Por Flávio Aguiar. // https://blogdaboitempo.com.br/
Era uma vez a República do Bananal. Com uma peculiaridade: nela, banana era do gênero masculino. Porque depois de um certo tempo, só bananas masculinos entrevam pro governo. Por isto ela era também conhecida como a República dos Bananas. Havia milhões de bananas – de todos os sexos – na República do Bananal. Havia dois times de futebol – os azuis e os vermelhos. Muito tempo atrás houve uma história muito confusa. Os bananas azuis tinham muito medo dos vermelhos – até porque estes deixaram de ser bananas e começaram a ser outras frutas, de todos os tipos, uma salada de frutas. Então os azuis decidiram que era preciso exterminar todos os vermelhos. Entregaram a tarefa a um caçador, vermelhofóbico, especializado no assunto. Ele foi muito eficaz, tão eficaz que os vermelhos sequer morriam, apenas desapareciam. Assim ninguém tinha culpa por aquilo, e era impossível dizer que os azuis eram responsáveis por alguma coisa.
Acontece que o delegado vermelhofóbico começou a ter ideias próprias. Tendo acabado com a ameaça vermelha, reuniu um monte de informações sobre os negócios e patranhas dos azuis e começou a chantageá-los. Então aconteceu um milagre, prova de que, como dizia certo comentarista muito famoso, “Deus não joga, mas fiscaliza”. Uma bela noite o delegado vermelhofóbico foi passear no seu barco, comprado com o dinheiro que os azuis tinham lhe dado pra terminar com os vermelhos. De madrugada, ele saiu da cabine pra passear no convés. Como estava meio alto por ter tomado umas e muitas outras, ele tropeçou e caiu. Na queda, bateu com a cabeça na murada do barco. Caindo no chão, bateu de novo com a cabeça. E aí aconteceu o milagre: depois da segunda batida, ele deu uma pirueta, saltou por cima da mureta, e caiu no mar, afogadinho da silva!
“Milagre!”, gritaram os azuis, e respiraram aliviados. Podiam continuar com suas mutretas.
Mas como não há bem que sempre dure, os vermelhos, que pareciam extintos, voltaram à vida. E começaram a se reproduzir, cada vez mais, ameaçando de novo a casinhola grande dos azuis com suas senzalas rubras.
Pra complicar as coisas, os tempos eram outros. Não dava mais pra contratar um novo delegado que fizesse os vermelhos desaparecerem, como no bom tempo. Ia ficar feio diante das outras repúblicas daquele canto de mundo. E as disputas entre vermelhos e azuis eram feitas agora no futebol.
Só que a partir dum certo momento, os vermelhos começaram a ganhar todas, às vezes de goleada, às vezes por 1 x 0, mas todas.
Os azuis entraram em desespero. Porém, como não há mal que não se acabe, para sua sorte, conseguiram infiltrar um juiz no jogo. Não era qualquer juiz. Era um juiz que só enxergava as faltas do time vermelho. E um jogador vermelho, só de pensar em falta, já era expulso! Os azuis podiam passear tranquilamente em campo, dando pontapé, enfiando dedo no olho do adversário, fazendo gol com a mão, ou em impedimento, que o juiz e os seus bandeirinhas auxiliares não estavam nem aí. Se um vermelho reclamava, também ia preso pro vestiário. Na arquibancada, os policiais chamados pelo juiz também só davam porrada nos vermelhos. Pros azuis era tudo festa e pão-de-ló. Houve até um caso especial. Um vermelho, ao disputar a bola com um azul, não fez falta. O juiz expulsou ele assim mesmo: “você vai pro vestiário”, disse o juiz, “até que nós encontremos uma falta que você tenha cometido”. E emendou, furioso: “como se atreve a entrar no jogo e não fazer falta? É só pra disfarçar! Que falta de vergonha!”
Assim a paz voltou a reinar na República do Bananal e os azuis ganhavam todos os jogos por WO. Mas logo um problema apareceu.
Com os vermelhos expulsos para o vestiário por vinte anos, com a torcida vermelha expulsa do estádio por outros vinte anos, o juiz começou a prestar atenção também no jogo dos azuis. Afinal, ele era juiz, e se pelo menos não fingisse ser imparcial, não ganharia o Apito de Ouro, dado num concurso na República do Chiclete, logo ao norte, que ele tanto admirava, e onde aprendera a apitar.
“E agora?”, perguntavam, aos cochichos, os azuis. “Não estamos mais em tempos de Deus fazer milagres”.
“O que fazer então?”, perguntavam-se, ansiosos, os azuis.
Na verdade, ninguém sabe o que fazer. O jogo parou, a luz apagou, a noite desceu e uma treva de vinte anos está se abatendo sobre os bananas da República do Bananal, que está apodrecendo e vai cair do galho.
Moral da história: quem nasceu apenas pra banana nunca faz falta na salada de frutas.
***
Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
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