colocar ordem no raciocínio e, a partir daí, a seleção das informações a serem filtradas.
Se a teoria não consegue enquadrar determinada informação, muda-se a teoria, é claro.
Não parece ser o método do MPF e da PF.
Antes de começar a investigar os investigadores montam uma hipótese de partida, e apegam-se a ela como se fosse matéria de fé. Julgam que qualquer correção da rota inicial poderá ser interpretada como erro. Insistindo na narrativa inicial, acabam forçando a barra, minimizando informações que não a confirmem, e forçando a busca de evidências que a reforcem. E daí que decorre esse bordão de “não temos provas, mas temos convicção” que, ao contrário do que parece, não é uma postura isolada, mas uma posição recorrente de investigações apressadas ou pré-endereçadas.
Por exemplo, no escândalo dos precatórios (que descrevo no livro “O jornalismo dos anos 90”), a hipótese de uma certa cobertura pavloviana de Brasília, era a de que a prefeitura de São Paulo, na gestão Paulo Maluf, montou a primeira operação. Um pequeno banco do Rio teria aprendido a fórmula, cooptado um funcionário da Secretaria das Finanças e replicado em diversos outros estados.
Era uma teoria do fato que livrava Maluf e deixava a bomba explodir no colo do banco e do funcionário. Mas era claramente insuficiente para explicar alguns pontos.
Como um pequeno banco do Rio, sem nenhuma expressão, conseguia que a CAF (Comissão de Assuntos Financeiros do Senado), presidida pelo notório senador Gilberto Miranda, aprovasse o aumento do endividamento de estados e municípios (base do golpe), chegando a movimentar R$ 5 bilhões? E, depois, fosse bater nos principais estados do país?
À medida que surgiram novos fatos, consegui formular uma nova narrativa.
O golpe foi planejado por empreiteiros com o prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, valendo-se de uma interpretação forçada de dispositivo transitório da Constituição de 1988. Maluf montou a jogada em conluio com o presidente da Comissão de Finanças do Senado, Gilberto Miranda, com quem já havia aplicado outros golpes em parceria (como o dossiê Cayman). Vendo que dava certo, terceirizou a venda para outros estados através do banco Vetor, do Rio de Janeiro, e colocou o tal funcionário da Prefeitura como intermediário dele, Maluf, junto ao banco.
Pouco tempo depois, o advogado Márcio Thomas Bastos me apresentou seu cliente, justamente o funcionário de carreira da Prefeitura que estava pagando o pato. Ele me confirmou que fazia o meio campo entre Maluf e o banco, tratando diretamente com Maluf e passando por cima do Secretário de Finanças Celso Pitta – outro para quem quiserem empurrar a culpa.
Se aparecesse nova evidência, mostrando outra realidade, mudava-se a hipótese, não os fatos.
Um dia, ainda, o senador Roberto Requião vai me contar o que o levou a desconsiderar essa conclusão no relatório final da CPI, a quem coube a ele redigir.
Essa inflexibilidade de ficar preso à primeira versão explica os grandes crimes de imprensa que narro no livro. Escola Base, Bar Bodega e tantos outros ocorreram porque os editores se apegaram à primeira versão e não quiseram corrigir o rumo, à medida em que apareciam outros dados.
No entanto, esse vício de investigação tornou-se padrão no MPF e na PF, especialmente em investigações sobre corrupção política, por um desconhecimento rotundo do objeto investigado e também para abrir espaço para jogadas políticas.
Peça 2 – as formas de parceria política
Coalizão é elemento essencial de governabilidade em qualquer democracia. E consiste em montar alianças com outros partidos, oferecendo-lhes participação no governo, com cargos no Ministério ou em autarquias, empresas e entidades públicas.
Em momentos de fragilidade política – FHC pós maxidesvalorização e Lula pós-mensalão, o Executivo fica mais vulnerável às chantagens políticas. E é obrigado a fazer mais concessões.
Grosso modo, há duas utilizações possíveis: uma legal, embora transitando na zona cinzenta; e outra claramente criminosa.
Fórmula A – as parcerias institucionais
A empresa A faz doações ao partido B – esteja ele na Presidência ou à frente de um Ministério ou uma estatal - para obter sua boa vontade de maneira geral e ajudar a influir em políticas públicas do seu interesse.
Não se pense em pactos em torno das excelsas virtudes públicas. São jogos de interesse que são parte integrante de todas as democracias, garantem a eleição dos políticos e a governabilidade. O papel das empreiteiras norte-americanas no Iraque, o complexo industrial-militar por trás das guerras, a influência dos grupos econômicos no Departamento de Estado ou na CIA, para competir com adversários estrangeiros, tudo isso faz parte desse modelo de atuação.
Quando se entrega um cargo para um indicado por político, a responsabilidade é do político e do seu indicado.
Embora transite em uma zona cinzenta, este é o modelo usual de praticar pactos políticos. É intrínseco a qualquer democracia.
Fórmula B - a propina
Aqui se entra no terreno pena propriamente dito.
