O governo assume a plataforma da UDN, de destruir o legado de Vargas e fazer do Brasil um país subordinado, criando risco de instabilidade
O governo Temer mobiliza forças poderosas, dentro e fora do País, capazes de por em risco as principais instituições do capitalismo brasileiro, todas elas, à exceção do Banco Central, construídas nos governos de Getúlio Vargas.
É a enésima tentativa de acabar com o legado varguista e devolver o Brasil à condição de economia agrária ou com indústria internacionalmente subordinada, o eterno objetivo dos udenistas de todas as épocas. Com risco de enorme convulsão social, cabe alertar.
Reconhecido especialista na política econômica varguista, o economista Pedro Cezar Dutra Fonseca, professor titular do departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, esclarece na entrevista a seguir o percurso da revolução de 1930 e lança luz sobre o porquê de o movimento industrializante não ter partido de São Paulo, mas de elites agrárias regionais interessadas em promover a industrialização local enquanto mercado para a sua produção.
No plano das ideias, situa o confronto entre a sociologia da USP, FHC incluído, com tendência a desqualificar a Revolução de 1930, e economistas de esquerda como Celso Furtado, Ignácio Rangel e Maria da Conceição Tavares, que “sempre entenderam não ser nada desprezível uma economia periférica latino-americana ensaiar um projeto de industrialização, mesmo com todos os problemas que houve”.
CartaCapital: Os ataques do atual governo à Petrobras, submetida a um processo de fragmentação, privatização e desnacionalização, à CLT, ao BNDES, põem em risco o legado varguista. Quais as consequências para o País? Há risco de irreversibilidades?
Pedro Cezar Dutra Fonseca: Das instituições do Estado no Brasil, possivelmente com exceção só do Banco Central, criado pelo governo militar, todas as outras, sejam empresas como a Petrobras ou bancos como o BNDES, órgãos como o IBGE, por exemplo, foram criadas pelos governos de Vargas. Elas foram se reatualizando e cumprindo novos papéis para a sociedade.
É difícil imaginar que isto aconteça, mas, no caso da sua extinção ou redução de importância, a consequência é grave. O BNDES é o maior banco de financiamento da América Latina, assim como a Petrobras é a maior ou uma das maiores empresas do continente.
Não é porque houve esses problemas todos nos últimos anos com a Petrobras que se pode apagar sua história toda, inclusive a questão da produção de petróleo no Brasil, que em certo momento, no governo Lula, emparelha com a demanda do mercado interno, em ascensão desde os anos 1950.
Outro aspecto importante é o da tecnologia de prospecção em águas profundas, sem paralelo no mundo, que possibilitou as descobertas do pré-sal. Realmente há um discurso que salienta só o lado negativo dos desvios de recursos nos últimos anos. Agora, há também o lado positivo da empresa e o seu papel estratégico para o País, que continua existindo, pela relevância que tem a produção de petróleo.
RETROAGIR AO MERCADO TOTALMENTE DESREGULADO ACABA EM GRAVE TURBULÊNCIA SOCIAL
CC: Portanto há um risco.
PCDF: Claro que sim. Assim como existe um risco na questão da CLT. Pode ser que alguma flexibilidade seja conveniente em alguns aspectos de negociação entre patrões e empregados. Agora, décimo-terceiro salário, férias, licença-saúde, são direitos universais dos trabalhadores. Voltar atrás nesses direitos consagrados em nome de uma flexibilização é muito complicado. Faz parte da história do capitalismo que os trabalhadores tenham férias, décimo-terceiro salário, previdência social.
Nós estaríamos retroagindo a história para o momento do mercado totalmente desregulado, e que acaba em enormes convulsões sociais. Possibilidade de reversão sempre existe na história que, ao contrário do que se pensa, é uma linha evolutiva, com vários retrocessos conservadores e que depois leva anos para recuperar. Entre muitos exemplos, pode-se citar o Congresso de Viena, o regresso conservador no Brasil na regência do Araújo Lima, diversos golpes militares ou civis.
