sexta-feira, 16 de setembro de 2016

"G-20 de Xi" e um mundo à beira de mudança radical

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Dessa vez, o G20 foi diferente. Intencionalmente diferente. Os chineses prepararam tudo e planejaram o encontro para ser o que foi. Mesmo assim como sempre nas reuniões do G20, houve pouco de tangível a mostrar, deles todos. Nada de grandes soluções. Nada de progressos 'à margem do G20' das discussões sobre Síria, Ucrânia, Iêmen, ou sobre tramoia para manipular o mercado do petróleo. Só o Comunicado de sempre, pré-cozido, insosso, sobre a necessidade de crescer. Principalmente, os participantes reencenaram cenas que todos conhecem bem (caso das discussões sobre Síria e Ucrânia: Merkel e Hollande sentiram certo incômodo ao ter de falar com Putin sem a presença de Poroshenko - apesar de a presença dele ter sido anunciada). Assim sendo, em que sentido esse G20 foi diferente? 
Bem, se se escuta atentamente, ouvem-se os passos da mudança - de uma nova 'ordem' que se apronta, ela mesma, para subir ao palco (no momento aprazado). O som desses passos foi deliberadamente 'suavizado' - concebidos para dar tempo para que surja, por meios pacíficos, uma nova liderança global. A expressão-senha foi 'mudança sem tumulto'.

O mais diferente é que foi G20 distintamente chinês. A China não apenas hospedou o G20, para que os EUA chegassem, marcassem o ato com a solenidade da sua 'liderança', assinassem os documentos para 'oficializá-los' e decolassem. Nada disso. Nesse G20 de 2016 a China deixou ver com perfeita clareza que a China estava na liderança e para reforçar, fez questão de garantir que o mundo entendesse que, sem sombra de dúvidas, o convidado de honra era o presidente da Rússia, não o presidente dos EUA (o qual, lamentavelmente, passou por dificuldades técnicas que tiraram o brilho da cerimônia de chegada). Havia ali um objetivo mais profundo: sublinhar a coordenação estratégica com a Rússia, no contexto da nova liderança global chinesa.

Para assegurar que toda a atenta coreografia do G20 não passaria despercebida no ocidente, o presidente Xi telegrafou a essência da de sua mensagem no G20 já quando falou ao Partido Comunista Chinês, no aniversário de fundação, cerca de um mês antes. Naquela cerimônia, o presidente Xi disse ao Partido que "O mundo está à beira de mudanças radicais. Vê-se que a União Europeia se vai desmontando, e a economia dos EUA está em colapso. Disso tudo surgirá uma nova ordem mundial". Repetiu no G20, falando aos chefes de Estado, que o mundo está em "impasse crítico", pela demanda em queda, mercados financeiros voláteis e comércio e investimentos em níveis baixos. Alertou contra a tendência atual em direção ao protecionismo e disse que a ameaça que advém de mercados muito altamente alavancados é grave. 

E fez duas outras coisas: sugeriu que a globalização seja definida de modo mais geofísico, não à moda financeirizada do Ocidente. E também propôs que as regras de comércio não sejam prerrogativas exclusivamente dos EUA, mas realmente construídas em conjunto pelos ministros de Comércio do G20 em trabalho realmente conjunto (tarefa que já começaram a executar, tentando fixar nove princípios chaves). 

Adicionalmente, Xi conseguiu pressionar com sucesso para que o G20 defina as reformas necessárias para instituições financeiras internacionais - em essência, pressionando a favor de distribuição mais equitativa de poder e status nas organizações financeiras internacionais.