A Empresa A paga uma propina ao Político ou Partido B em troca de um contrato específico. Nesse caso, tem-se um crime comum caracterizado: a figura do subornado, do subornador e do objeto de suborno, o contrato firmado. É o que está nítido na ação política na Petrobras, envolvendo vários partidos, entre os quais o PT, o PP e o PMDB.
Peça 3 - a jabuticaba da PF e do MPF
Procuradores e delegados da Lava Jato misturam os dois fenômenos com cabeça de funcionário público seguidor de manual, que precisa de qualquer jeito encontrar as figuras clássicas que caracterizam o ato de corrupção: o subornador, o subornado e o objeto alvo do suborno.
Fazem assim:
1. Levantam doação eleitoral de uma determinada empresa a um determinado candidato.
2. Os nossos Sherlocks vão atrás de qualquer medida que possa ter beneficiado a empresa. Pouco importa se são medidas genéricas, beneficiando todo um setor, se passaram por várias instâncias de aprovação, se as decisões não estão sob o controle direto do acusado. Tem que encontrar qualquer uma para completar a lição de casa. E, como usam muito pouco a capacidade analítica, escasso conhecimento de mecanismos financeiros ou de políticas públicas, o que cai na rede é peixe.
É por aí que se entende tentar criminalizar financiamentos de exportação de serviços do BNDES, a diplomacia comercial de Lula na África, e até o fato de Lula ter intercedido junto a um presidente mexicano por uma empresa brasileira e outras bobagens memoráveis – mas de óbvio impacto político.
Se Lula era presidente, a empreiteira recebeu financiamento do BNDES e contribuiu com a campanha eleitoral, logo se tem o subornado (Lula), o subornador (a empreiteira) e o objeto de suborno (o financiamento). É essa a lógica, que vale para toda a cadeia de comando. Serve para criminalizar o presidente, o Ministro a quem o BNDES está subordinado, o presidente do BNDES, o diretor de área. Mesmo que seja uma operação absolutamente legal e prevista nas linhas de financiamento do banco.
Nenhum juiz sério endossará essas ilações. Mas o objetivo político é atingido, através do pacto com a mídia e da escandalização.
Analisem-se dois episódios da Operação Acrônimo, que move perseguição implacável contra o governador de Minas Gerais Fernando Pimentel.
Caso 1 - a CAOA, fabricante de automóveis, contribuiu para sua campanha para governador de Minas. Como provavelmente contribuiu para candidatos de outros partidos. Aí, delegados vão atrás de alguma medida que tenha beneficiado a CAOA enquanto Pimentel era Ministro do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Encontram uma medida provisória assinada pela presidente com benefícios para montadoras fora do circuito São Paulo-Minas. A tal MP beneficiou todas as montadoras que se enquadravam, foi aprovada por todas as lideranças do Senado - incluindo os senadores da oposição -, tem uma justificativa de ordem regional. Pouco importa: encontraram a causa-efeito para fechar o raciocínio e é o que basta. É a lógica do pertinaz procurador que participou do Observatório da Imprensa.
Caso 2 - A Odebrecht contribuiu para a campanha de Pimentel, assim como para metade do mundo político. O que levou em troca? Segundo a Acrônimo, financiamento do BNDES para obras na África. Era uma linha disponível para todas as empreiteiras, dentro da política de exportação de serviços. O financiamento passa por diversas instâncias de análise, por quadros técnicos de carreira, tem sua sistemática, sua dinâmica, seus procedimentos impessoais. A Odebrecht teria conseguido o financiamento mesmo que tivesse bancado apenas a campanha do candidato do PSDB. Pouco importa: o BNDES estava sob o comando do MDIC; Pimentel era Ministro do MDIC; logo, foi ele quem deu ordem para o BNDES aprovar o financiamento. E levam essa bobagem para o tribunal da mídia. Afinal, como diz o Procurador Geral da República (PGR) Rodrigo Janot, pau que bate em Lula, bate também em Pimentel. Ops, enganei-me?
Peça 4 – o jogo da convicção política
Não é apenas falta de raciocínio investigatório que explica esse primarismo das denúncias por “convicção”.
Quando se obriga a denúncia a ser embasada em provas, não têm discussão, há pouca margem para o arbítrio. A prova é a comprovação do crime. Tendo a comprovação, denuncia-se o suspeito. Não tendo, não se denuncia.
Quando a denúncia se baseia na “convicção” do acusador, ele passa a ser o dono do julgamento. Utiliza a “convicção” como quiser, para denunciar inimigos e para absolver os aliados.
Não se venha com a história de que o sistema judicial é tão perfeito que os erros do MPF serão corrigidos pelo Judiciário. Está-se falando em episódios com efeitos políticos óbvios e imediatos, com tratamento escandaloso por uma mídia que, assim como o PGR, também tem lado.
Comparem os argumentos da Lava Jato contra Lula, por exemplo, com os argumentos invocados por Rodrigo Janot para não denunciar Aécio Neves na primeira leva de denúncias da Lava Jato que chegou ao STF.