CC: Quais foram as tentativas anteriores de desconstituir o legado econômico, institucional e político de Vargas?
PCDF: Esse projeto econômico e político do Vargas começa em 1930, com uma decisão que, na minha opinião, é consciente. Muitos autores nas áreas de história e de economia acham que iria acontecer de qualquer forma. Uma das características do meu trabalho é mostrar que se trata de algo consciente e que exige várias mudanças institucionais.
Em boa parte da literatura, mesmo de esquerda, Celso Furtado incluído, se diz que esse projeto foi inconsciente. Mas não foi, não se cria uma Siderúrgica Nacional sem querer. A mudança do código de minas, a reforma educacional como houve, a consolidação da legislação do trabalho, não foram só reativas. É preciso ter visão de conjunto e isso fica evidente nesse projeto, que sempre encontrou reação no Brasil.
DESDE 1932 ATÉ O GOVERNO TEMER, O ALVO PRINCIPAL SÃO OS DIREITOS TRABALHISTAS
CC: Quais foram as principais reações?
PCDF: Em 1932, São Paulo pegou em armas contra o projeto e foi sufocado pelo Exército Nacional, que estava ao lado de Vargas. Em 1937, também houve uma tentativa, mas o golpe do Estado Novo impediu. Houve ainda a investida integralista e a candidatura de Armando Salles Oliveira. A ditadura do Estado novo reagia contra a tentativa de se voltar à República Velha. Não se pode esquecer que os revolucionários de 1932 em São Paulo queriam o reestabelecimento da Constituição de 1889, uma regressão da história em 40 anos.
Quando chega 1946, desde o primeiro momento a UDN se coloca contra esse projeto. Alega que é xenófobo, exclui o capital estrangeiro, que vai atrofiar o Estado, causar inflação. E que era melhor comprar o produto de fora mais barato em vez de produzir aqui, pois o consumidor nacional seria prejudicado.
Tentou-se impedir as posses de Vargas e de Juscelino, até se chegar ao golpe de 1964, feito também pelas forças anti-varguistas. Este foi, portanto, um projeto que sempre dividiu a sociedade brasileira, inclusive a elite. Não era só trabalhadores versus empresários ou algo do gênero. Havia uma divisão dentro do próprio empresariado.
CC: Alguns fatos aludidos pelo senhor remetem à situação atual. O governo e o Congresso querem apagar a Constituição de 1988 e o presidente da Petrobras, Pedro Parente, encomenda plataformas de exploração de petróleo no exterior por serem mais baratas. O que explica essa recorrência?
PCDF: Quando derrubam Vargas, no fim do Estado Novo, uma das razões daquele movimento, muito forte em São Paulo, que é o do queremismo, pela Constituinte com Getúlio, é que a oposição, com a UDN formada, pleiteia uma nova constituição. Aí, começa a dizer o seguinte: esta nova constituição é para derrubar o entulho autoritário da ditadura, que seria a legislação trabalhista: jornada de oito horas, Justiça do Trabalho, férias, décimo-terceiro, isso tudo é baseado na Carta del Lavoro do Mussolini.
Mas como explicar para um trabalhador que se quer derrubar a ditadura e reinstaurar a democracia, mas ele não terá mais oito horas de jornada de trabalho, nem férias, etc.? É evidente que, nesse momento, a população começa a apoiar a ideia de Constituinte com Getúlio, um aval para não se mudar nada pelo menos na legislação trabalhista e social. Ou seja, a derrubada do Vargas significava derrotar não só a ditadura, mas a legislação trabalhista.
O DISCURSO MORALISTA ESCONDE SEUS VERDADEIROS OBJETIVOS COM A POSTURA ANTI-CORRUPÇÃO, QUE PEGA BEM
CC: Como era o discurso anticorrupção no tempo de Vargas?
