quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Afranio Silva Jardim: Análises políticas e conjecturais não ficam bem em uma denúncia

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Análises políticas e conjecturais não ficam bem em uma denúncia

por Afrânio Silva Jardim


Confesso que, passadas mais de duas horas da madrugada, ainda não consegui ler toda a denúncia que o Ministério Público apresentou, em Curitiba, contra o ex-presidente Lula, sua esposa e várias outras pessoas.

Confesso, ainda, que estou com dificuldade mesmo de extrair desta abundante narrativa quais são exatamente as condutas que são imputadas aos réus.

São 149 páginas de narrativas, as mais variadas e abrangentes, sobre esquemas de corrupção que se protraíram por mais de uma década em nosso país. Algumas passagens são repetidas de forma inexplicável.

O formato desta peça acusatória é totalmente atípico. Mais se parece com o relatório que os delegados de polícia têm de apresentar ao final do inquérito ... Por vezes, esta denúncia lembra também um longo arrazoado. Poderia ser uma alegação final ou contra-razões de algum recurso ..., ou seja, uma peça processual postulatória, mas não a peça inaugural de um processo penal.

Fui promotor de justiça por 26 anos (mais 5 como Procurador de Justiça) e nunca tinha visto o exercício da ação penal desta forma, através de uma denúncia com este formato estranho.

Como professor de Direito Processual Penal, em uma prova prática, reprovaria o aluno que redigisse uma denúncia desta forma ...

A boa técnica recomenda, tendo em vista o disposto no art. 41 do Cod.Proc.Penal que, na denúncia, o órgão acusador faça imputações certas e determinadas, individualizando as condutas no tempo e lugar. É preciso que o réu saiba exatamente do que está sendo acusado para poder se defender de forma eficaz.

Fica até difícil entender por que a acusação precisa de 149 folhas para descrever as condutas penalmente típicas que atribui aos réus. Análises políticas e conjecturais não ficam bem em uma denúncia, como peça inicial de um processo criminal.

Pelo adiantado da hora, parei de ler estas narrativas infindáveis, cheias de adjetivos e poucos verbos, (condutas dos imputados).

Confesso que não compreendi bem as acusações. Fiquei meio perplexo com o que estava lendo. Não é assim que devem ser elaboradas as denúncias no processo penal. Repito: denúncia é diferente de alegações finais ou relatório de delegados ...

Como levar mais de 3 horas para ler uma denúncia e não conseguir chegar ao seu final, não conseguir extrair com clareza as acusações, que devem ser precisas e individualizadas? As argumentações devem ser feitas ao final do processo, com análise da prova carreada para os autos.

Tenho a impressão de que a desmedida extensão desta denúncia tem como escopo disfarçar a fragilidade de seu conteúdo acusatório.

Enfim, como ainda não entendi o teor desta infindável acusação, por ora, limito-me a criticar o formato da denúncia, formato este que torna quase que impossível serem entendidas as imputações específicas das condutas de cada um dos acusados. Forçoso é reconhecer que esta peça processual carece da mais comezinha técnica.

Nada obstante, já podemos dizer algo sobre o mérito das acusações, ainda que de forma resumida e superficial:

1 – Não faz muito sentido dizer que o ex-presidente foi o “general” ou “maestro” de um esquema bilionário de corrupção e fraudes para receber de propina benefícios que chegariam a pouco mais de dois milhões de reais. Tais benefícios se traduziriam em pagar o transporte e armazenamento de móveis e presentes que o Lula teria recebido como presidente e mais uma reforma de um apartamento, que sequer ele teve a posse ou a propriedade;

2 – Mesmo que assim não fosse, tudo isso não caracterizaria o crime de lavagem de dinheiro, pois tal numerário não entrou no patrimônio do ex-presidente Lula. Por isso, não usou ele dinheiro de propina de forma a disfarçar a sua origem criminosa. Nem isto diz a denúncia. Assim, tais benesses da OAS seriam apenas o próprio pagamento da alegada corrupção passiva. Corrupção passiva esta, vale a pena repetir, alegada de forma genérica e imprecisa.

3 – No direito brasileiro, proprietário é quem tem o título translativo da propriedade registrado na matrícula do imóvel junto ao Registro Geral de Imóveis. No caso, o apto. de Guarujá está registrado no RGI em nome da empresa OAS. Note-se que a denúncia não chega sequer a alegar que o ex-presidente Lula e sua esposa tiveram, ainda que por um dia, a posse do referido apartamento. Visitar um imóvel e solicitar que nele seja feita esta ou aquela reforma não transforma o pretendente em proprietário ... Elementar.

4 – Saber que existe um ou vários crimes (e isto não está provado) não transforma a pessoa em autora ou partícipe de tais crimes. Ademais, não pode haver participação por omissão em crime comissivo. Também aqui é elementar ...

5 – O direito penal dos povos civilizados não aceita a chamada responsabilidade penal objetiva. Ninguém pode ser responsabilizado penalmente pelos crimes que seus subalternos teriam praticado. A responsabilidade penal é absolutamente pessoal. Nem precisaria dizer que isto é elementar ...

6 - Esta denúncia entra em choque com toda aquela outra narrativa feita na denúncia contra o ex-presidente Lula pelos promotores de justiça de São Paulo. Ali eles afirmam que as benesses da OAS não teriam qualquer ligação com as fraudes da Petrobrás e, sim, com fraudes na cooperativa que fora administrada pelo sr. Vacari. Esta denúncia, ao que se sabe, ainda não foi apreciada pelo poder judiciário, pois ficou pendente de decisões sobre a competência da recebe-la ou rejeitá-la. Assim, temos uma estranha e vedada litispendência ...

7 – Pelas próprias narrativas constantes da denúncia, complicadas e muito pouco claras, não teríamos a figura do concurso material de infrações e, sim, de crimes continuados. Refiro-me às hipóteses em que se diz que tais ou quais condutas teriam sido praticadas várias vezes pelo mesmo autor ou partícipe.

Enfim, está tudo muito nebuloso, inconsistente e absolutamente incorreto e frágil. Isto dizemos mesmo sem um estudo mais aprofundado da malsinada peça acusatória, que ainda não conseguimos ler em toda a sua absurda dimensão.Afranio Silva Jardim, professor associado de Direito Processual Penal da Uerj. Mestre e Livre-Docente em Direito Processual.

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