domingo, 4 de setembro de 2016

A professora se deu ao trabalho de ver o Jornal da Globo. E descobriu como a emissora vende as “reformas” de Temer: ou faz, ou faz

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A felicidade não é completa – uma hora e meia na TV Globo

Por Priscila Figueiredo*

Na edição do Jornal da Globo da última quarta-feira, quando a votação dos senadores decidiu pelo impeachment de Dilma Rousseff, William Waack surgiu como tendo tirado um grande peso das costas. Não só ele, na verdade.

A sua locução mais tarde, no bloco tradicional dos gols da rodada, continuaria naturalmente a tonalidade do bloco político. O céu se abriu no jornal e quase sem nuvens seguiria no programa seguinte, com Jô Soares e sua bancada agora de seis moças, risonhas e concertadas.
Não se percebia nem sinal de rivalidade ou outra dissonância – estavam era indignadas com o fatiamento da votação pelo ministro Lewandovsky: “A Constituição de 88 foi rasgada”, dizia o humorista.

Foi quando esfreguei os olhos e espetei o ouvido meio entupido na esperança de que assistisse a alguma ousadia, alguma travessura, mas então ele explicava: como para Collor valeu uma coisa, e para Dilma outra, que, ao contrário dele, não teve cassado o direito de exercer cargos públicos por 8 anos?

Interpretou-se que a decisão abria precedente para o julgamento de Cunha. “A Constituição que Ulisses Guimarães veio me trazer logo depois de pronta, com a sua assinatura, foi rasgada!”.., repetia Jô Soares desconsolado.

Nada mais, simplesmente nada além da dissociação do cumprimento do artigo 52 em dois pleitos, era lembrado como indício de que a Carta era letra morta e revirada.

Fiquei pensando se teria sido uma estratégia para despistar a censura do patrão global a ponto de, caso víssemos um replay daqui a algum tempo, com a poeira assentada, nos pareceria óbvio que a única frase importante fora então A Constituição de 88 foi rasgada – um farol no mar de justificativas anódinas que o apresentador pusera na mesa junto com as suas assistentes.

Como um Chacrinha irônico, dava uma piscadela rápida para nós, os bons entendedores para os quais uma frase expressiva bastava, uma única no deserto, e o resto do discurso então se revelava, com o recuo no tempo, mero ornamento para entreter os de compreensão mais vulgar.

Que soubéssemos nos apegar ao essencial, pois este não nos seria tirado. Conformei-me com a pérola e desliguei a TV bem pouco depois, ainda no início do talk-show.

Pouco antes, na gazeta das onze horas, Sardenberg aparecia explicando euforicamente, com o uso da lousa digital e logo depois do pronunciamento de Temer, por que as privatizações, as reformas trabalhistas e previdenciárias seriam essenciais: não é que o governo vai fazê-las porque escolheu fazê-las, mas porque não tem outra alternativa, é a realidade batendo na porta – ou faz ou faz,frase que logo virou um bordão, ecoado também por outros enunciados de valor semelhante, que insistiam no destino irretorquível, no fatum diante do qual não havia decisão ou autonomia, apenas sujeição humilde à Agenda que se impõe.

Uma tragédia se abaterá sobre o país caso se escape dessa exigência, mas o novo presidente, destituído de pretensões autorais ou ideológicas, é um homem resignado, que se curva a sua missão, dizia a Voz do Brasil.

O economista, ainda olhando para o âncora, e não para nós, nos mandava um recado entre parênteses: é, o presidente não contou que essa reforma previdenciária vai significar que as pessoas trabalharão mais, se aposentarão mais tarde, contribuirão mais. Sim, o presidente não entrou nesses detalhes, mas o analista então vai nos explicar – é sua função, não é mesmo? Alguém tem de nos dizer… 

É verdade que o faz meio correndinho, by the way, a título de lembrete: ah, por falar nisso...

A concisão de Temer, que não mencionou o quanto tais reformas produziririam de sofrimento social, é então um pouquinho desdobrada na conversa fechada com Waack, face contra face, nenhum se dirigindo a nós explicitamente.

É sem dúvida uma informação importante, mas não é tãaao importante assim, que exigisse quebra da “diegese” e olho no olho da câmera.

É verdade que nem os jornalistas nem Temer contaram dessa vez que as pensões seriam desvinculadas dos aumentos no salário mínimo, tampouco que não haveria diferença para homens e mulheres (deve ser este, aliás, o único item de todo o governo em que há igualdade de gênero).

Enviesadamente, de todo modo, éramos informados que trabalharíamos mais, nos aposentaríamos mais tarde, contribuiríamos mais.

Era fácil concluir que a vida ficaria mais dura e instável – também sob aquilo que não hesitavam em chamar “modernização das relações trabalhistas”.

É preciso tirar os obstáculos para efetivar plenamente a terceirização, refletia o comentarista.

Mas antes que ficássemos tristes com as perspectivas, ele se apressava em esclarecer e ajuizar: sim, não tem jeito, terá de ser assim porque, do contrário, não haverá dinheiro para os aposentados no futuro.

