Aldo Fornazieri, diretor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, é um intelectual lúcido, independente e corajoso.
Há algumas semanas, sua participação num programa da GloboNews viralizou depois que ele deu uma pequena aula a Renata Lo Prete sobre a Lava Jato e Sérgio Moro, sendo interrompido pela jornalista quando o roteiro saiu do controle.
Também escreveu um texto demolidor chamado “Os Escombros do PT”. Aí apanhou de boa parte da esquerda.
Aldo foi um dos entrevistados do programa do DCM na TVT. Ele recebeu nossa equipe numa sala da escola na Vila Buarque, ao lado de Higienópolis. Estava se recuperando de uma gripe, o que não o impediu de dar uma longa e contundente panorâmica sobre o que vivemos hoje.
Abaixo, alguns trechos da conversa. O DCM na TVT é apresentado por Marcelo Godoy e a direção é de Max Alvim.
A sociedade não tem condições de dar um basta na Lava Jato porque existem meandros técnicos e jurídicos que são de difícil compreensão para o senso comum, para a opinião pública.
Tem que haver uma reação das forças democráticas conscientes e organizadas. O meio acadêmico, o meio jornalístico, o meio jurídico, o meio sindical, pessoas que acompanham um pouco melhor toda essa situação têm que criar uma barragem, uma contenção à sucessão de arbitrariedades que vem acontecendo, seja pelos procuradores, seja pela PF comandada pelo juiz Moro.
Regimes autoritário usam, instrumentalizam as polícias para fins políticos. Formalmente, a PF é submetida ao Ministério da Justiça, tanto é que aqui quem escolhe o diretor geral é o ministro da Justiça. Mas uma coisa é ela ser submetida formalmente e outra operacionalmente. O que fere a autonomia da PF é que o ministro da Justiça pode usá-la para fins políticos para combater o adversário, para causar prejuízos políticos aos adversários. É típico de regimes de força.
A detenção do Guido Mantega foi escandalosa. Era para fazer o quê? A coisa foi tão escandalosa que sequer ele foi ouvido. É uma demonstração clara de que não havia necessidade nenhuma de detê-lo e que a detenção do Guido Mantega foi um espetáculo político visando influir nos rumos dos acontecimentos políticos no país.
Quem tem responsabilidade com a democracia tem que lutar contra isso. Tem que denunciar esse movimento de violação do Estado democrático de direito, que já vinha sendo violado antes do afastamento definitivo da presidenta Dilma. O próprio afastamento foi uma quebra do Estado democrático de direito, em que a Constituição foi violada porque não havia caracterização de crime de responsabilidade.
Se você for ver a Constituição norte americana, ela proíbe qualquer lei que tenha caráter retroativo. Aqui nem foi uma lei, foi um entendimento do TCU, que não tem condições de fazer leis.
No momento da ascensão do nazismo, o que os nazistas fizeram? Denunciavam que havia um clima de violência na sociedade e em nome dessa denúncia desse clima de violência eles foram endurecendo o regime. Aqui no Brasil, qual foi o movimento? Imputou-se o PT como o grande responsável pela corrupção no Brasil, tirou-se o PT do governo e agora, particularmente no âmbito do judiciário do MP, usam-se instrumentos que ferem claramente a lei e a Constituição. Esses expedientes de manipulação da opinião pública sempre são largamente usados para aqueles que querem um regime mais autoritário.
O Sérgio Moro foi ungido pela opinião publica como salvador da pátria e isso é muito perigoso porque não cabe ao juiz ser popular. O juiz tem que agir dentro da lei. A covardia dos Tribunais Superiores aceitaram esse jogo da pressão da opinião publica. Quando você tem isso, você não tem mais Constituição, não tem mais República, não tem mais lei. Você tem julgamentos arbitrários ao sabor dos acontecimentos políticos e de quem tem mais força política.
Acho que o PT foi um dos artífices da criação desse 4º poder que é o Ministério Público. O partido sempre apoiou essas iniciativas. Veja o seguinte: dentro da teoria republicana presidencialista moderna, que nasce lá com os federalistas norte americanos, o pressuposto da República é de que nenhum poder deve ficar sem controle porque eles partem de uma visão negativa da natureza humana, de que quem tem poder tende ao abuso. Portanto, todos os poderes têm que ser controlados. Eles aperfeiçoaram a teoria do equilíbrio dos pesos e freios do poder, principalmente no Executivo, Legislativo e Judiciário.
