quinta-feira, 27 de outubro de 2016

A PEC 241 e a privatização

Ao estabelecer o garrote na capacidade orçamentária, o governo impede o aperfeiçoamento da rede pública hipotecando o futuro aos desejos do capital privado

             Paulo Kliass // www.cartamaior.com.br

Uma das principais consequências que o golpeachment pode proporcionar ao País refere-se à implementação de um conjunto de medidas que já haviam sido sistematicamente rechaçadas pelas urnas nas eleições presidenciais de 2002, 2006, 2010 e 2014. A agenda assumidamente conservadora envolvida nas candidaturas de Serra, Alckmin e Aécio não conseguiu convencer a população e a opção majoritária sempre foi no sentido de apoiar o processo político visando a consolidação da melhoria da distribuição de renda e da diminuição das desigualdades.

As dificuldades que começaram a surgir no domínio da política macroeconômica terminaram por induzir o governo Dilma a adotar as soluções apresentadas pelos setores ligados ao capital financeiro. Com isso, cresceu o espaço para a consolidação de uma narrativa ortodoxa hegemônica a respeito dos problemas nacionais, e que se propaga com fluidez através dos meios de comunicação. Para além das denúncias seletivas envolvendo os casos de corrupção da Lava Jato, o foco da imprensa passa a ser a criminalização das alternativas para a política econômica que não fossem as previstas na cartilha da ortodoxia.

Tudo pode ser resumido naquilo que passou a ser chamado genericamente de “irresponsabilidade fiscal”. De acordo com as opiniões dos “especialistas” e articulistas vinculados ao financismo, tudo não teria passado de má fé e incompetência de um governo irresponsável e populista. E ponto final. O que o Brasil necessitaria é de uma equipe governamental com um perfil oposto e que contasse com o bem querer e a simpatia dos detentores do capital. Bingo!

Golpeachment e desmonte conservador.

Pouco a pouco, diversos representantes de setores que haviam compartilhado das benesses de poder desde a primeira eleição de Lula vão abandonando o barco de Dilma e do PT. Para comprovar tal incoerência aparente, basta olhar os nomes de boa parte dos ocupantes de ministérios e integrantes da base de apoio governista no Congresso Nacional. Estavam com Dilma e ficaram com Temer. 

O desenrolar dos acontecimentos é conhecido de todos nós. Consumado o golpe e o afastamento de Dilma, Temer assume o governo e resgata o programa elaborado pela Fundação Ulysses Guimarães do PMDB, presidida por Moreira Franco. As propostas constantes do documento “Ponte para o Futuro” consolidam a via liberal-conservadora para nossa crise, com especial atenção dedicada à saída do Estado da economia, em uma espécie de recuperação anacrônica dos desígnios do neoliberalismo já ultrapassado no resto do mundo.

O mote para viabilizar tal estratégia é a crise fiscal. Argumentando ao extremo a respeito de uma suposta falência orçamentária estrutural do Estado brasileiro, o novo governo apresenta um conjunto de medidas de redução do espaço público na economia. Assim, pretende-se promover a venda de ativos importantes das empresas estatais ainda existentes, como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e a Petrobrás. Por outro lado, o estratégico “Programa de Parcerias de Investimento” (PPI) lança novas oportunidades de investimento privado em áreas de presença tradicional do setor público, como infraestrutura e energia.

O círculo se fecha com a profunda asfixia na maneira como se encara a busca de soluções para a situação fiscal. Ao manter a armadilha do superávit primário como plano orientador do voo, o governo continua mirando apenas no corte das despesas de natureza social e de investimentos no orçamento. Dessa forma, ficam livres para crescer os gastos de natureza financeira, envolvidos no pagamento de juros da dívida pública. Para o exercício atual, a previsão é de encerramento do ano com um déficit de R$ 176 bilhões nas contas do governo federal.

PEC 241 e a redução dos gastos sociais.

A intenção declarada é aproveitar dessa oportunidade única de ter chegado ao poder sem o voto popular para implementar o conjunto do pacote de maldades, com impacto de longo prazo. Essa é a lógica que está por trás da PEC 241, que promete congelar as despesas primárias por 20 anos, ao introduzir no corpo da Constituição aquilo que eufemisticamente foi qualificado como “Novo Regime Fiscal”.

Ora os estudos e pesquisas são unânimes em denunciar o absurdo volume de perdas que seriam imputados a setores como previdência social, saúde, educação, assistência social, cultura, esportes, investimentos, funcionalismo e outros. Como a fórmula prevê o teto máximo de correção pelos índices inflacionários a cada ano, na prática isso significa uma redução dos valores atribuídos a tais áreas. Isso porque certamente haverá crescimento populacional no período e o gasto per capita vai cair. Ou ainda pelo fato de que o eventual crescimento do PIB em algum período ao longo das próximas duas décadas tampouco será considerado para efeito de maior despesa primária.


Por mais que o governo tente dourar a pílula e fazer contorcionismo retórico, o fato é que a intenção do Novo Regime Fiscal é impor redução de gastos. As polêmicas permanecem apenas na determinação dos números bilionários relativos a tais diminuições. Estudo elaborado pelo IPEA chega a apurar uma perda potencial de R$ 654 bilhões apenas para a área da saúde até 2036. Já as perdas para assistência social são estimadas em R$ 868 bi ao longo dos vinte anos, de acordo com outro estudo da mesma instituição de pesquisa do próprio governo federal.


Nesse modelo elaborado a partir de uma concepção meramente financeira do Brasil e do mundo, apenas poderão crescer os valores orçamentários das despesas associadas a operações da política monetária ou destinados ao pagamento de juros da dívida. Uma loucura!

Como se pode perceber, esse sistema inviabiliza que sejam assegurados pelo Estado aos cidadãos e cidadãs aqueles direitos sociais previstos na Constituição. O discurso liberal já se preparou para esse fato e constrói a lengalenga de que o modelo previsto em 1988 não cabe mais no Orçamento de 2016. Assim, a solução passa por transferir de forma crescente a oferta de serviços como saúde, previdência e educação para o setor privado. Essa, aliás, tem sido a tendência observada ao longo dos últimos anos. O capital internacional já farejou esse novo campo de ganhos seguros e fundos multinacionais de investimento já estão penetrando pesado em educação e saúde, por exemplo.

Asfixia e privatização.

A PEC 41 chega, portanto, para não deixar mais sobra de dúvidas a respeito desse caminho. O Estado não poderá mais gastar nesses setores, nem mesmo se a população quiser e se houver sobras de caixa. Haverá proibição constitucional. Ao longo das próximas décadas, a única alternativa para tornar real esse tipo de serviço essencial será recorrer aos empreendimentos realizados pelo capital privado. O reino absoluto da mercantilização dos direitos de cidadania.

Ao estabelecer o garrote na capacidade orçamentária, o governo impede a promoção do crescimento e do aperfeiçoamento da rede pública de saúde, previdência social, educação, assistência social, entre outras. Assim, os mentores do governo Temer hipotecam o futuro da Nação aos desejos do capital privado e às regras insensíveis do mercado de bens e serviços.

A PEC 241 é o caminho seguro para consolidar e perpetuar o mecanismo perverso da privatização como principal instrumento de políticas públicas em nosso País. 


* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.


Créditos da foto: Rovena Rosa

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12