STF acerta ao impedir o bloqueio do aplicativo em todo o território nacional, mas precisamos avançar também no quesito privacidade
Por Marina Pita // http://www.cartacapital.com.br/
Momentos de lucidez estão escassos nesses tempos de abuso de poder e desmonte da democracia brasileira. Na semana passada, e sem ir muito além do óbvio, o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin demonstrou a intenção de promover um debate público sobre as decisões judiciais que determinam o bloqueio do WhatsApp no Brasil.
A intenção deve ser bem recebida porque Fachin é relator da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 403 (ADPF 403), que serviu de veículo para a liminar em vigor que impede a suspensão do serviço. Em seu relatório, ele defende:
“A internet é, sem dúvida, o mais popular e abrangente dos meios de comunicação, objeto de diversos estudos acadêmicos pela importância que tem como instrumento democrático de acesso à informação e difusão de dados de toda a natureza”.
Fachin rechaça os argumentos de que a internet é uma ameaça e lembra a aprovação do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2012) que estabelece os “princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil”.
O Marco Civil da Internet – ao contrário do que alguns dizem por ignorância ou má intenção – protege os usuários do bloqueio de aplicativos ao estabelecer o princípio da liberdade de expressão para a regulação da internet e de suas aplicações, bem como o princípio da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede.
Fachin vai ao ponto quando reforça que o bloqueio do aplicativo em todo o território nacional é, quando pouco, medida desproporcional à causa que motivou a suspensão do serviço. Assim, juramenta que o direito coletivo à liberdade de expressão – de toda a população do País – está acima de casos específicos.
Mas se defendemos o entendimento do STF sobre o bloqueio do WhatsApp, por que então um debate público a esse respeito? Há aí uma oportunidade para ampliar a compreensão sobre o que diz o Marco Civil da Internet e outros temas que andam causando mal entendidos.
A criptografia, por exemplo – tecnologia que permite proteger o conteúdo de transações na internet ao embaralhar às informações de modo que só podem ser reorganizadas a partir de uma chave digital disponível apenas aos interlocutores da mensagem – passou a receber artilharia pesada depois de adotada por diversos dos gigantes da internet, como oFacebook (dono do WhatsApp) – e, claro, depois das revelações do escândalo Snowden.
Governos e seus esquadrões vigilantistas ao redor do mundo defendem que é preciso abrir brechas para que os infratores da lei possam ser pegos. Ora, parece um argumento lógico e que logo conquista apoio dos cidadãos de bem. O que os cidadãos de bem não sabem é que quando a chave de criptografia está disponível para alguém que não participa da troca de conteúdos – como uma conversa do WhatsApp, por exemplo – ela pode estar na mão de qualquer pessoa e deixa de garantir a privacidade das mensagens. Ou seja, ao abrir um brecha para enquadrar criminosos, governos e setores vigilantistas arriscam a privacidade de todos.
Aqui valeria a máxima: o direito à privacidade de toda a população não pode ser colocada em risco por casos isolados.
Além disso, é preciso fazer uma analogia com o sigilo telefônico. Antes da internet, as autoridades só podiam ouvir e gravar as conversas telefônicas com um mandado judicial. Não era possível investigar as chamadas passadas. As gravações não-autorizadas não são aceitas pelos tribunais. Ou seja, nunca foi possível investigar o passado. Então isto não é uma excepcionalidade do WhatsApp ou outros aplicativos semelhantes.
Só que as autoridades reclamam que, mesmo com um mandado, não é possível coletar as conversas criptografadas nos aplicativos. Ora, não é preciso ser hacker para saber das diversas estratégias disponíveis para coletar informações digitadas em computadores esmartphones. Sem nos alongar neste ponto – já que não é nossa responsabilidade fazer o trabalho da polícia – é preciso encontrar soluções específicas para lidar com casos específicos.
Privacidade ameaçada: governos e empresas
O direito à privacidade dos cidadãos não deve ser protegido apenas dos governos, mas também dos interesses privados que cada vez mais avançam sem que o Estado brasileiro sequer pense a respeito.
Já que estamos falando do Facebook e do WhatsApp, vale lembrar que a recente mudança da política de privacidade da empresa de Mark Zuckerberg – que adquiriu o aplicativo de mensagens instantâneas por 22 bilhões de dólares em outubro de 2014 – merecia alguma movimentação dos operadores do direito dos consumidores e cidadãos.
A nova política de privacidade do WhatsApp prevê o compartilhamento de dados dos usuários com empresas do grupo Facebook, incluindo o número do telefone e permitiria que empresas contatassem os usuários diretamente por meio da aplicação. A nova regra, imposta de modo unilateral, entrou em vigor no último dia 25.
O órgão regulador de privacidade da Alemanha agiu – mandou o WhatsApp parar de coletar e armazenar os dados de seus cidadãos porque o compartilhamento de dados com o Facebook infringe a lei alemã de proteção de dados.
Especialistas de vários países apontam que os cidadãos não têm controle de como seus dados são usados e que o Facebook não obteve aprovação efetiva dos usuários.
No Brasil, o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) enviou ofício à Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) do Ministério da Justiça pedindo providências em relação à nova política de privacidade do WhatsApp.
Na carta, o instituto solicita que a Senacon suspenda, por medida cautelar, a transferência de dados e instaure um processo administrativo para investigar a lesão de direitos coletivos dos consumidores com base no Marco Civil da Internet. A associação Proteste também questionou o escritório regional do Facebook no Brasil para saber quais dados dos usuários serão compartilhados entre as empresas.
O debate sobre privacidade será longo. Há muito o que se falar sobre o assunto. Mas é preciso que o debate seja feito em benefício da maioria da população e não transforme a exceção em regra – seja para uso da polícia ou das empresas.
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