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A vaia atesta que o entretenimento não consegue operar mais como um espaço social dissolvente
Por Francisco Bosco
Durante os jogos olímpicos do Rio de Janeiro, o apresentador da Rede Globo Luciano Huck foi assistir a uma partida de vôlei, com sua família, no Maracanãzinho. Ao conceder uma entrevista ao canal SporTV, sua imagem apareceu no telão do estádio e provocou uma vaia veemente por parte da plateia. Questionado sobre o motivo da vaia por um repórter da Folha de S.Paulo, logo em seguida ao episódio, o apresentador comentou: “Acho que tem a ver com a situação que o país passa”.
No final de maio deste ano, algumas semanas após a admissibilidade pelo Senado do processo de impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, a atriz Fernanda Torres relatou, em sua coluna na Folha, que estavam “excomungando minha família e meus antepassados na rede por conta da defesa do Ministério da Cultura feita por minha mãe”. E, ato contínuo, arrematou: “Foi-se o tempo em que os artistas eram vistos como defensores do bem, do bom e do justo”.
Os dois episódios têm um caráter exemplar. Eles mostram uma transformação importante na relação entre sociedade, mídia, entretenimento, cultura e política no Brasil. Fundamentalmente, a novidade é esta: nenhuma categoria profissional, nenhum lugar social está a salvo de ser avaliado por sua atuação política. O compromisso com a cidadania, a responsabilidade social passa a ser alçada, pelo menos para uma parte significativa dos setores médios (que frequentam estádios nas olimpíadas e fazem comentários nas redes sociais de uma atriz de televisão), a um valor superior, que não é anulado, nem mesmo relativizado, por performances profissionais de qualquer natureza.
Assim, a vaia a Luciano Huck atesta que o entretenimento não consegue operar mais como um espaço social dissolvente, em que o laço imaginário da relação entre o público e o apresentador famoso situa este último numa posição acima do bem e do mal. Huck foi vaiado por sua atuação política, seja stricto sensu (o apoio declarado a Aécio Neves, senador medalha de ouro no esporte “citações em delações premiadas”), seja lato sensu (o registro condescendente e paternalista de seu programa, sua comercialização da miséria alheia, bem como toda a relação do apresentador com a Rede Globo cujo papel no jogo de forças da sociedade brasileira vem sendo problematizado por setores cada vez maiores da população).
O apresentador tem, portanto, razão ao atribuir as vaias recebidas à “situação que o país passa”. Mas não no sentido que, me parece, ele sugere, qual seja, o de uma tensão generalizada na qual qualquer um estaria sujeito a receber apupos. Essa interpretação conveniente pretende anular o particular na estrutura, borrar o endereço das críticas em meio a um ataque difuso e confuso. Ora, é certo que há muita confusão na tensão social do país, mas é mais certo ainda que essas vaias foram concretas e seu motivo é a dimensão política da atuação de uma celebridade do entretenimento.
Talvez isso não seja pouca coisa. Tempos atrás, o entretenimento só era desafiado pela violência real: diversas vezes, artistas e jogadores de futebol foram roubados, sem que sua fama lhes assegurasse um passe livre contra as tensões sociais. Agora, o desafio vem da política, que é o espaço onde a tensão se organiza e, em vez de explodir como violência real irrefletida – que, politicamente, é improdutiva –, pressiona simbolicamente a sociedade no sentido de sua transformação estrutural.
É justamente toda essa transformação que vem deixando perplexos alguns atores sociais acostumados a privilégios. De que outro modo compreender a surpresa com que Fernanda Torres observa que “foi-se o tempo em que os artistas eram vistos como defensores do bem, do bom e do justo”? A retórica platônica apenas confirma a perspectiva de alguém que vive no mundo das ideias, no pior sentido da expressão, ou seja, fora da realidade onde as tensões fervem, novos atores sociais surgem, interpretações alternativas circulam nas redes sociais, em suma, boa parte do país felizmente perde certa inocência artificial característica da vida sob a indústria cultural. Afinal, cabe perguntar por que diabos os artistas deveriam ser vistos como defensores, a priori, do bem, do bom e do justo? Não há qualquer perspectiva teórica que fundamente essa visão. Conhecemos inúmeros exemplos históricos de grandes artistas com atuações políticas ligadas a totalitarismos. E, se formos pensar sua atuação estritamente enquanto artistas, constataremos que obras de arte não são tampouco a priori politicamente boas e justas; há uma moral das formas, uma política das formas, de Leni Riefenstahl a José Padilha, de Jorge Amado aos Racionais.
