quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Ditadura Moro mergulha sem pudor na exceção

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Ensaio sobre um Judiciário que mergulha na exceção

por Leonardo Isaac Yarochewsky, no Justificando
Em artigo introdutório à edição em português do livro “Operação mani pulite” (Operação Mãos Limpas), dos jornalistas italianos Gianni Barbacetto, Peter Gomez e Marco Travaglio, o juiz Federal soberano da “Operação Lava-Jato” defende a utilização de “métodos especiais de investigação” e “medidas judiciais fortes”, como prisões cautelares, no combate à corrupção sistêmica. De acordo com o juiz Sérgio Moro, “em um contexto de corrupção sistêmica, penetrante, profunda e disseminada nas instituições e na sociedade civil, a adoção de remédios excepcionais não pode ser considerada uma escolha arbitrária, mas medida necessária, na forma da lei, para romper o ciclo vicioso”, afirmando, ainda, que a resposta da Justiça criminal é limitada e outras instituições e a sociedade cível devem operar”.

Ao trazer à baila a “Operação Mãos Limpas” na Itália, o juiz Federal Sérgio Moro assegura que, nos primeiros anos, a operação italiana teve apoio avassalador da opinião pública, que identificou nos magistrados encarregados dos processos “verdadeiros heróis”. Com o passar dos anos, entretanto, isso mudou. Os juízes antes aclamados, segundo o juiz Federal, passaram a serem atacados por “supostos excessos” perpetrados nos processos referentes à “Operação Mãos Limpas”. Para o magistrado brasileiro, o elevado número de prisões não gerou número equivalente de condenações e as anistias fizeram com que as penas não fossem significativas.
Ao se referir às causas da queda de um sistema corrupto em artigo escrito em 2004 sobre a operação “mani pulite, o juiz Federal Sérgio Fernando Moro afirma que “com a queda do “socialismo real” e o arrefecimento do debate ideológico, as fragilidades do sistema partidário e a corrupção tornaram-se mais evidentes”. Segundo o magistrado:
A deslegitimação do sistema foi ainda agravada com o início das prisões e a divulgação de casos de corrupção. A deslegitimação, ao mesmo tempo em que tornava possível a ação judicial, era por ela alimentada: A deslegitimação da classe política propiciou um ímpeto às investigações de corrupção e os resultados desta fortaleceram o processo de deslegitimação. Consequentemente, as investigações judiciais dos crimes contra a Administração Pública espalharam-se como fogo selvagem, desnudando inclusive a compra e venda de votos e as relações orgânicas entre certos políticos e o crime organizado. As investigações mani pulite minaram a autoridade dos chefes políticos – como Arnaldo Forlani e Bettino Craxi, líderes do DC e do PCI – e os mais influentes centros de poder,cortando sua capacidade de punir aqueles que quebravam o pacto do silêncio.
Há cerca de doze anos o juiz Federal Sérgio Moro já demonstrava sua admiração e simpatia pelos métodos utilizados na Itália na operação “mani pulite”, procedimentos que seriam mais tarde, na “Operação Lava Jato”, empregados por Moro. No referido artigo, o condutor da “Lava Jato” exalta as prisões com a finalidade de se obter do investigado e dos suspeitos a “colaboração”, o que se evidencia quando o juiz Federal Sérgio Moro diz que:
A estratégia de ação adotada pelos magistrados incentivava os investigados a colaborar com a Justiça: A estratégia de investigação adotada desde o início do inquérito submetia os suspeitos à pressão de tomar decisão quanto a confessar, espalhando a suspeita de que outros já teriam confessado e levantando a perspectiva de permanência na prisão pelo menos pelo período da custódia preventiva no caso da manutenção do silêncio ou, vice-versa, de soltura imediata no caso de uma confissão (uma situação análoga do arquétipo do famoso “dilema do prisioneiro”).
Vislumbrando, também, uma admiração do juiz Federal Sérgio Moro pelos procedimentos adotados na operação “mani pulite”, Maria Lúcia Karam afirma que:
O incompetente juiz que ilegitimamente vem atuando nas ações penais de naturezas cautelar e condenatória, reunidas sob a midiática denominação de ‘operação lava-jato’, externou, em artigo amplamente divulgado, sua admiração pelos procedimentos que ficaram conhecidos como ‘mani pulite’, neles se inspirando para reproduzir no Brasil a pretensão de varrer a corrupção do cenário político. Não parece ele ter dado atenção ao fato de que a ‘mani pulite’, que, na década de 1990, pretendeu varrer a corrupção do cenário político italiano, tal qual uma “Greta Garbo que acabou no Irajá”, acabaria por propiciar o advento da era Silvio Berlusconi, eleito presidente do conselho na Itália pela primeira vez em 1994, após o desmantelamento de partidos políticos tradicionais, atingidos por aquela também midiática ‘operação’.