O que acontece aqui no Brasil? O MP é o 4º poder, que não é controlado por ninguém. Isso foi um erro que está na Constituição, que está nas leis que regulamentam o MP. E isso fere a República, destrói a República. O Ministério Público é um poder que tem independência e autonomia totais, não tem nenhum freio, nenhum contrapeso, nenhum controle. Existe uma excrescência, um tumor na República Brasileira, e esse tumor tem que ser lacerado, ser saneado: é preciso estabelecer algum tipo de controle sobre o MP.
Na Constituinte de 1988 e em momentos posteriores, quando o PT deu apoio a essa autonomização e independência do MP, acho que isso foi um equívoco. Ninguém é contra que o MP exerça um papel republicano e que tenha autonomia investigativa e principalmente investigue a corrupção. No entanto, o que o MP faz hoje? Ele se instituiu como ator político. Se ele não tem controle, ele foge completamente a um principio republicano.
As pessoas no MP querem promoção, querem publicidade, querem aparecer, querem dar palestras cobrando uma fortuna, assim por diante. Elas podem cometer erros e se eles são cometidos, quem controla o MP? Se o presidente da República comete erros, ele tem um duplo controle, o Congresso e o Judiciário. Se o Judiciário comete erros, ele também tem controle. O próprio Congresso pode propor impeachment de juiz do STF. O MP não tem controle. Isso é antirrepublicano, é contra o estado democrático de direito porque você dá um poder absurdo para um grupo. O MP seria o que nós chamamos de um órgão típico do Estado e ele não pode ser politizado porque tem que ter isenção.
Ninguém defende as pessoas que cometeram malfeitos do PT, mas não chama a atenção o fato de só gente do PT ser presa, só gente do PT ser julgada e não se fazer nada contra pessoas de outros partidos ? O que isso indica? Indica que há um viés político partidário nas ações do MP, do juiz Moro e da PF e isso vai semeando rastros de ódios que não vão acabar bem na República. Normalmente, como acabam esses conflitos? Se nós olharmos para a história das Repúblicas, eles acabam em violência política. Não sou só eu que teme isso. Vários intelectuais e pensadores temem que esse processo descambe.
Na vida em sociedade, duas coisas são extremamente desencadeadoras de paixões: política e religião. Um funcionário público, principalmente quando ele tem a missão de acusar e investigar, que é o que o MP faz, tem que se isentar de misturar suas atividades com essas duas coisas porque ele é um estimulador da paixão. Eu já chamei os procuradores de procuradorismo, como o tenentismo da década de 1920. Os tenentistas tinham armas e também queriam a salvação do Brasil. Tinham um discurso fortemente moralizante, bastante semelhante a esse adotado pelos procuradores da Lava Jato. Qual foi desfecho do movimento tenentista? Foram os generais de 1964. Quem garante que amanhã ou depois, num processo que vivemos de uma visão negativa da política, um procurador desses não se candidata com discurso extremamente moralizante e termina se tornando presidente do Brasil? Essa possibilidade não deve ser descartada.
Acho que há uma irresponsabilidade desse Deltan Dallagnol ao misturar em 1º lugar a sua atividade funcional, que deve ser isenta e republicana, com a religião, que é um elemento despertador de paixões e com com a política.
Eu entendo que é uma crise de longo prazo. Nós temos uma pobreza muito significativa, o principal problema do Brasil é uma desigualdade muito intensa. A metade dos jovens que terminam o ensino fundamental não terminam o ensino médio. Qual é o futuro do país com um quadro desses?
O jurista Raymundo Faoro, que foi presidente da OAB, tem um livro chamado “Os donos do Poder” em que chama a atenção para uma peculiaridade no Brasil, que são as mudanças. Se você for ver, a Independência, a Proclamação da República, a Revolução de 30, o Golpe de 64, a redemocratização e o próprio governo do PT sempre foram mudanças pelo alto, um acordo entre elites. Faoro usa o termo “transições trançadas” para explicar as mudanças no Brasil. Os pactos são feitos entre as elites e o povo é sempre excluído. Na Independência, se dizia que Portugal não perdeu uma colônia, mas ganhou um rei. Isso cria elementos de cultura política complicados que nós temos que removê-los em algum momento da história. Se não, vamos continuar tateando no escuro porque uma hora você culpa o presidencialismo de coalizão, outra hora você culpa a Constituição, que é parlamentarista.
