Em seus debates internos atuais, partido-movimento divide-se sobre distintas estratégias de chegada ao governo — e perde enorme oportunidade de estimular mobilização social e contra-poderes
Por Emmanuel Rodríguez, no Periódico Diagonal | TraduçãoRicardo Cavalcanti-Schiel //http://outraspalavras.net/
Nota prévia do tradutor: O Podemos espanhol acabou se tornando uma formação política incensada por muitas personalidades de esquerda no Brasil, inclusive uma veterana como Luíza Erundina, que vê nele a matriz para um novo partido de uma esquerda “renovada”, cá por estas plagas. No entanto, à medida em que persiste o impasse na formação de um novo governo na Espanha, o Podemos, que já havia perdido 1 milhão de votos na segunda eleição para o parlamento, corre cada vez mais o risco de se esvaziar politicamente, por ter apostado com demasiada insistência na miragem da conquista do governo como objetivo suficiente para a transformação. Por mais jovem que seja o Podemos, o “governismo”, essa síndrome senil que descuida da política como ação social em larga escala pode estar carcomendo os horizontes daquele que se quer “o partido da mudança” na Espanha. (RC)
“Nós ou o caos”, esse foi o título de uma recente edição sobre a “conjuntura espanhola”, do programa independente de vídeo “Forte Apache”, comandado desde 2012 pelo líder do Podemos, Pablo Iglesias. Nessa tertúlia televisiva, o “número 1” do Podemos lamentava-se da atual fase da política parlamentar como uma situação de nulidade, bloqueio e impotência. Parece até que Pablo Iglesias nasceu ontem. A bem da verdade, no entanto, poderíamos dizer que bobinhos fomos todos. Falando mais precisamente, a armadilha da estreita miopia parlamentar (ou, o que dá no mesmo, do “governismo”) revelou-se quase mortal para as forças que acabaram apostando apenas na máquina político-partidária.
Sem dúvida, há quem insista ― Íñigo Errejón, o “número 2” do Podemos, antes de mais nada, mas também o próprio Iglesias e até o grosso do partido ― que o limite do presente ciclo político foi o de não ter chegado ao governo ou, ao menos, de não ter chegado o suficiente. Essa é a explicação que se pretende dar ― a de não ter deputados suficientes para pressionar o PSOE ― de que, para que a mudança seja possível é preciso ser protagonista de um “governo da mudança”; de que o problema dos governos locais é que são fracos e minoritários; de que se se formassem maiorias eleitorais suficientes, a história seria outra. O curioso é que essa “impotência” é assumida depois de se atravessar a maior crise política do país desde os anos setenta e de capitanear a maior onda de mobilização social que já houve desde aquela época.
Seja como for, para os líderes do “partido da mudança” o problema político continua residindo apenas no governo: o Estado, uma vez mais, se afigura com a única alavanca possível ou imaginável para uma transformação. A esquerda espanhola continua sendo “estatista”, em todas as suas versões: populista, pós-carrilhista [que propugna a superação do caudilhismo autoritário de Santiago Carrillo, antigo Secretário Geral do Partido Comunista Espanhol], neo-socialista… Ou seja, acredita na suficiência do Estado (enquanto até mesmo a direita parece acreditar em outros meios), para operar a premissa segundo a qual: Estado = monopólio do político. Ao que parece, perder a ingenuidade não apenas é algo um tanto traumático, mas também irremediavelmente necessário.
Por isso é preciso ainda continuar insistindo que, se o que se pretende são transformações reais, a conquista do Estado é só uma parte ― e não a mais importante ― de um processo bem mais complexo. Contraexemplo recente é o do Syriza. A chegada ao governo com folgada maioria terminou em derrota política para a formação grega, exposta na burocratização acelerada do partido e, sob pancadas, na reverência incondicional ao ditames da troika. Para os que acreditam que, com o peso da economia espanhola, uma chegada do Podemos ao governo significaria outra coisa, seria preciso lembrar que a cultura política, consistência ética e capacidade intelectual com que se armava o Syriza o colocavam muitos pontos acima daquilo que o Podemos pode hoje amealhar.
Mas vamos em frente. Assombrados por essa impotência, não há líder do “partido dos de baixo” que não venha há meses nos bombardeando com uma nova palavra de ordem chamada “movimento popular”. Termo estranho esse o “popular”, pelo qual o Estado espanhol soa um tanto imponderável e fora de lugar. Para além dos pratos tradicionais, das quermesses de bairro e das evocações a respeito de uma “gente diferenciada” (mais pobre e com menos estudos), diferente portanto dos políticos e ativistas de classe media, não se sabe muito bem a que se referiria. Em certa medida, a expressão “movimento popular” é honesta: reflete a total incapacidade de reconhecer os sujeitos sociais capazes de orientar alguma contestação aqui nesse recanto do sul da Europa; reflete nossa própria indigência intelectual e política. E, ao mesmo tempo, constata o maior déficit do ciclo político recente, déficit seguramente agravado nessa fase de assalto aos céus.