PCDF: A oposição ao Vargas, comandada pela UDN, sempre teve um discurso moralista, ou moralizador. Ou seja, raramente dizia: sou contra a legislação trabalhista, contra a industrialização do País. Isso às vezes se encontra nos anais do Senado ou da Câmara, na fala de algum político. O ataque que se fazia para derrubar o governo era de que havia corrupção, era o que mais pegava bem na opinião pública, e a oposição explorava muito. Isso, em certo sentido, é parecido com hoje.
CC: Com a legislação trabalhista e a estabilização do emprego, Vargas possibilitou a previsibilidade de ganhos do trabalhador e contribuiu para a formação de um mercado de massa, ao menos para uma parte da indústria que estava se estruturando, a de bens-salário. Como o senhor analisa as tentativas posteriores de ampliação do mercado?
PCDF: A tentativa de ampliação do mercado interno dessa forma, com um desenvolvimentismo de massas que começa no governo Vargas, é quase retomada no governo Jango Goulart. Claro que em 1964 esse projeto cai por terra. Antes de mais nada, é preciso ter claro que o desenvolvimentismo em si não garante redistribuição de renda. É possível desenvolvimento com renda distribuída, como nos projetos de Vargas e de Goulart, mas pode acontecer também desenvolvimento com renda concentrada, como ocorreu no pós-1964.
No “milagre” brasileiro, o governo militar, desenvolvimentista, utilizou os bancos de fomento e fez uma política para a economia crescer aceleradamente, mas não incorporou um projeto de distribuição de renda. Nesse ponto, os governos de Lula e Dilma, num primeiro momento – é algo a ser estudado com mais vagar, estou pesquisando isso – lembram um pouco o que seria uma retomada do padrão de Vargas e de Goulart, de fazer desenvolvimento incorporando as parcelas de menor renda da população.
Aquilo que no Brasil se chamou eufemisticamente de nova classe média, que a rigor não é nova, nem classe, nem média, mas uma parte da população que antes não participava do mercado consumidor, ou participava marginalmente, e é incorporada ao mercado. A rigor, tratava-se de algo semelhante ao programa de Jango Goulart e de Celso Furtado, de antes de 1964, no Plano Trienal, de fazer uma série de reformas que permitisse uma melhor distribuição de renda e a constituição de um mercado de massas no Brasil.
A proposta de Lula e Dilma, portanto, não era algo que não existia antes no Brasil. Houve, só que politicamente se mostrou inviável a partir de 1964. Com Lula e Dilma, pelo menos houve uma tentativa, em parte retórica e em parte real, de incorporar a população de menor renda ao mercado consumidor, à economia capitalista propriamente dita.
A ENVERGADURA DA CONSTRUÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DE VARGAS DEMONSTRA UM PROJETO CONSCIENTE DE DESENVOLVIMENTO
CC: Com resultados reais, mostram os números de vários setores da economia.
PCDF: Claro. Houve um período de crescimento do emprego formal dos trabalhadores, o coeficiente de Gini melhorou. Isso não se pode apagar do dia para a noite.
CC: Qual foi a singularidade da política econômica de Vargas, nos anos 1930, tendo em vista o predomínio da ideia de industrialização nacional e de autossuficiência das economias em todos os programas relevantes, do New Deal de Roosevelt aos do fascismo e do nazismo? Em que aspectos se evidencia a interferência específica do Vargas ao não fazer um mero transplante?
PCDF: O que essas políticas têm em comum é que todas foram formas de intervenção do Estado na economia. Entretanto, cada uma teve uma cara diferente. O New Deal foi um intervencionismo por causa do ciclo econômico, da Grande Depressão.
O fascismo e o nazismo tem a ver com peculiaridades da história europeia, como a derrota na Primeira Guerra e a tensão do comunismo na Europa, ao qual o fascismo e o nazismo são reação. No caso do Brasil, é claro que há o impacto da Grande Depressão, mas a característica mais importante é o surgimento, em parte da elite brasileira, de uma consciência de que o País precisava vencer aquele modelo agroexportador, concentrado em um ou dois produtos primários voltados para o mercado externo.