É notório que nem tudo são flores quando o assunto é a “Operação Mão Limpas”. Assim, interessante observar a análise feita por Massimo Pavarini sobre a famigerada operação ocorrida na Itália na década de 1990, então coordenada pelo procurador da República Antonio Di Pietro e pelo juiz Giovanni Falcone, morto em atentado pelo crime organizado. Segundo Pavarini, na Itália, durante muito tempo e diferentemente do que se registrou em outras realidades nacionais, os sentimentos coletivos de insegurança puderam se manifestar como demanda política por mudança através de uma participação democrática mais intensa. O que equivale a dizer que a comunicação social, através do vocabulário da política, favoreceu uma construção social de mal-estar e de conflito fora das categorias morais de culpa e pena.[1]
Em razão de novos critérios de criminalização primária e secundária a população carcerária aumentou 50% ao ano. A seletividade repressiva dirigiu-se, especialmente, para duas figuras de marginalidade – drogaditos e imigrantes de cor.
Mais adiante, Pavarini assevera que um exemplo que pode explicar a mudança de paradigma da construção social do inimigo interno é “oferecido hoje na Itália pela campanha denominada jornalisticamente como ‘Mãos Limpas’, de repressão judicial à corrupção política”.[2]
O paradigma político social da corrupção dá lugar, segundo Pavarini, ao paradigma moralista. “Os magistrados que conduzem as investigações sobre corrupção política são novos ídolos populares, os grandes ‘moralizadores’ porque são grandes ‘justiceiros’”.[3] Qualquer semelhança com a realidade brasileira não é mera coincidência.
Geraldo Prado também enxerga na “Lava Jato” a “moralização” do “combate à corrupção”, convertendo, de acordo com o respeitável processualista, “o que deveria ser um conjunto de práticas rotineiras de rigoroso controle de atividades econômicas e financeiras e de investigação e repressão de abusos em verdadeiras “cruzadas morais” contra a corrupção”.
Ao defender “métodos especiais de investigações”, “medidas judiciais fortes” e “remédios excepcionais” para combater o crime, notadamente, a corrupção, o juiz Federal Sérgio Moro está, sem qualquer cerimônia, a defender o “estado de exceção” e o aniquilamento do “inimigo”, elegido pelo soberano nos moldes de Carl Schmitt e Günther Jakobs.
Zaffaroni referindo-se ao inimigo no direito penal assevera que:
O poder punitivo sempre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo que não correspondia à condição de pessoas, dado que os considerava apenas como entes perigosos ou daninhos. Esses seres humanos são assinalados como inimigos da sociedade e, por conseguinte, a eles é negado o direito de terem suas infrações sancionadas dentro dos limites do direito penal liberal, isto é, das garantias que hoje o direito internacional dos direitos humanos estabelece universal e regionalmente.[4]
Nota-se, como bem asseverou Zaffaroni, que para os seres humanos assinalados comoinimigos da sociedade não valem as garantias e os direitos fundamentais, eles “inimigos” (não-pessoas) estão sujeitos às medidas de exceção e aos remédios excepcionais, conforme defende o doutor Moro.
Ainda sobre o inimigo, Zaffaroni oberva que “a ideia romana do inimigo, do hostis, não admite meias-medidas, nem sequer o limite do foro interno imposto por Hobbes, porque abre o caminho da resistência ao soberano e com isso impede o exercício da guerra”.[5]
Já sobre o “Estado de Exceção” o filósofo italiano Giorgio Agamben observa que:
O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração por meio de estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, parecem não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos.[6]
De acordo com Agamben, dialogando com Carl Schmitt, O estado de exceção “define um ‘estado de lei’ em que, de um lado, a norma está em vigor, mas não se aplica (não tem ‘força’) e em que, de outro lado, atos que não têm valor de lei adquirem sua ‘força’”[7] Para Agamben, o “estado de exceção” é um espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei.
Em incursão nas obras de Carl Schmitt, Adamo Dias Alves e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, no que se refere ao estado de exceção em Schmitt, observam que:
A exceção em Schmitt desempenha elemento central. Para Schmitt, somente diante da excepcionalidade (Aus­nahmezustand) pode-se vislumbrar quem é o soberano, pois é justamente o soberano quem decide sobre o estado ou situação de exceção (…)
Por estado ou situação de exceção, Schmitt busca um conceito geral da Teoria do Estado, não uma decretação de emergência ou um estado de sítio, posto que a exceção, no sentido amplo da palavra, sentido buscado por Schmitt, não pode advir da norma abstrata.
