Por Sebastiao Nunes // http://jornalggn.com.br/
Corria o ano de 1686. Bêbado como um gambá, o padre-poeta tropeçou na lança de um guarda e se esparramou diante do governador, D. Luís de Almeida Portugal Soares de Alarcão d'Eça e Melo Silva Mascarenhas.
– Levanta, porco! – gritou D. Luís. – Você não tem vergonha de enxovalhar a batina que veste?
– Perdão, excelência – protestou o Boca de Brasa, sentando-se com dificuldade e espanando a poeira da batina. – É que não estou me sentindo muito bem.
– Claro que não – ironizou D. Luís. – Gasta as noites enchendo a cara nos puteiros e depois não se sente bem. Claro que não se sente bem.
– Talvez eu tenha exagerado um pouco – disse o Boca do Inferno. – Às vezes não me controlo e passo dos limites.
– Às vezes? – irritou-se D Luís. – Quase toda semana recebo queixas contra você. Quando não está na zona, quando não está bêbado, quando não está correndo atrás de mulheres, está divulgando poemas pornográficos.
– Pornográficos não, excelência! – retrucou o Boca de Latrina. – Digamos satíricos. É isso. Poemas satíricos.
CORPO DE DELITO
– Ah, é? – ridicularizou D. Luís. – E o que é isto aqui? Tome. Leia você mesmo.
O Boca de Privada levantou-se trêmulo e tomou o papel das mãos do governador. Apesar da tremedeira, conseguiu ler o seguinte terceto:
De dois ff se compõe
Esta cidade a meu ver:
Um furtar, outro foder.
– E então? – provocou D. Luís. – É pornografia ou não é?
– Digamos que seja humor, excelência. É isso. Poema humorístico. Sátira para fazer rir os desocupados.
– Então vai levar 50 chicotadas para deixar de ser besta!
– Mas, excelência, tudo isso? – rebelou-se o Boca de Sarjeta. – Essa pena é excessiva. Não posso levar só umas 10?
– Está bem. Reduzirei para 45 e fim de papo. Mas ainda tem mais. Leia isto. – E estendeu-lhe outro papel, que o Boca de Sapo leu:
Discreta e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora,
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos, e boca, o Sol e o dia:
Oh, não aguardes que a madura idade
Te converta essa flor, essa beleza,
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.
De queixo apoiado na mão, D. Luís olhava o poeta, que lia. E comentou:
– É bonito esse. Por que você não escreve só poema lírico?
O Boca de Carniça sorriu e teve a ousadia de confirmar:
– Não é mesmo, excelência? Não é bonito?
– Bonito sim, mas você não andou plagiando Góngora, andou? Olha que tenho minhas leituras e conheço poesia.
– Eu, excelência, logo eu, que mal dou conta de mim? Plagiando o grande Luis de Góngora y Argote?
– Está bem, deixa para lá. Vamos ao castigo. Carrasco!
Entrou o carrasco. Enorme, fortíssimo, cabeludíssimo, com uma touca negra de algodão grosso, empunhando pavoroso chicote de couro cru trançado.
DATA VENIA
O Boca de Garrafão ajoelhou-se e, patético, ergueu as mãos:
– Excelência, tenha pena de mim. Olhe que estou velho, devo estar caducando. Se não estivesse caducando, como escreveria tais versos?
– Nada de pena. Quer mais provas? Então leia isto. – E estendeu-lhe outra folha, que o Boca de Alambique leu, tremendo:
A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
– Brincadeira pura, excelência – protestou o Boca de Excremento. – Os poderosos não deveriam ligar para tais brincadeiras.
– Quem disso que estou ligando? – respondeu D. Luís. – Por mim, não ligo nem um pouco. Só estou cumprindo meu dever.
– Mas, e o futuro, excelência? – arriscou o Boca de Veneno. – O que dirão de nós no futuro? Eu, chicoteado; vossa excelência, mandando chicotear um padre?
– Nada, não dirão nada – afirmou o governador. – Ninguém ficará sabendo. O carrasco é analfabeto e não dirá nada a ninguém.
– Claro que sim, excelência – argumentou o Boca de Esterco. – Logo que acabar de me chicotear, e assim que puser os pés na rua, contará tudo no primeiro botequim.
– Impossível, meu caro – concluiu D. Luís. – Antes de nomeá-lo carrasco da corte mandei que lhe cortassem a língua. Tenho certeza de que não dirá nada.
Ilustração: Falso Gregório de Matos tentando conquistar esquiva donzela (colagem sobre mapa antigo da Bahia e pintura de Almeida Júnior)
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