Poderia, portanto, produzir para o mercado interno, com base num projeto de industrialização. Essa é a peculiaridade do governo Vargas frente aos outros intervencionismos da época. É uma consciência que já vinha gradualmente desde o início da República, e que a Grande Depressão cria uma oportunidade histórica para afirmar, da necessidade de um projeto de industrialização do País. Essa é a maior diferença em relação aos processos dos outros países.
CC: Com Getúlio, estado forte e desenvolvimento pujante da iniciativa privada combinavam-se. Isso ainda é possível?
PCDF: Esse modelo de substituição de importações que começa em 1930 com a industrialização no País é um exemplo muito particular do que hoje se chamaria de uma parceria do Estado com o setor privado. Porque cabe ao Estado criar o ambiente institucional para fomentar o projeto de industrialização, mas quem o leva adiante é a iniciativa privada.
O Estado no período de Vargas faz políticas econômica, monetária, cambial, cria órgãos como o Instituto do Açúcar e do Álcool e o Conselho Federal de Comércio Exterior e, no limite, empresas estatais a exemplo da Companhia Siderúrgica Nacional e da Petrobras, em setores nos quais a iniciativa privada não tinha, na época, condições de investir.
No início, cogitou-se a possibilidade dos setores de petróleo e siderurgia serem privados no Brasil, mas não havia grupo nacional para isso e Vargas não aceitava, nesses setores considerados estratégicos, o controle do capital estrangeiro. Admitia até a hipótese de a Petrobras ter uma porcentagem do capital estatal e outra privada, desde que fosse privada nacional.
Ao longo desse período, foi possível estabelecer aquela parceria, o Brasil cresceu, se industrializou como uma economia capitalista. O resultado é que, nos anos 1970, no ápice da industrialização brasileira, o País praticamente completa a sua substituição de importações. Foi, portanto, um processo exitoso.
VARGAS NÃO ERA XENÓFOBO, SÓ NÃO ABRIA MÃO DE BARGANHAR COM AS POTÊNCIAS EM BENEFÍCIO DO PAÍS
CC: Mas isso seria possível hoje?
PCDF: Eu acho que é possível, sim. Isso aí é um arranjo político, que não exclui o capital estrangeiro.
CC: Como mostrou o governo de Juscelino Kubitschek.
PCDF: Ele não excluiu o capital estrangeiro. Mesmo na época do Vargas, se considerarmos o exemplo da Companhia Siderúrgica Nacional, ela foi feita com tecnologia e financiamento norte-americanos, apesar de ser de controle estatal. Acredito que essas parcerias, além de continuarem possíveis, hoje estão na ordem do dia. O arranjo não vai se repetir como era, mas impossível ele não é, não. Ao contrário, é exatamente como outros países também fazem.
CC: Como o senhor vê a formulação dominante de que a indústria está superada e vivemos numa época pós-industrial?
PCDF: Eu não vejo a indústria como superada. Esse é um grande debate na economia. A tendência é que a porcentagem do valor agregado da indústria no PIB caia ao longo do tempo, isso é verdadeiro. Mas não significa, entretanto, que esse setor fique menos importante, pois é na indústria que ocorre o avanço tecnológico.
Por exemplo, há toda uma sociedade de serviços com base na informática, mas uma hora a respectiva tecnologia tem de ser produzida pelo setor industrial. É onde vai surgir a massificação, inclusive dos produtos. Muitos serviços só se tornaram possíveis com os investimentos e as inovações tecnológicas surgidas no setor industrial. Na verdade, ela reforça ainda mais o seu valor, porque lidera uma cadeia produtiva.
CC: É o que mostra o exemplo do iPad. Apenas 7% do valor final corresponde a peças e montagem. Só que, sem esse produto físico fabricado pela indústria, não existiriam os restantes 93% compostos por serviços de transporte, marketing, distribuição, etc.