Em resumo, dado que (i) medidas monetárias convencionais (como o "alívio quantitativo") e não convencionais (como a compra de ações pelos Bancos Centrais) já se comprovaram inefetivas para estimular o crescimento (como disse claramente o vice-ministro de Finanças da China), e que (ii) outros motores de crescimento que operaram satisfatoriamente em outras rodadas do progresso técnico também fracassaram, nesse caso a iniciativa chinesa, de criar conectividade geofísica mediante o projeto "Um Cinturão, Uma Estrada" (ing. OBOR, One Belt, One Road) apresenta-se como a via mais promissora para reiniciar o crescimento global. Em formato resumido, é a proposta de Xi. 

Isso, com novas regras de comércio e reforma da ordem financeira (hoje alinhada aos interesses de EUA e União Europeia), pode gerar 'mudança sem tumulto', no sentido de que essa pode ser melhor proposta de mudança, sem colapso financeiro e choque econômico (ou, no mínimo, essa é a esperança de chineses e russos). O que não se disse é que corolário de tudo isso é que, sem esse realinhamento político, China e Rússia preveem que será inevitável outro 'choque', semelhante ao de 2008.

Apenas para esclarecer - por mais que Rússia e China digam em voz suave tudo que dizem, ambos os países já se manifestam muito claramente e já começaram a emitir fortes sinais de alerta de que a crise é iminente; de que o ocidente (i) administra mal o sistema financeiro; e (ii) confia exageradamente em respostas financeirizadas movidas a dívidas. 

A China contempla investimento físico, inovação e conectividade (conexões por via marítima, ferroviária, oleodutos e gasodutos e eletrônicas), tomados como futuros motores do crescimento. Não, de modo algum, mais Política de Taxas de Juro Negativas (ing. NIRP, Negative Interest Rate Policy), mais Alívio Quantitativo e mais compra de ações.

O ocidente talvez nem discorde completamente do diagnóstico adverso de Xi, mas o chinês retratou o ocidente encurralado num escanteio do qual não há saída óbvia que não implique o risco de desencadear a exata mesma crise que o Ocidente tenta chutar para um pouco mais longe, pela estrada. Do ponto de vista chinês, não há alternativa (ing. TINA, There Is No Alternative) para o ocidente.

E, mais uma vez, para ser bem claro: a China está alinhando o G20 contra a prerrogativa que os EUA sempre exigem para si, de fixar as regras do comércio (mediante as 'parcerias' TIPP e TPP) e as 'regras' do 'sistema' financeiro. Parece que o G20 acompanhou os chineses nas duas propostas - nada mais desgastado, nesse G20, que a 'liderança' ocidental. Nesses termos, o presidente Xi autoapresentou-se como líder global que tem o objetivo de conduzir o grupo, pelo menos em questões econômicas, sem continuar a ceder a tribuna principal à 'nação indispensável'.

Dmitry Kosyrev, analista político especialista em Extremo Oriente da agência russa de notícias RIA Novosti, comentando a reunião do G20 em Hangzhou, escreveu: "Toda a ideia de ascensão pacífica da China é que essa ascensão não está dirigida contra qualquer outro país" - o que se reflete na linguagem: sem frases de efeito, sem fogos de artifício, sem acusações duras. 

Mas, apesar da linguagem suave, o 'G20 de Xi' implica, sim, mudança sísmica em termos de política chinesa (mesmo que sem qualquer 'bang'). É o fim da máxima de Deng Xiaoping para a China: que o país de modo algum deveria assumir a dianteira; que não revelasse jamais seu verdadeiro potencial; e que jamais superdistendesse as próprias forças. Pode-se argumentar que Xi acaba de atropelar a máxima, nos três casos: a China está assumindo posição de vanguarda, está revelando seu real potencial e distende-se ambiciosamente, com o projeto "Um Cinturão, Uma Estrada".

O que, então, se deve extrair disso tudo? O primeiro ponto é que é improvável que o ocidente esteja aberto para esse tipo de conselho econômico, e também é improvável, em todos os casos, que consiga arrancar-se sozinho do escanteio em que o meteu a própria política monetária - ainda que quisesse fazê-lo. O ocidente está mais dedicado a preservar o status quo, em vez de reformá-lo.

