sábado, 15 de outubro de 2016

O Tisa que nos ameaça

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Por H. Raphael de Carvalho
Pátria Grande, Caros Amigos 

Neste princípio de século, a América do Sul, depois do ciclo de ditaduras implantadas por intervenções patrocinadas pelos EUA e de sua substituição por governos de corte neoliberal alinhados com o consenso de Washington, entrou num ciclo de governos voltados para a defesa dos interesses populares e simpáticos à ideia da integração continental.
Na história sul-americana, os interesses populares, a defesa das riquezas nacionais e a política integracionista são sempre apresentados como uma ameaça ao poder imperial de plantão (antes Inglaterra e hoje EUA) e aos seus cipaios, papel das classes dominantes locais. O Mercosul (apesar das dificuldades)e a Unasul constituem passos importantes na integração sul-americana, como estabelecido na Constituição Brasileira. A barreira erguida por Lula, Kirchner e Chávez à pretensão dos EUA de instituir a Alca foi uma grande vitória dos que lutam pela construção da Pátria Grande, pois a Alca seria a perpetuação do neocolonialismo que os EUA, tendo as burguesias paulista e portenha como sócias, exercem em nosso continente.

Esse processo virtuoso, confirmado pelas vitórias eleitorais do PT, do kirchnerismo (peronista), da Frente Ampla, do Chavismo, e demais representantes das forças populares no continente, vem sendo ameaçado por uma virulenta campanha promovida através dos meios de comunicação, poder judiciário, e outras agências comprometidas com as decisões tomadas no Departamento de Estado dos EUA.

Concomitantemente, aliados históricos ou ocasionais das forças populares, atuando do lado de dentro dos governos eleitos pelo compromisso com a agenda virtuosa, defendem medidas antagônicasaos interesses manifestados democraticamente. Este é o caso do Tisa (Acordo de Liberação do Comércio de Serviços). Matéria ainda pouco conhecida em nosso País, mesmo entre os estudiosos das relações internacionais, a intenção manifestada por setores do governo uruguaio de aderir aoTisa, em claro desrespeito às regras estabelecidas pelo Mercosul tem provocado fortes reações . Desde o dia 18 de maio, a Fundação Vivian Trias (cujo nome homenageia um dos mais importantes lutadores da integração dos povos que compõem a Pátria Grande), associada à PIT-CNT (a combativa e influente central sindical) está promovendo seu 42º Foro de Debate, sob o tema “O Tisa e o regionalismo aberto em questão.

Luis Vignolo, importante intelectual e dirigente da Fundação Vivian Trias, lembrou em artigo recente (publicado em “Meté um Cambio”, periódico da tendência Izquierdaen Marcha, que integra a Frente Ampla) que Barack Obama afirmou que os EUA devem escrever “as regras da economia global” e evitar que as normas sejam estabelecidas pelos chineses. Nessa declaração está refletida a luta pelo poder mundial, e essa é a essência do Tisa pois, como destaca Vignolo, a Estratégia de Segurança Nacional dos EUA para 2015, deixa claro que esse tipo de acordo é iniciativa de prioridade militar, visando a segurança nacional dos EUA. Ou seja, o Tisa não é apenas um mero acordo comercial. Isso fica claro no trecho do citado documento que estabelece a busca de “acordos para liberalizar o comércio de serviços” como parte importante da estratégia de segurança dos EUA.
"A proposta do Tisa, embora se assuma como multilateral, exclui totalmente a OMC (Organização Mundial do Comércio) e tem como objetivo mal disfarçado enfraquecer as formas autênticas de construção de um mundo multipolar, recentemente efetivadas. Além da OMC, o Tisa exclui os Brics e o Mercosul, por exemplo"
A proposta do Tisa, embora se assuma como multilateral, exclui totalmente a OMC (Organização Mundial do Comércio) e tem como objetivo mal disfarçado enfraquecer as formas autênticas de construção de um mundo multipolar, recentemente efetivadas. Além da OMC, o Tisa exclui os Brics e o Mercosul, por exemplo.
As críticas de importantes setores da Frente Ampla ao governo pela negociação que abre possibilidade de adesão ao Tisa se baseiam também em aspectos formais, pois as normas do Mercosul impedem que qualquer um de seus membros firme tratados em separado. Mas, como afirmou Vignolo, a posição de negociar em separado pode significar que o País estaria voltando ao papel de “estado-tampão”, funcionando como mera “base logística a serviço da potência hegemônica contra os interesses do Brasil  e da unidade latino-americana”.
Essa firme posição acaba de sofrer dois duros golpes oriundos do Brasil. O primeiro foi registrado nas páginas do jornal El Observador (de Montevidéu). O título é sugestivo: “Governo celebra gesto do Brasil para admitir acordos fora do Mercosul”. A matéria trata de declarações do ministro brasileiro (do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Internacional) Armando Monteiro, pedindo a revisão das normas do Mercosul, para permitir que os países sócios tenham liberdade de assinar acordos comerciais com outros blocos.
Mas esse não seria o golpe mais duro. Na edição online de 9 de maio de O Globo, o ministro de Assuntos Estratégicos Mangabeira Unger, (caso não se trate aqui de mais uma das famosas “edições” que o grupo costuma produzir)  decidiu desmentir sua célebre frase de que seu sotaque se manifesta apenas na fala. Demonstrando que talvez o sotaque de ianque seja ainda mais forte no tocante às ideias disparou: “O Mercosul é corpo sem espírito(...) os Estados Unidos são a grande prioridade da política externa”.
Na matéria há mais (sempre com a ressalva da qualidade jornalística Globo, mas com a “pulga atrás daorelha” por não ter sabido de nenhum desmentido.) “pérolas” dignas da tradição cipaia. “É nossa república irmã”, teria afirmado em nova referência a seu país adotivo. Ele também sugere “que o Brasil se alie aos EUA na defesa de interesses comuns ante a ascensão econômica e militar da China”.
 Embora seja verdade que logo em seguida defenda a exigência de transferência de tecnologia chinesa em futuras parcerias, o que deveria ser norma pétrea para todos os casos, suas conclusões,segundo o Globo, “contrariam toda a política externa adotada desde o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva”.
Isso fica claro nas críticas feitas ao exercício do Ministério das Relações Exteriorespor diplomatas. Esquecendo (ou o que pode ser pior, não esquecendo) que sob Lula o chanceler era Celso Amorim, com Samuel Pinheiro Guimarães de Secretário-Geral, afirma que diplomatas não deveriam dirigir a política externa.  Suas últimas palavras parecem saídas de um editorial do Globo ou da Veja: “Proponho que a nação tome de volta a política exterior”.
No momento em que se escrevem estas linhas, dois intelectuais brasileiros já haviam reagido. José Carlos de Assis e Emir Sader. Assis chamou-o de “apátrida”.  A esquerda brasileira deveria deixar as cordas, onde está desde a vitória de Dilma e, a exemplo dos bravos uruguaios, sair em campo para impedir que o processo de integração sofra um retrocesso e que o ideal da Pátria Grande, a prometida terra socialista com que nós latino-americanos sonhamos, se torne um sonho longínquo.

 H. Raphael de Carvalho é Prof. Dr. em Ciência Política e ligado ao Núcleo de Estudos Estratégicos Avançados, do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense.(NEEA/INEST/UFF)

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