PCDF: Exatamente. Isso vale também para agricultura e o agribusiness. Na verdade, há uma industrialização desse setor. Aqueles investimentos que dependem da indústria são os que alavancam a produtividade do setor no longo prazo. Então esse debate tem às vezes este fetiche: “Ah, indústria não é mais relevante”. Não se pode interpretar o número dessa forma, tem-se que fazê-lo qualitativamente também.
O APOIO DAS ELITES AGRÁRIAS REGIONAIS VOLTADAS PARA O MERCADO INTERNO FOI FUNDAMENTAL EM 1930
CC: Esse discurso da sociedade pós-industrial foi apropriado para o governo dos Estados Unidos justificar a relocalização industrial na Ásia, geradora de desemprego doméstico.
PCDF: Sem dúvida.
CC: São Paulo, de líder da economia cafeeira, passou a líder da industrialização. Como vê a trajetória do poder paulista no País desde então? Qual é a lógica desse caminho sinuoso?
PCDF: É um processo muito interessante, porque a economia de São Paulo já se torna, no final do Império, a principal do País e essa condição permanece com a industrialização. É importante notar que São Paulo é o lugar com mais condições para o surgimento da indústria, porque ali estava o maior mercado interno e a infraestrutura, eletrificação, estrada de ferro, portos, que eram necessários para a economia cafeeira.
Foi exatamente naquele setor mais pujante da economia cafeeira que se gerou toda essa infraestrutura, o mercado interno, a riqueza ou acumulação de capital que vai possibilitar a industrialização. À primeira vista, parece uma coisa contraditória, mas não é. O que há sim é que sempre existirá uma parte da elite paulista muito forte vinculada a esse contexto exportador.
Coexistirão por longo tempo um paulista quatrocentão, vamos dizer assim, mais ligado aos interesses do café, e um empresariado emergente, composto por muitos imigrantes, que vão disputar hegemonia. Hoje esse conflito está em parte ultrapassado, com a força e a pujança da industrialização, mas durante muito tempo ele existiu. O que é mais surpreendente é a Revolução de 1930 não partir de São Paulo, mas do Rio Grande do Sul.
CC: Isso é curiosíssimo.
PCDF: É interessante porque, na crise da economia cafeeira, quem lidera esse movimento não é o setor agrário voltado para o mercado externo. O que a chapa de Getúlio Vargas e João Pessoa representava em 1930 não era burguesia industrial emergente, mas setores ainda agrários e que enxergam uma oportunidade de participar do bloco de poder anterior. Mas eles ensaiam um projeto próprio. Isso é algo muito particular do Brasil. O País tinha um setor agrário de mercado interno forte.
Não era o caso de Argentina, México, Chile, que eram países onde o setor agrário-exportador era muito mais pujante em termos relativos. Enquanto no Brasil havia economias regionais agrárias expressivas. E esse setor agrário regional não é contra a industrialização, pelo contrário, e isso é importante perceber. Esse setor agrário não tinha uma luta de classes com o setor industrial como na Europa, porque entendia a indústria como um mercado e uma oportunidade de valorização da sua matéria-prima. Por exemplo, o fazendeiro do Rio Grande do Sul quer que existam frigoríficos, não os considera adversários.
Antes, o contrário, porque vão valorizar a sua matéria-prima. Para quem produz trigo, é ótimo existirem moinhos de trigo, fábricas de bolacha, macarrão. Quem produz uvas tem interesse na criação de vinícolas. No caso de criadores de porcos, as fábricas de salsicha, de banha, salame representam consumo para a sua produção. Essa indústria era chamada na época de indústria natural, era aquela que beneficiava a matéria-prima local e tinha ampla oportunidade no mercado interno.
Esse setor, que desponta em 1930 e que o Vargas representa, é uma elite do setor agrário, mas do setor agrário do mercado interno, e que vê a industrialização como um projeto de avanço para o País.