Eu sou seguidor do Maquiavel, aliás prego pros meus estudantes: menos Marx, mais Maquiavel. Maquiavel tem uma teoria da fundação dos Estados. Ele diz que uma República mal fundada vai ficar décadas, quiçá séculos, tentando encontrar um caminho, fazendo leis e mais leis e jamais dará certo se ela não se refundar. A rigor, o que nós teríamos que fazer é refundar o país. Outro problema que Sérgio Buarque de Holanda viu: o Brasil nunca se deu um destino. Se você olhar para os Estados Unidos, a teoria do destino manifesto é uma coisa espetacular porque é a energia constitutiva do país, de um povo que se dá um lugar aonde quer chegar. Onde nós queremos chegar? Qual o programa de chegada que os partidos brasileiros propõem? Que projeto de país eles propõem? Nenhum. Com esse tipo de situação, não vamos a lugar nenhum. Pode ter presidencialismo disso, daquilo que não resolverá o problema.
Nós regredimos, a democracia brasileira está doente. Não é normal derrubarmos dois presidentes em 25 anos, cassando o voto popular. Cassar o voto popular é uma coisa muito séria. Esse impeachment presidencialista foi criado nos EUA na constituição de 1787. De lá pra cá, três presidentes sofreram tentativa de impeachment e nenhum foi derrubado pelo impeachment. O único que saiu foi o Nixon, mas por renúncia. O respeito à soberania do povo, coisa que no Brasil nunca tivemos, nós temos uma vocação golpista, é uma coisa muito grave. Ou você respeita o povo ou não tem uma democracia efetiva. Nos EUA, quem escolhe o candidato a presidente da República? É o povo. Quem escolheu a Dilma como candidata? Lula. Quem escolheu Doria como candidato a prefeito? Alckmin. Se você não chama a sociedade como ator principal do jogo político, sempre será o conciliábulo entre as elites, sempre serão transições trançadas no sentido do Raymundo Faoro.
O Brasil tem a tradição de não seguir a Constituição. Quando aconteceu o golpe militar em 64, o Supremo validou o golpe, declarou vaga a presidência da República estando ainda Goulart no território brasileiro. Quando houve o Plano Collor, o Supremo validou ações inconstitucionais do Collor. Agora o Gilmar Mendes é ator político. Aqui, os poderes não seguem a lei, não seguem a Constituição. Segundo a teoria republicana Maquiavel, tem todo o problema de exemplo. A exemplaridade é constitutiva da ética e da moral da sociedade. Se os de cima não dão exemplo, os debaixo também não terão moral e ética. A sociedade brasileira é um pouco isso, como ela não tem líderes virtuosos e autênticos, ela se torna também permissiva porque os líderes são permissivos — no Executivo, no Legislativo e no Judiciário.
Lula é vítima de uma série de injustiças, de arbitrariedades e assim por diante. Nós temos que ser radicalmente contra a violação dos direitos do Lula e contra essa perseguição. Por outro lado, o Lula errou exatamente no fato de que um país precisa que seus líderes sejam virtuosos e que eles dêem o exemplo. Então o Lula se meteu em miudezas que não podia ter se metido. Ele tinha que ter comandado de forma radical o seu governo, o seu partido. Vou dar um exemplo do que significa a teoria da exemplaridade e da virtude, sem a qual nós não vamos construir nada de grandioso. Você sabe que a data da proclamação da República romana é tida como 512 antes de cristo. O grande mentor da fundação foi Lucius Junius Brutus, que era uma pessoa da elite. Terminou derrubando a monarquia e implantando a República.
Brutus era o cônsul, o cargo máximo. Houve uma rebelião da juventude da nobreza romana contra a República e entre esses jovens estavam seus dois filhos. Ele os amava muito, no entanto teve que comandar o processo de julgamento deles e determinar sua execução em nome da República. Isso é a virtude do exemplo. Enquanto nossos líderes não forem imbuídos dessa virtude, dessa exemplaridade, nada de significativo vai acontecer no Brasil. Nesse sentido, o Lula não tinha o direito de jogar fora essa imagem que havia construído na história do Brasil.
Sobre o AutorDiretor-adjunto do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.
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