Grosso modo, pode-se dizer que o estado de exceção se opõe ao Estado de Direito. No estado de exceção a democracia é substituída pelo autoritarismo, pela restrição de direitos e garantias fundamentais. As tais “medidas e remédios excepcionais” são frutos do autoritarismo e do estado de exceção.
Como bem assinalou Fernando Lacerda, o processo penal de exceção é a antítese do processo penal garantista, nasce da afronta ao Estado de direito ― dando ensejo à materialização de um Estado de exceção (…) ― e, tal qual a Hidra de Lerna com seu hálito venenoso, pode-se nele identificar as sete cabeças de serpente: (i) aplicação distorcida da teoria do domínio do fato e expansão da criminalização, (ii) flexibilização das garantias individuais, (iii) delação premiada, (iv) acordo de leniência, (v) seletividade dos investigados, processados e condenados, (vi) julgamentos de acordo com a opinião pública(da) e influência corrompida dos sistemas político e midiático no poder judiciário e (vii) o fantasma de uma legislação antiterrorismo.
O processo penal não pode ser visto hoje como um simples instrumento a serviço do poder punitivo, mas, também, como aquele que cumpre o imprescindível papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Aury Lopes Júnior alerta que:
há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forme rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal)[8]
Geraldo Prado assegura que “as garantias do processo penal são, relativamente às liberdades públicas afetadas pela persecução penal, garantias materiais dos direitos fundamentais”.[9]Mais adiante, o sempre lúcido processualista, afirma que: “O processo penal, pois, não deve traduzir mera cerimônia protocolar, um simples ritual que antecede a imposição do castigo previamente definido pelas forças políticas, incluindo-se nesta categoria os integrantes do Poder Judiciário”. [10]
Neste sentido, por mais que se ambicione o combate à criminalidade, notadamente, a corrupção, ainda assim, não é possível fazê-lo fora do Estado de Direito. Repita-se, o emprego de “métodos especiais de investigação” e dos “remédios excepcionais” fora do devido processo legal e, portanto, do processo penal constitucional e democrático, é próprio do estado de exceção e de regimes fascistas. De igual modo, o conceito de inimigo jamais é compatível como um Estado de Direito e nem mesmo com os princípios do liberalismo político. [11]
Não é despiciendo advertir, com Zaffaroni, que “a função do direito penal de todo Estado de direito (da doutrina penal como programadora de um exercício racional do poder jurídico) deve ser a redução e a contenção do poder punitivo dentro dos limites menos irracionais possíveis”.[12] Mais adiante assevera o jurista argentino que: “o direito penal deve sempre caminhar para o ideal do Estado de direito; quando deixa de fazê-lo, o Estado de polícia avança”.
Ainda na esteira de Zaffaroni, é necessário martelar que o “direito penal de garantias é inerente ao Estado de direito porque as garantias processuais penais e as garantias penais não são mais do que o resultado da experiência de contenção acumulada secularmente e constituem a essência da cápsula que encerra o Estado de polícia, ou seja, são o próprio Estado de direito”.[13] Assim, ao direito penal comprometido com o Estado de Direito caberá a missão de preservar e aperfeiçoar as garantias dos cidadãos com o fim de conter e limitar o avanço do poder punitivo estatal e, por conseguinte, o Estado de polícia.
Por tudo, quando se pretende viver em um Estado Democrático de Direito não há alternativa à margem da legalidade democrática e do respeito, intransigente, aos direitos e garantias fundamentais, sem os quais o próprio Estado de Direito não sobreviverá.
Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado e Professor de Direito Penal da PUC-Minas
***
[1] PAVARINI, Massimo. O instrutivo caso italiano. In: Discursos Sediciosos – crime, direito e sociedade, ano 1, nº 2. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Relume Dumará, 1996.
[2] PAVARINI, ob. cit.
[3] PAVARINI, ob. cit.
[4] ZAFFARONI, Eugenio Raùl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 11.
[5] ZAFFARONI, Op. cit.
[6] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 13.
[7] AGAMBEN, Giorgio. Op. cit. p. 61.
[8] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[9] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014.
[10] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos… ob. cit.
[11] ZAFFARONI, op. cit.
[12] ZAFFARONI, op. cit. p. 172.
[13] ZAFFARONI, op. cit. p. 173.

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