sábado, 17 de setembro de 2016

Em tempos de injustiça, relembrar Saramago

Da Justiça à Democracia, passando pelos sinos

Começarei por vos contar um facto notável da vida camponesa ocorrido há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção. A lição extraível do episódio saltar-vos-á ao rosto não tarda


Por José Saramago


Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados. Em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. “Mas então não morreu ninguém?”, tomaram os vizinhos, e o camponês respondeu: “Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta.”

O ganancioso senhor do lugar andava desde há tempos a mudar os marcos de suas terras, metendo-se para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar, implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado. Decidiu anunciar a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, que todos o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada.

Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade da implantação no mundo da justiça companheira dos homens. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Esses sinos novos são os múltiplos movimentos de resistência e acção social.

Para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática consignado há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual. As mesmas razões que me levam a referir-se nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente da globalização econômica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. Se não interviermos já, o rato dos direitos humanos acabará devorado pelo gato da globalização econômica.

E a democracia? Ouço muitas vezes argumentar que será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. É verdade quepodemos votar, escolher os nossos representantes no parlamento. Mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, que seu voto não tem qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, o seu país e a sua pessoa: o poder económico.

Que fazer? Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, é urgente promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.

Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar.

Resumo da carta, em versão original, enviada pelo escritor para o ato de encerramento do II Fórum Social Mundial, Porto Alegre, 5 de fevereiro de 2002

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