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“A esquerda brasileira caiu de amores nos braços de um conservadorismo que há pouco a torturava nos DOI-CODIs e agora a destitui do governo federal sem grandes preocupações com aparências de legalidade. Síndrome de Estocolmo. Clássica, difícil de reverter”. Confira a nova coluna de Débora Medeiros na Fórum
Por Débora Medeiros*
No palco da luta política brasileira, cenário de guerra.
O território da batalha agora pertence ao campo conservador que, radicalizado, expande sua zona de ocupação rapidamente. O Estado brasileiro, preso político de uma elite financeira, está prestes a assinar um termo de escravidão. A validade do termo, vinte anos.
Apesar da resistência esboçada, a elite financeira e suas subsidiárias tem vencido batalha por batalha. Flexíveis na tática, tudo pode mudar desde que tudo fique como está: juros altos, tributação regressiva, superávit primário para garantir que a riqueza socialmente produzida será drenada com segurança para sua conta bancária. Em que governo ou regime o assalto acontece, isso vai da ocasião. A forma encontrada dessa vez foi o golpe parlamentar.
Uma vez vencida a guerra, contudo, é necessário consolidar sua presença no território. E aqui não se vive só de coerção. É preciso criar consenso, legitimidade, hegemonia. É preciso, depois de escravizar o Estado e assaltar o povo, convencer a todos de que a guerra foi justa e seus benefícios universais. Só uma narrativa bem construída dá conta de uma tarefa assim.
Esse é o ponto da cena em que estamos: a consolidação de uma narrativa ultraconservadora na sociedade brasileira. E para gerar consensos, nada melhor que apelar a uma moralidade com chances de tornar-se universal. Corrupção é o tema perfeito. Discordar do mérito de seu combate não é coisa que se faça, ao menos publicamente. E debater o método utilizado neste combate é uma combinação de risco político de curto prazo e trabalho reflexivo que, embora necessária, tem pouco sex appeal. De um modo geral a esquerda brasileira vem sendo conduzida a outros caminhos.
Evitando ou sem correlação de forças para estabelecer o espinhoso debate sobre as causas estruturais da corrupção, o campo progressista pegou alguns atalhos. Caminhou, a princípio impunemente, pelo território do campo conservador. Acontece que ao passar por lá se deparou com uma narrativa consistente ou, pelo menos, com muito sex appeal: um Estado composto por homens de moral elevada, alçados aos seus postos pelo mérito, munidos da qualificação técnica necessária e de uma ética que não suja as mãos na política. Um Estado composto por homens que, forjados fora da política, estariam de posse dos instrumentos necessários para gerir e punir com justiça. Homens que, após a merecida posse do cargo, foram conduzidos pela própria esquerda aos seus espaços de poder. Homens de confiança.
De fato, era difícil resistir: um risco aparentemente baixo (vivíamos formalmente numa democracia) e popularidade de fio a pavio na sociedade brasileira. Popularidade especialmente nas classes médias, educadas desde o berço sobre a gênese da corrupção no aparato de Estado e menos sensíveis à narrativa da distribuição da riqueza. Foi nocaute. A esquerda brasileira caiu de amores nos braços de um conservadorismo que há pouco a torturava nos DOI-CODIs e agora a destitui do governo federal sem grandes preocupações com aparências de legalidade. Síndrome de Estocolmo. Clássica, difícil de reverter.
Paixões não arrefecem ao primeiro golpe. E nem ao segundo ao golpe. Apesar das evidências de que o relacionamento é pouco vantajoso, a esquerda brasileira vem sustentando seu encantamento pela narrativa do poder punitivo de um Estado justo, onde judiciário e polícia se apresentam como agentes erradicadores da corrupção e do crime. Isso quando a corrupção é filha do campo progressista, claro. Ou quando o crime aconteceu nas periferias do sistema, cometido por gente sem recursos para se defender. A estatística das punições não deixa dúvida: prisões como a de Eduardo Cunha não são mais que a exceção que confirma a regra. Mas quem pensa em estatísticas quando se está em vias de lavar a alma, na plateia da punição exemplar do adversário?
Se as afirmações reiteradas de Luciana Genro sobre os méritos da Lava Jato são a face mais caricata e menos reflexiva de uma esquerda punitiva, dominada pela ideologia jurídica, isso não é exclusividade sua ou de seu partido. Até os quarenta e cinco minutos do segundo tempo de um golpe onde o judiciário jogava de pivô, o governo federal (então dirigido pelo Partido dos Trabalhadores) garantia plenos poderes à Operação Lava Jato. Deu no que deu: quem não reconhece o ataque não prepara a defesa.
Acontece que agora, mais do que nunca, a defesa é necessária. A agenda política do golpe não vai arrefecer, e será viabilizada pelo deslocamento da disputa política para a esfera jurídica. Quem tiver contradições com o projeto político da elite financeira gora terá um lugar especial para expressá-las: o banco dos réus. E quem não tiver predicados para ocupá-lo pode aguardar em prisão preventiva até que estes sejam encontrados.
O braço coercitivo da agenda golpista – o Estado penal, punitivo e policialesco – será usado primeiramente contra o Partido dos Trabalhadores e Lula, sua maior liderança, simplesmente porque este ainda é o antagonista mais viável na disputa política nacional. Liquidado o PT, a mesma arma será usada contra o antagonista político mais viável em cada ocasião, seja quem for. A esquerda que festeja a Operação Lava Jato lava a alma na água da ideologia jurídica, o braço de sustentação ideológica do golpe.
E aí, quem pariu Mateus que o embale. Num Estado de exceção, não se pode falar em regra. O alvo do partido conservador aquartelado no judiciário é, agora, Lula e o Partido dos Trabalhadores.
Amanhã pode ser toda a esquerda. Depois de amanhã, toda a política.
*Débora Medeiros é médica e coordenadora do projeto A São Paulo que Queremos
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
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