O “tempo” em que os artistas eram vistos como defensores do bem e do justo, se é que esse tempo existiu, terá sido um tempo lamentável para a sociedade brasileira, pois isso representa uma forma cultural de privilégio, ou melhor, uma forma de privilégio da cultura (do entretenimento, sobretudo), uma espécie de cidadania além do bem e do mal. Sabemos, desde Debord, a força que o espetáculo tem para se impor como uma realidade superior. Mas talvez estejamos testemunhando um rebaixamento dessa força, um rebaixamento social da imagem, uma política iconoclasta, literalmente.
É importante, entretanto, alertar para os riscos dessa movimentação. Como em tudo o mais, essa mudança só será positiva se não incorrer meramente numa reversão de sinais em que artistas passam a ser vistos, a priori, como “defensores do mal”, ou, no caso concreto, como “aproveitadores da Lei Rouanet” e obscurantismos afins. A discussão sobre a Rouanet é, atualmente, talvez o melhor exemplo, para falar com Sérgio Porto, do festival de besteiras (ou de burrices) que assola o país. Mas, de novo, Fernanda Torres está equivocada em atribuir a ela essa mudança do olhar social para os artistas e celebridades (“As leis de incentivo à cultura deram cabo da admiração [aos artistas]”, diz ela). Essa interpretação postula como causa da transformação um debate público completamente distorcido, e a consequência lógica é desqualificar seu efeito. Assim, artistas não seriam mais vistos como “defensores do justo” porque as pessoas consideram que eles são aproveitadores do dinheiro público via leis de incentivo.
Essa interpretação da Lei Rouanet é bastante problemática – assim como seus desdobramentos (“petistas mamadores das tetas do Estado”), francamente estúpidos –, e com isso se tornaria problemática também a suspensão do juízo a priori sobre os artistas. Mas não: a causa dessa mudança é mais profunda e mais estrutural. Ela remonta a junho de 2013. Com tudo o que houve ali de ambiguidade, é inequívoco que, a partir daquele momento, a sociedade brasileira redescobriu a política. Uma esfera pública se avolumou subitamente, propiciada pelas redes sociais – mesmo que nela, em boa medida, tenhamos ido da decadência à barbárie sem construir a civilidade. Com as ameaças de golpe em 2015 e sua consumação em 2016, a política tomou conta de tudo. Nenhum outro tema consegue se impor no debate público. Livros são quase natimortos quando não tratam diretamente de política. Tudo agora deve ser posto à luz da política. Inclusive os artistas.
Entretanto, só haverá ganho social se houver renúncia a maniqueísmos e a simplificações redutoras. O desejável é que a sociedade brasileira se esclareça sobre o conjunto das relações de forças que fizeram e fazem com que ela seja o que é. Nesse sentido, as polarizações redutoras são nocivas, não porque tensionam a sociedade (essa tensão é necessária), e sim porque oferecem leituras equivocadas da realidade, que por sua vez levam a ações políticas também equivocadas. Tudo agora deve ser posto à luz da política – mas não é difícil identificar o germe opressor numa frase como essa. Os problemas são inúmeros: polarização redutora,micromacartismos, diversas formas de linchamento, entre outros – e em alguns desses problemas estamos nos perdendo.
Seja como for, a mudança histórica é palpável. Até pouco tempo atrás, éramos “o país do futebol”. O emblema não se refere apenas à hegemonia técnica que durou mais de meio século, mas a uma autoimagem social: a de um país que se reconhecia, acima de tudo, num determinado esporte, ou melhor, na sua história com esse esporte, com tudo o que isso traduz de verdade sobre o país (basicamente: o futebol é o esporte em que, por suas características específicas, nossos defeitos se transformaram em virtudes, nosso veneno em remédio). Agora, nesse momento, não somos mais o país do futebol. E, novamente, não é pela perda da hegemonia técnica, e sim por um complexo processo social. Somos o país da política. A frase soa estranha porque ela contém antes desejo, luta, injustiça e violência do que esclarecimento, experimentação e republicanismo. Somos o país do sistema político podre, de setores dominantes que procuram garantir o status quo, mas também de amplos setores da sociedade que despertaram e lutam por transformações estruturais. Essa luta não poupa ninguém. Ela quer saber quem é quem.
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