Quarenta e oito horas depois de a PM baixar o porrete e jogar bomba de gás em cidadãos do patamar de baixo que protestavam contra o golpe, o governo Michel Temer afinou a voz para atender aos de cima e apressar a reforma da Previdência.
Numa cena ilustrativa, na manhã de ontem o Estado de S. Paulo noticiou, na primeira página, o receio de Aécio Neves e Geraldo Alckmin de que a reforma – a mais impopular entre tantas ideias nocivas em curso desde a posse de Temer – fosse debatida depois das eleições municipais.
O temor era que saísse da pauta política para nunca mais voltar – o que seria muito bom para os velhinhos e suas famílias, mas uma péssima notícia para um governo fraco, sustentado pelo 1% da população em troca da abertura de novas frentes de exploração dos 99%, especialmente os mais pobres.
No fim do mesmo dia, quando o sr. Fora Temer mal acabara de retornar da China, o Planalto anunciou o encaminhamento da reforma.
Mais do que produzir um efeito prático imediato – ninguém acha que o Congresso irá debater de verdade um assunto espinhoso antes das eleições municipais – a decisão ajuda a lembrar uma situação política.
Deixa claro quem manda e, nessa matéria, quem obedece. A mesma Casa Civil que defendia, por puro oportunismo eleitoral, o adiamento da reforma até a véspera tornou-se a primeira a defender sua divulgação imediata. Pudera. Depois do espetáculo da PM de domingo, a dependência de Temer em relação a PM de Alckmin tornou-se uma dessas realidades políticas acima de qualquer dúvida razoável.
Embora as mudanças mais importantes costumem ficar escondidas, para evitar uma reação imediata da maioria de prejudicados, algumas novidades da reforma são preocupantes desde já. Em síntese, prejudicam os mais pobres e as mulheres.
A criação de uma idade mínima para a aposentadoria – 65 anos – representa uma punição a toda pessoa forçada a trabalhar mais cedo.
Parte do plano consiste em igualar a idade mínima de aposentadoria para mulheres e homens – o que uma campanha marqueteira pode anunciar como uma medida modernosa, mas tem um caráter chocante quando se recorda a realidade da dupla jornada de trabalho feminina no país.
Como regra geral, pretende-se dificultar o início da aposentadoria para todos, prevendo a criação de regras novas para quem ainda não completou 50 anos – e um regime de transição para quem se encontra acima disso. Conduzido por economistas alinhados com a perspectiva do Estado mínimo, o argumento central é conhecido. Diz que a Previdência tornou-se uma instituição insustentável com a evolução demográfica das populações. Sempre em tom alarmista, ideal para confundir a discussão, se afirma que as contas, hoje, estão em déficit. Pior: com o prolongamento da expectativa de vida, fenômeno universal, o caixa da Previdência tende a se tornar inviável, diz a teoria. Nessa situação, não há alternativa a não ser arrancar o couro do cidadão comum. Será mesmo?
Um estudo da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita mostra que em 2014 as receitas do Sistema de Seguridade Social, responsável pelo caixa da Previdência, atingiram R$ 686,1 bilhões. Já as despesas ficaram R$ 632 bilhões. Resultado: um superávit de R$ R$ 53, 9 bilhões. Cadê o déficit?
Há sim um déficit – que não afeta o total global das aposentadorias do sistema – na coluna da Previdência Rural. Isso porque a maioria dos 8,5 milhões trabalhadores rurais não contribui para a Previdência nem poderia fazê-lo, por uma razão muito simples: poucos tem registro na carteira de trabalho, num fenômeno que se verifica no mundo inteiro.
Num esforço para enfrentar essa situação particular, há mais de 20 anos o Congresso teve a prudência de aprovar 8212/91, que prevê o pagamento de 2% da receita total da produção agrícola para a Previdência. Segundo cálculos da Confederação Nacional da Agricultura, a PIB agrícola chega a R$ 1 trilhão. O setor deveria pagar a soma anual de R$ 20 bilhões. Pelos desvios e espertezas, a sonegação encobre mais de 60% dos impostos devidos e os pagamentos ficaram em R$ 6,7 bilhões.
Não é só. Em outro plano, os atrasos acumulados nos pagamentos devidos a Previdência atingiram, em 2014, a soma recorde de R$ 307,7 bilhões. É mais que o faturamento de qualquer empresa brasileira.
Já a capacidade de recuperação do que era devido ficou em R$ 1 bilhão, ou 0,33% da dívida. “Isso significa que, além de ineficiente na fiscalização, que permite essa enorme evasão de tributos da Previdência, o governo federal não recupera praticamente nada”, afirma o economista Odilon Guedes, que foi presidente do Sindicato da categoria em São Paulo, autor do artigo ”Porque não há déficit,” de onde extraí a maioria dos dados deste texto.
Nesse ambiente social de um país em que a desigualdade e o privilégio atingiram o nível do descalabro e do escândalo, a Previdência deve ser defendida como um esforço bem sucedido de defesa da maioria dos brasileiros. Ajuda a distribuir renda e impede a miséria mais horrenda.
Não é difícil entender por que ela incomoda os senhores de Michel Temer, vamos combinar.
O debate, mais uma vez, envolve interesses muito claros. De um lado, 99% da população. De outro, os 1% que não pagam impostos.
Será difícil escolher?
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