O fato de que certo setor dos Estados Unidos fica triste ao menor sinal de crítica contra os policiais e/ou militares não é novidade.
THOMAS S. HARRINGTON, counterpunch // www.cartamaior.com.br
O sapo da democracia norte-americana não está mais fervendo, está morto. Como eu sei? Observando a resposta pública às ações realizadas na semana passada pelo quarterback do São Francisco 49ers, Colin Kaepernick.
O fato de que certo setor do nosso país fica triste ao menor sinal de crítica contra os policiais e/ou militares, não é novidade. A adoração aos uniformizados tem uma longa história nesse país, especialmente nos anos desde a 2a Guerra Mundial quando nosso governo decidiu ceder sem nenhuma pretensão de preferir o republicanismo democrático ao império, e como parte integral dessa transformação, lançou um programa de gerenciamento de consenso produzido para normalizar e exaltar as virtudes de ceder prerrogativas individuais aos sempre “responsáveis” e “benevolentes” homens de azul e verde.
Mas mesmo durante os momentos mais terríveis desse período pós-guerra, havia quase sempre um considerável grupo de pessoas, em ambas esquerda e direita, que resistiam à lógica hierárquica dessa adoração porque entendiam ser incompatível com a dignidade diária da cidadania e com a busca cidadã pela democracia real.
Mas esse não parece ser mais o caso. Claro, houve muitas pessoas que vociferaram seu apoio ao direito de Kaepernick de fazer o que fez e dizer o que disse.
Mas quase cada uma das defesas que ouvi ou li na mídia tradicional estava acompanhada por longas qualificações feitas para garantir que ninguém nunca seja capaz de questionar o respeito e veneração profundos e persistentes dos defensores de Kaepernick por tudo aquilo que “nossos heróis de uniforme” fizeram por nós.
É, como muitas – tristemente, maioria liberal – posições do nosso tempo, uma pose evasiva. É produzida para fazer o defensor do atleta parecer com princípios sem ter que confrontar os problemas estruturais da nossa cultura civil pela presença de uma casta altamente armada de pessoas uniformizadas que, se formos julgar pelas declarações feitas por seu porta-voz oficial, claramente acreditam que vivem em um universo mais ético e moral do que o resto de nós.
Tomemos, por exemplo, a carta recente do líder da Associação de Policiais de São Francisco, Martin Halloran, ao presidente do São Francisco 49ers, Jed York, e ao comissário da NFL, Roger Goodell, demandando que pedissem desculpas aos inúmeros policiais que Kaepernick “desrespeitou”.
O Sr. Halloran e o povo que representa são, como têm nos lembrado pelos últimos 15 anos, servidores públicos. Isso significa que eles trabalham para nós, e são, na análise final, sujeitos à nossa disciplina, e se acharmos necessário, à nossa crítica.
Sr. Halloran, sem dúvidas encorajado pela propaganda pós 11/9 que glorifica tudo o que tem a ver com exército e polícia, mudou essa lógica democrática em sua cabeça. Como um lord medieval, convencido de seu status superior ante Deus, ele demanda que os sujeitos desarmados ajoelhem-se perante ele, e se alguns desses vassalos criticarem as sempre limpas ações do lord, que exijam perdão do mestre.
Isso é bullying, claro e simples.
O grande problema não é que existe. Parafraseando a grande professora de Galileu, “os valentões, sempre estarão com você”. O que realmente importa é como a grande massa da população, especialmente os setores mais seguros e confortáveis, escolhem responder às artimanhas de tais pessoas.
Os resultados até então não são encorajadores. Temos uma provável maioria do país a favor de punição ou silenciamento de Kaepernick. Ao seu lado, está um grupo menor, porém considerável que apóia seu direito técnico de se expressas, mas também sentem que ele não deveria ter criticado os lords tão diretamente, ou, ainda pior, apoiam sua crítica mas tem medo de dizer isso diretamente.
O grande ensaísta italiano, Indro Montanelli, uma vez alegou que para se ter uma democracia funcionando, deve-se primeiro ter democratas. Ser um democrata implica em muita coisa. Talvez o mais básico seja entender, e acreditar, que nenhuma pessoa ou grupo de pessoas, especialmente aquelas trabalhando explicitamente com a confiança pública, são fundamentalmente mais valiosas que outras.
Seja um resultado do medo, ou o complexo da nossa mídia-governo de propaganda pró-autoritarismo, parece, infelizmente, que somente uma pequena minoria dos norte-americanos ainda entende esse traço fundamental da mente democrática.
Créditos da foto: reprodução
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