Em segundo lugar, a própria China está diante das complicações geradas por décadas de crescimento puxado por dívida e dinheiro fácil, além da urgente (e complexa) necessidade de deixar para trás a velha base manufatureira. As próprias fragilidades econômicas internas da China ainda podem a vir a desviar a atenção para longe da perspectiva de macrorreformas, de Xi; ou, ainda pior, a China pode descobrir-se, ela mesma, no olho da próxima crise financeira.

Em terceiro lugar, o projeto "Um Cinturão, Uma Estrada" enfrenta alguma resistência nos estados a serem 'conectados', que temem acabar aprisionados à sombra econômica da China. Tudo isso pode tornar mais lento o desdobramento do projeto OBOR. Por fim, os EUA jamais, por iniciativa sua, afrouxarão as garras com que prendem todo o sistema financeiro - pelo menos esse lado de uma nova crise financeira global.

Mas isso significaria que o 'G20 de Xi' pouco significou para o ocidente? Não. Os funcionários e especialistas chineses muito certamente compreendem bem as próprias limitações. Provavelmente também reconhecem que o Projeto "Um Cinturão, Uma Estrada" pode bem incluir uma pitada de utopia. Em resumo, os comentários que Xi ofereceu sobre a economia ocidental - visão da qual partilham os mais altos escalões em Moscou, vale lembrar - sugerem que os dois países vêm como inexorável um pouco mais de 'choque' econômico ou de crédito. 

Apenas que, muito cortesmente, com máxima polidez, o presidente Xi declarou ao mundo que o ocidente está nu (suas ferramentas monetárias tornaram-se imprestáveis), e uma nova ordem surgirá, como consequência. Esse patamar foi alcançado em Hangzhou, e parece que parte considerável do G20 está-se reunindo em torno dessa bandeira.

Ainda é muito cedo para dizer o que pode emergir em termos mais concretos, mas essa é a segunda perna da visão global do presidente Xi.

No discurso que fez ao Partido Comunista Chinês, Xi disse que as relações Rússia-China não se devem limitar à economia, mas os dois estados devem criar também uma aliança militar alternativa: "veem-se hoje as ações agressivas dos EUA contra Rússia e China. Creio firmemente que Rússia e China podem vir a constituir uma aliança frente à qual a OTAN será impotente", disse Xi.[1] Nessa linha, Xi ofereceu à Rússia uma parceria militar e predisse que Rússia e China juntas podem ser o farol guia da nova ordem global. Conter a coerção que o ocidente exerce mediante suas ferramentas multidimensionais de Guerra Híbrida como se vê hoje pode vir a ser, em resumo, pré-requisito para trazer à luz a 'nova ordem global' - esse pareceu ser o núcleo duro da mensagem de Xi.

Mas é para a Rússia que se deve olhar, para encontrar um esboço preliminar de pensamento para o mundo pós-financeirização.

Dia 25 de julho, o presidente Putin, como William Engdahl destacou, "deu ordens para que um think tank de economistas, o Stolypin Club, prepare propostas para estimular o crescimento do país, a serem apresentados ao governo no 4º trimestre do ano em curso. Ao fazê-lo, Putin rejeitou duas influentes facções de economistas liberais ou neoliberais [associados a Alexei Kudrin, o ex-ministro das Finanças e à presidenta monetarista do Banco Central da Rússia, Elvira Nabiullina], que levou a Rússia para uma recessão economicamente e politicamente perigosa ". O Stolypin Club foi criado por um grupo de economistas nacionalistas russos em 2012 (batizado em homenagem a Pyotr Arkadyevich Stolypin, primeiro-ministro reformista do Czar Nicholas), para traçar estratégias alternativas amplas que reduzam a dependência russa do mundo do dólar e promova o crescimento da economia real. Engdahl escreve:


"O grupo, essencialmente, trabalha com projetos do que o grande e quase esquecido economista alemão do século 19 Friedrich List chamaria de estratégias de "economia nacional". A abordagem de List, de base econômica histórico-nacional, sempre esteve em oposição direta ao pensamento econômico da escola do 'livre mercado', do então dominante pensamento britânico de Adam Smith.