O SOCIALISTA UTÓPICO SAINT-SIMON INFLUENCIOU MAIS GETÚLIO VARGAS QUE COMTE, O PAI O POSITIVISMO
CC: É uma peculiaridade?
PCDF: É uma peculiaridade muito importante e que ajuda a entender algo à primeira vista contraditório: como é possível Vargas e seu grupo emergirem do setor agrário e serem ferrenhamente defensores da industrialização e a levarem adiante? Por que a Revolução de 1930 não saiu de São Paulo, já que lá é a fonte da industrialização?
É que São Paulo tinha essa marca agroexportadora e o inusitado do processo, em termos históricos, é que, ainda na ausência de um setor industrial forte, o processo parte do setor agrário do mercado interno. Esta é a ideia. Este é um dos assuntos que mais pesquisei, escrevi um artigo sobre isso tentando explicar, porque é uma pergunta recorrente.
CC: O artigo foi publicado?
PCDF: Sim, na Revista Estudos Econômicos, da USP, sob o título “A gênese regional da Revolução de 1930”.
CC: Sabe-se que o positivismo influenciou fortemente a formação das concepções econômicas de Vargas, orientadas para a criação das condições necessárias à industrialização, a modernização, o progresso. Em que as concepções e a prática de Vargas se diferenciaram da ortodoxia positivista?
PCDF: Ao contrário do liberalismo, essa concepção aceita uma certa intervenção do Estado na economia. Os positivistas entendiam que, quando havia uma necessidade social --- eles eram mais pragmáticos, vamos dizer – o Estado poderia interferir.
Defendem o livre mercado, mas não o entendem como um dogma. Não acham que o livre mercado sempre acerta nem que tem um equilíbrio automático, consideravam isso anticientífico. O positivismo sempre quer provas empíricas para o que se propõem.
Outra característica importante é entender a história como um processo evolutivo. O Brasil (assim como a América Latina) é um País atrasado, portanto pode acelerar sua evolução ou até superar esse atraso. Esse atraso vai se transformar, mais tarde, nas formulações de Celso Furtado e da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), em subdesenvolvimento.
O germe da concepção de subdesenvolvimento, nos anos 1950, vem da elite do início da República que tem essa concepção de atraso e chega a ter força para inscrever na bandeira o lema Ordem e Progresso. O progresso era o desenvolvimento, assim era entendida a questão.
Outro ponto do positivismo que me parece interessante é criticar a luta de classes. Ele é uma ideologia defensora do capitalismo, mas propõe que o proletariado seja integrado à sociedade moderna e considera importante haver leis sociais. Diferente do liberalismo, que abandona a classe operária. Essa característica do positivismo permite entender porque a elite que emerge em 1930 se preocupa e chega ao limite de bancar uma legislação social.
Não vou dizer criar, porque já existiam antes leis sociais, mas eram muito poucas. O que há é uma universalização maior das leis sociais, com jornada de oito horas, décimo-terceiro salário, carteira do trabalho, etc. Portanto há uma relação de origem do trabalhismo gaúcho e brasileiro com o positivismo.
A SOCIOLOGIA DA USP, FHC INCLUÍDO, DESQUALIFICOU A REVOLUÇÃO DE 1930, MAS HÁ UMA REVISÃO DESSE PENSAMENTO
CC: Qual era o problema do positivismo?
PCDF: O positivismo, apesar de ter todas essas críticas ao liberalismo e de aceitar a intervenção do Estado na economia, tinha a concepção que denominamos em economia de o dogma das finanças sadias. Ou seja, o Estado podia intervir, mas não deveria ter déficit. E precisava evitar ao máximo empréstimos externos e internos, não se endividar.
Em momentos de crise, isso era preocupante, porque inviabilizava aquilo que os keynesianos chamariam de política anticíclica. Essa é uma diferença importante entre o keynesianismo e a social-democracia em relação ao positivismo. Porque o positivismo aceita a intervenção do Estado, mas é contra empréstimos e defende o dogma das finanças sadias.