O delator-mor, Alberto Yousseff, contou que o deputado José Janene - para quem ele trabalhava - declarou que recebia US$ 100 mil por mês de Furnas e Aécio outros US$ 100 mil. Disse o nome da empresa por onde transitava o dinheiro, a Bauruense. Declarou o destino final, Andrea Neves.
Tinham-se todos os ingredientes: o suspeito de ser subornador, o subornado, o objeto do suborno e, ainda, o nome da lavanderia e do destinatário final. E tudo devidamente informado por um dos operadores centrais do esquema.
O que disse Janot:
· Prefacialmente, há se ver que os fatos referidos são totalmente dissociados da investigação central em voga, relacionada à apuração dos fatos que ensejaram notadamente desvios de recursos da Petrobras. A referência que se fez ao Senador AÉCIO NEVES diz com supostos fatos no âmbito da administração de FURNAS.
Equivale a um delegado que vai investigar receptação de bens roubados, chega na casa do receptador e encontra provas de diversos outros assaltos, mas deixa de lado porque seu trabalho é investigar apenas um determinado roubo. Um trabalho sério no mínimo abriria um inquérito à parte para investigar a denúncia.
· O caso em tela tem uma caraterística fundamental que merece o devido e prudente sopesamento no presente momento. É que as afirmativas de Alberto Youssef são muito vagas e, sobretudo, assentadas em circunstancias de ter ouvido os supostos fatos por intermédio de terceiros (um deles, inclusive, já falecido: José Janene).
A denúncia sobre o suposto de tríplex se baseou no depoimento de um porteiro que viu Lula visitando o apartamento ao lado de Léo Pinheiro. A de Yousseff não tinha nada de vago: partiu de um dos operadores dos esquemas de corrupção das empreiteiras, principal operador do deputado que dividia as propinas com Aécio e veio acompanhada das informações fundamentais para uma investigação rápida. Janot tinha todos os dados, mas não tinha a convicção.
· Outro detalhe relevante: a referência de que existia uma suposta “divisão” na diretoria de Furnas entre o PP e o PSDB – o que poderia ensejar a suposição de uma ilegítima repartição de valores entre as duas agremiações – não conta com nenhuma indicação, na presente investigação, de outro elemento que a corrobore".
Há um inquérito correndo em Minas Gerais, conduzido pelo próprio Ministério Público Federal, com enorme profusão de dados sobre a corrupção em Furnas. Janot sequer levantou as informações já apuradas pelo inquérito.
· No entender do Procurador-Geral da Republica, (...) não há sustentação mínima para requerimento de formal investigação.
Janot tem alguma dúvida de que o modelo aplicado pelo governo Lula também o foi em Minas de Aécio Neves, em São Paulo de José Serra e Geraldo Alckmin, em, Furnas, no DER? Evidente que não. Ao contrário dos jovens curitibanos, Janot goza da proximidade do poder e é “malaco” (designação das pessoas sabidas).
Daqui a dez anos, quando Janot decidir denunciar Aécio, qual o efeito prático da medida? A manipulação consiste em administrar o prazo, é óbvio.
Peça 5 – a manipulação das delações
Vamos sair um pouco da Lava Jato e analisar o que ocorreu com o Maestro John Neschling, reputado internacionalmente.
Ele identificou irregularidades na fundação que administra o Teatro Municipal. Comunicou ao prefeito Fernando Haddad. Foi acionada a corregedoria do município que descobriu desvios pesados.
Foram detidos dois suspeitos, José Luiz Herencia, diretor da fundação IBGC (Instituto Brasileiro de Gestão Cultural) e William Nacked, acusados de desvios de F$ 15 milhões.
Não havia nenhuma dúvida de que eram os autores do golpe. Tanto que o Ministério Público Estadual aceitou uma delação premiada. O que fazem os dois? Denunciam supostas irregularidades de Neschling e do porta-voz do Prefeito, Nunzio Briguglio.
Aí o MPE começa a montar suas peças de convicção, a partir das delações do cabeça da organização criminosa, Herencia:
1 O maestro trabalha com alguns produtores na Europa, que têm autorização para agenciar apresentações suas.
2 São poucos os produtores mundiais que agenciam os grandes espetáculos.
3 O Municipal contratou uma infinidade de espetáculos, alguns dos quais de um desses produtores.
4 Como há interesses políticos em jogo, imediatamente dois picaretas confessos se tornam os acusadores, fazendo jus a eventual redução da pena. Seus nomes desaparecem do noticiário e o foco passa a ser Neschling. E o prefeito Fernando Haddad, em um momento lamentável de fraqueza, demite Neschling com receio de que sua candidatura seja prejudicada.
Esse tipo de episódio foi utilizado abundantemente pela Lava Jato e pelo PGR. Hoje em dia, restam poucas dúvidas de que o objetivo maior das delações não é punir os corruptos, mas torna-las instrumento de jogo político.
Pergunto: é para reforçar esse jogo que se pretende aprovar as tais Dez Medidas Contra a Corrupção?
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