As ideias de List foram crescentemente integradas à estratégia econômica do império alemão, iniciada sob a Zollverein ou União Aduaneira Alemã de 1834, que unificou todo o mercado interno alemão. À altura dos anos 1870s, já havia criado a base para a mais colossal emergência da Alemanha como rival econômica da Grã-Bretanha, que, em 1914, já superara os britânicos em todas as áreas."


Forte indicação de que esses centros de especialistas trabalharão a partir de forças econômicas tradicionais da Rússia - ainda que se exija alguma dose de tarifas protecionistas, de início, para indústrias, e empréstimos a juros baixos coordenados pelo Estado. O plano de 2015 de Sergei Glazyev (destacado membro do Stolypin Club), apresentado ao Conselho de Segurança da Rússia, propunha usar recursos do Banco Central para empréstimos orientados ao comércio e à indústria, que lhes garantissem juros subsidiados, entre 1-4%. O programa também sugeria que o estado apoiasse empresas privadas mediante "obrigações recíprocas" a serem criadas para compra e venda de produtos e serviços a preços previamente acordados. Em resumo, enfatizava-se maior autonomia econômica nacional, com o objetivo de reduzir a vulnerabilidade da Rússia a choques econômicos vindos de fora, ou a guerra geofinanceira. Numa palavra, trata-se aí de internalizar indústrias e patrimônio.

Trata-se também de caminhar na direção de política monetária soberana. Como Engdahl escreveu, Glazyev propôs reforçar o rublo como alternativa ao sistema do dólar, mediante a compra de ouro como lastro. Propôs também que o Banco Central fosse autorizado a comprar todo o ouro produzido nas minas russas, a um dado preço, com vistas a aumentar o lastro ouro do rublo.(A Rússia é hoje o segundo país maior produtor mundial de ouro.)

Antes, em maio desse ano, o presidente Putin, falando ao Presidium do Conselho Econômico, disse como orientação geral ao Conselho: "A dinâmica atual mostra que as reservas e recursos que serviram como forças motrizes de nossa economia no início dos anos 2000 já não produzem os mesmos efeitos de antes. Já disse no passado e quero reforçar esse ponto novamente agora: crescimento econômico não é coisa que se ponha a andar de repente, por seus próprios meios. Se não encontrarmos novas fontes de crescimento, veremos o PIB crescer zero, ou perto de zero, e nossas possibilidades no setor social, de defesa nacional e de segurança, e em outras áreas, cairão consideravelmente abaixo do que é necessário para realmente desenvolvermos o país e progredirmos."

Não é difícil ver a profunda convergência entre o que Putin ordena ao Conselho Econômico e a mensagem do presidente Xi aos países do G20. Particularmente interessante é que Putin parece estar tendendo na direção de um modelo econômico nacional - apesar de todos os compreensíveis cuidados para nem de longe sugerir coisa semelhante ao planejamento central soviético. 

Mas a frase chave é, sem dúvidas: "Já disse no passado e quero reforçar esse ponto novamente agora: crescimento econômico não é coisa que se ponha a andar de repente, por seus próprios meios." Xi está dizendo a mesma coisa. Essa é a direção na qual sopram os ventos novos: economia diferente, des-financeirização global combinada com interconectividade de negócios (economia real).


13/9/2016, Alastair Crooke, Valdai Discussion Club, Conflicts Forum


1 - Sobre isso, e a relação com o golpe no Brasil, ver "Xi inicia 'dolorosa reestruturação' do insano endividamento chinês", 18/5/2016, Pepe Escobar, Russia Insider (traduzido no Blog do Alok por Pepe Escobar [NTs].

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