O que acontece é que a nova política não precisa mais que os dedos de uma mão para contar as “instituições” ― sequer falemos de “populares” mas simplesmente aquelas de mobilização política e social ― postas em movimento nesses anos. Basta constatar que as “moradas” [núcleos de convivência] mal funcionam, que o acesso à máquina política se traduziu não em mais movimento social, mas em menos, como demonstra a diminuição paulatina dos centros sociais na cidade governada por Ahora Madrid; que os espaços do novo sindicalismo testados no ciclo do Movimento dos Indignados estão agora à margem, quando não contra os “partidos das mudanças”.
No entanto, sequer se poderia ver esse paradoxo em termos de contradição, porque para a direção do movimento “transformador” ela não existe. Assim o dizia há poucos dias, sem pretender qualquer jogo de palavras, o sempre claro Íñigo Errejón: “Precisamos de movimentos populares, não de resistência, não de queixa, mas de apoio aos nossos governos locais”. Para bom entendedor, precisamos de uma claque, um contingente que se possa ligar com o botão do aplausômetro ou da indignação, conforme a conveniência, e que torne realidade o sonho de que, estando dentro da máquina ― e apenas estando dentro dela ― é que as coisas podem ser mudadas.
Este debate pode nos parecer hoje um tanto abstruso e difícil, mas ele atravessa o coração da nervosa história dos levantes modernos. Assim, por exemplo, na década de 1890, mas sobretudo a partir de 1905, a onda de greves que atravessou a Europa a partir dos dois extremos do continente, modificou por completo o cenário político da época. Esse movimento revolveu as bases das burocracias sindicais e partidárias da II Internacional, a ponto de tornar possível falar de novo em revolução. Daquela maré de greves surgiu a esquerda social-democrata que, em seguida, conformaria as diferentes variantes do comunismo e, principalmente, do sindicalismo revolucionário, cujos exemplos mais notórios foram a primeira CGT da França, a Confederación Nacional del Trabajo (CNT), que alentou a Segunda República até a derrota na Guerra Civil Espanhola, e o movimento internacionalista e errante dos Industrial Workers of the World (IWW), os wooblies.
Daquela maré surgiu também uma instituição “popular”, o soviet ou conselho, prefiguração do que poderia ser uma outra política e um outro Estado (sem Estado). Tal foi o impacto, que aquele que ainda é tido como santo padroeiro de todos os estrategistas comunistas, V. I. Lênin, demorou meses até assimilar que não seria o partido e aintelligentsia que proporcionariam conteúdo à Revolução Russa, mas o soviet, convertido no seu “núcleo popular”.
Desafortunadamente, à luz dos fatos que se seguiram, mesmo ele não o entendeu inteiramente bem.
Esse motivo histórico nos colocaria, pois, a tarefa: temos que buscar e saber encontrar os nossos “soviets”. Seguramente eles não corresponderão à imagem de grandes fábricas ocupadas e de assembleias de milhares de operários. Tampouco parece que, ao menos no momento, possa dar lugar a uma grande organização social à maneira dos velhos sindicatos revolucionários. Mas, com certeza, dificilmente vai ser reconhecido em partidos improvisados e baseados não mais que em uma estratégia midiática. Contudo, existem fragmentos, embriões, rastros dessa nova institucionalidade popular nas recentes experiências das Mareas [movimentos de reivindicação setorializados, usando nomes de cores, que ocorreram no bojo doMovimento dos Indignados], nos grupos de moradia, nos centros sociais, nos diversos ativismos, nos experimentos do novo sindicalismo (e não estritamente laboral), nos feminismos, ecologismos, e na extensa trajetória dos movimentos de imigrantes, nos sindicatos de camelôs, e todo um longo, longuíssimo, etcétera de realidades de auto-organização estendidas ao longo de todo o território.
De qualquer modo, afirmar que sem movimento não há política, não significa desprezar as posições conquistadas dentro da máquina da política convencional. Implica apenas que é preciso reorientá-las para o seu verdadeiro lugar como instrumento de una contra-sociedade em crescimento, que aspira ser cada vez mais rica e inteligente. Para isso é preciso inverter radicalmente as prioridades: o partido como tática e instrumento subordinado, o movimento como estratégia e sujeito político. A partir dessa perspectiva, a debilidade dos atuais governos locais e do “partido das mudanças”, surge menos como um fracasso que como uma oportunidade.
Pela primeira vez em muitos anos temos um interlocutor reformista e fraco, o PSOE, que, golpeado adequadamente, não terá muita alternativa senão dirigir sua ação para onde as lutas e conflitos considerem mais útil. A opção parece ser simples: aproveitemos essa vantagem, sem nos deixar contaminar pelo espantoso fedor que toda burocracia exala quando ela se dedica às lutas intestinas. Façamos uso dela, sem nos deixar seduzir pelo deslumbramento da conquista de um Estado, que sabemos cada vez mais impotente, e que, se não entrar em um processo mais amplo e profundo (de mudanças que em certo sentido já começaram), não expressará mais que mera troca de figurantes entre as elites.
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