CC: A tal austeridade.
PCDF: Exatamente. Então é um aspecto interessante no pensamento de Vargas porque, antes de 1930, ele era muito mais apegado a esses preceitos positivistas, mas depois, gradualmente, ele faz uma transição do positivismo para o desenvolvimentismo. No desenvolvimentismo os empréstimos, tanto internos quanto externos, e a possibilidade de déficit, dentro de certos limites, são aceitos.
A análise dos discursos de Vargas mostra que, mesmo nos anos 1950, ele nunca abandona a ideia de que um orçamento deve ter déficit, mas dentro de certos limites. É um equívoco, portanto, dizer que o desenvolvimentismo era perdulário, gastador. Ao contrário.
No final dos 15 anos do primeiro governo Vargas, a inflação estava razoavelmente baixa – um fato digno de nota, porque nos períodos de guerra a inflação sobe – e o balanço de pagamentos estava razoavelmente equilibrado. Se o desenvolvimentismo fosse um absurdo teórico, digamos assim, ele teria entregado um governo quebrado. Ao contrário, foi ele que assumiu o governo quebrado do Washington Luís.
CC: A inflação baixa e o balanço de pagamentos em equilíbrio no fim do primeiro governo são dignos de nota também por conta da sua obra monumental, com grandes investimentos.
PCDF: Sim. Hoje há essa crítica: Ah, 'o desenvolvimentismo é que quebra o País, gasta mais do que arrecada', mas a história do desenvolvimentismo compreende governos que gastam mais e aqueles que gastam menos. O governo de Juscelino Kubitschek, por exemplo, foi de extremo déficit público, com a construção de Brasília e outros gastos. Mas nem todo governo desenvolvimentista tem esse padrão de comportamento, mostra o exemplo do período Vargas, apesar de ter levado adiante projetos de desenvolvimento extremamente importantes.
A AVERSÃO A UM PROJETO PRÓPRIO PARA O BRASIL UNE A UDN À BASE DE APOIO DO GOVERNO TEMER
CC: Quais foram os principais autores com influência no pensamento de Getúlio Vargas?
PCDF: Eu obtive nos arquivos da faculdade de Porto Alegre as provas dos alunos no tempo em que Vargas estudava Direito e assim pude ver quais autores ele cita nos exames. Claro que nem tudo reflete nas provas de aula, mas elas são um bom indicador. Certa vez confessou que o autor mais importante na sua formação foi Saint-Simon, considerado por Karl Marx e Friedrich Engels um socialista utópico, e que foi também mestre de Augusto Comte, o pai do Positivismo.
Vargas não cita Comte, mas menciona com destaque Saint-Simon, autor do seu livro de cabeceira. Saint-Simon era um crítico da revolução industrial, mas ao mesmo tempo defendia a indústria. A sua crítica se dirigia às consequências do processo, a situação em que a classe operária, com a revolução industrial, trabalhava quinze horas por dia, as crianças trabalhavam. Defendia a indústria, mas num projeto social com inclusão, vamos dizer assim.
Essas definições influenciaram o pensamento do Comte. Era de esperar que Vargas citasse Comte, uma autoridade em termos teóricos no Partido Republicano, mas ele menciona um autor um pouco mais radical, inclusive, que o próprio Comte. Outro muito citado além de Saint-Simon é Stuart Mill, um reformista considerado liberal, mas não ortodoxo. Há os autores que ele critica: Karl Marx e Pierre-Joseph Proudhon.
CC: A dificuldade de parte da esquerda em reconhecer que o período de Vargas foi um avanço decorre apenas do ataque feroz, no período ditatorial, ao Partido Comunista ou também de uma falta de conhecimento e de compreensão político-econômica?
PCDF: A esquerda sempre se dividiu nessa questão, não há uma posição única. Parte dela foi muito crítica ao varguismo e à revolução de 1930. Principalmente, a escola de sociologia da USP e quem ela ajudou a formar – Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Otávio Ianni, Francisco Weffort –, estes autores tenderam a considerar a revolução de 1930 como a emergência do populismo. Era uma forma de desqualificar a revolução: uma ditadura, com um líder de massas, paternalista, constituía quase que um atraso para o Brasil.