Ou faz ou faz, né?, resumiu Waack, aplicando o fecho de ouro. Exatamente!, confirmou o colega, satisfeito. E o sinete da noite se consagrava. Terá de ser assim, pois, do contrário…

Não parecia tão grande a diferença entre “assim”, aquilo que virá logo, o futuro imediato, e “do contrário”, a hecatombe a ser evitada. Tinha até certa graça que a condição para nos salvar daquilo que nos ameaça parecia tão próxima daquilo que justamente nos ameaça. Talvez porque formem o mesmo futuro, apenas fatiado.

A verdade é que tudo se passou muito rápido e não nos deu tempo pra pensar nessas coisas. Sentia-se no entanto uma pontinha de angústia em todo o programa – nem todo idílio é perfeito, e sempre paira uma sombra da realidade que ele reprimiu.

Na seção dos “problemas políticos” da tipologia proposta pelo infográfico ultraconciso (havia os internacionais, os econômicos etc.), constava a ferocidade da oposição, palavra que se repetiu mais de uma vez no jornal, assim como o termo pacificação, usado pelo ex-vice — sinônimo da velha reconciliação ou um valor mais alto que se alevanta?

Seria algo como a universalização das UPPS com o fim de produzir consenso?

Não consigo descolar o termo dos nefandos caveirões, mas talvez Temer consiga.

Em todo caso, como aqueles que Waack chamou de vândalos em certo momento, inconformados com a consumação do golpe e exibidos pelas imagens incendiando lixeiras e quebrando vidros de banco (sempre coisas, e não pessoas, estas, no entanto, atacadas e feridas pela PM, sempre em “justo restabelecimento da ordem”), a palavra ferocidade, porque escrita com todas as letras no quadro e evocando as imagens da pancadaria, mostrava garras e dentes, adquirindo virtualidades curiosamente icônicas.

O governo indesejado tinha caído, mas o endurecimento da oposição ao governo usurpador, oposição petista ou não, também não seria desejável, e antes vinha constituir um lamentável obstáculo – era, aliás, por isso que sua expressão tinha merecido lugar entre uns poucos vocábulos no quadro, todos na verdade obstáculos, em que seria preciso se concentrar para então eliminar.

Ela de vermelho, dizendo em seu discurso pós-impeachment que vai voltar, “até breve”, isso não é estranho? Ela pode mesmo voltar?, perguntou Waack a outro nume, cuja aparição, projetada de Brasília, ocorria numa tela mais ampla e imaterial, imagem dentro da imagem: ela não, mas o PT, sim.

O Lula ainda tem estofo, como lembrou o deputado Humberto Costa. O futuro do PT, William, depende mais do que nunca de Sergio Moro. Creio que ouvi acordes insonoros. Sorriram levemente, as sobrancelhas de um acenaram às do outro. Fim de bloco, mas não do programa.

O senhor imaginava que um dia seria presidente?, pergunta pitorescamente o repórter ao fim de uma curta entrevista com… Rodrigo Maia, depois de ter sido exibido o replay de Temer assinando a posse.

Enquanto fazia a narração sobre as imagens retransmitidas, a banda sonora com a voz do repórter, situado no lado de fora da sede do Senado, não teve como filtrar os contínuos gritos de golpistaque soltava um homem não visível no quadro, talvez de dentro do prédio.

Foi um tempo longo, mas nem Heraldo Pereira nem o apresentador perdiam o rebolado, e nem precisava na verdade.

Além do quê, os presidentes se multiplicavam alegremente na tela: não era mais Dilma, era Temer, não era mais Temer, era Maia. Devia ser mesmo tudo uma ilusão.

Muitos ali, na câmara alta ou baixa, devem ter começado a sonhar que uma hora também poderia lhes acontecer o mesmo: “Você imaginou que algum dia chegaria a presidente?”. O caminho, antes atravancado pelo instituto das eleições, estava aberto.

Num dos intervalos, ora o anúncio de uma série, Justiça, ora de um reality show que promete, a ocorrer no interior de um presídio de segurança máxima.

O logo da Globo aparecia esculpido na pedra cinza do edifício sem reentrâncias, desenhado em computação gráfica e através do qual voávamos no embalo de uma espécie de travelling vertiginoso e centrífugo, cuja carreira fazia descer atrás de si, como guilhotina, um a um dos sólidos portões de ferro.

Ouvíamos o som cortante a cada queda. O título, Supermax, em princípio não designa nada, coisa ou pessoa, é só um duplo intensificador – poderia ser o nome de uma marca, um anabolizante, um videogame, um acelerador de partículas, um aparelho de derreter gorduras.

Poderia indicar também um super-herói ou super-homem, embora, como significante, não muito diferente de hipermega, já não estampasse mais a memória do homem ou qualquer imagem antropomórfica.

A ênfase está no superlativo, no dispositivo que otimiza uma natureza, ação ou função.

No contexto, é o nome da instituição punitiva, ou do tipo de instituição, tão inapelável como aquilo que não tem nome.
*Priscila Figueiredo é escritora e professora de Literatura Brasileira na USP.

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