Essa parcela viu de uma forma muito mais crítica aquele momento da história brasileira, assim como depreciaram a democracia que existiu entre 1946 e 1964, populista, com partidos que não representavam nada. Eu considero isso aí uma série de equívocos. Por outro lado, sempre existiram também intelectuais de esquerda que, ao contrário, viram a revolução de 1930 e esse período histórico como rico.
Cito, por exemplo, Celso Furtado, Ignácio Rangel, Maria da Conceição Tavares, esses autores que sempre entenderam não ser nada desprezível uma economia periférica latino-americana ensaiar um projeto de industrialização, mesmo com todos os problemas que houve. Afirmam que aquilo ali significou, sim, um avanço para o País, de romper com o passado agrário e ter um projeto que acenasse para uma inclusão social de longo prazo.
A escola de sociologia da USP foi muito hegemônica em determinado momento. Hoje se faz a revisão desse pensamento, tanto na economia como na política e se mostra que esse populismo, na verdade, era o trabalhismo brasileiro. O risco de não entender essa especificidade é não conseguir explicar o que aconteceu em 1964. Se havia um atraso, uma classe operária manipulada, demagogia, como explicar a aversão da UDN a esse projeto?
CC: Quais forças políticas cumprem hoje um papel semelhante àquele da UDN no período Vargas?
PCDF: A UDN foi um fenômeno histórico muito claro, ela tinha aversão à industrialização e à substituição de importações. Entendia que esse projeto, principalmente quando entrava na inclusão social, era desaconselhável para o País. No seu modo de entender, o Brasil devia seguir uma divisão internacional do trabalho na qual o seu destino era ser um país agrário, ou então fazer uma industrialização desde cedo associada ao capital estrangeiro. Aquele partido tinha aversão ao nacionalismo de Vargas, embora este não fosse radical.
Em certos momentos, entretanto, essa orientação aflorava, por exemplo na ideia de que a Petrobras podia ser privada, mas privada nacional. Aí havia uma fricção. Considero difícil que, como fenômeno histórico, isso se repita, mas continuarão existindo partidos que assumam ideologias mais próximas ao liberalismo, como fez a UDN, apesar do liberalismo de hoje ser diferente do daquela época.
A agenda liberal foi reatualizada – hoje, as questões são as do capital financeiro, da regulamentação dos juros, da flexibilização do mercado de trabalho, entre outras –, e vários partidos que dão sustentação ao governo Temer estão assumindo essa posição. Não é a mesma coisa que a UDN, mas formalmente é a mesma ideia de que não se deve ter um projeto nacional. O projeto nacional é de integração à economia internacional.
CC: Nisso, a base de sustentação do governo Temer é herdeira legítima da UDN.
PCDF: O projeto da UDN era de integração à economia internacional. O projeto de Vargas não era contra que se integrasse, mas sempre havia uma barganha.
CC: É o que a China faz hoje.
PCDF: Significa que a China tem seu projeto próprio, que não exclui as relações com o exterior. Outros países relevantes têm projetos semelhantes. É um equívoco imaginar que Vargas fosse um nacionalista xenófobo. Não se deve esquecer que foi o único na América Latina a se alinhar aos Estados Unidos na guerra, portanto não era visceralmente ou irracionalmente xenófobo.
CC: A contrapartida foi benéfica ao País, pois Vargas ameaçou aliar-se ao Eixo Alemanha-Japão-Itália e com isso obteve dos Estados Unidos financiamento para construir a Usina de Volta Redonda, fundamental à constituição da indústria no Brasil.
PCDF: Exatamente. Não havia essa exclusão. O que havia era barganha, a partir das exigências de um projeto pronto, que não era de integração pura e simples à economia internacional.
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