sábado, 19 de novembro de 2016

A Operação Lava Jato e o dilema do processo penal

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A Operação Lava Jato e o dilema do processo penal

Haroldo Caetano
Promotor de Justiça

No Brasil, o processo penal resume-se à prisão, seja no flagrante da prática criminosa ou por ordem judicial. O simbolismo performático da prisão ocupa o lugar do devido processo legal, no qual a sentença condenatória muitas vezes não passa de mero detalhe, eventualmente até dispensável. Antecedendo o processo, a prisão e o espetáculo que dela se faz formam a resposta suficiente, mesmo que algum tempo depois se reconheça a improcedência da acusação e a inocência do réu.

As coisas são assim há bastante tempo. Afinal de contas, não é à toa que o número de presos provisórios equivale quase à metade da população carcerária brasileira. A regra desde muito é a prisão provisória e, convém lembrar, temos a quarta maior população carcerária do planeta. O sistemático emprego da prisão antes da sentença condenatória não se trata, portanto, de uma invenção da Lava Jato. Não mesmo!
Sinto dizer, mas as ilegalidades, os abusos e as inconstitucionalidades são bem mais antigas do que a investigação dos crimes de corrupção na Petrobrás.
Visite uma casa de detenção qualquer e converse com os seus hóspedes usuais, tente ouvir suas histórias. Aproveite e observe as condições em que as pessoas encontram-se alojadas e veja por si mesmo o que acontece há décadas de insensibilidade para com os direitos constitucionais de quem teve o azar de ser escolhido na seleção do sistema punitivo. Busque nos arquivos de qualquer cartório criminal e verifique o tempo médio de prisão provisória até que venha alguma sentença no processo penal. Há exceções, louváveis por sinal, mas a regra é a utilização muitas vezes abusiva, desnecessária e demorada da prisão processual.

A prisão ilegal ou desnecessária (e, por isso, também ilegal), os obstáculos para atuação da defesa, a tortura que decorre da submissão às masmorras do cárcere, dentre outras questões que agora ganharam mais visibilidade com a Lava Jato, não são de hoje. Como denunciam as recorrentes manifestações da Pastoral Carcerária, entidade da sociedade civil que melhor conhece os presídios brasileiros, o quadro de violações não é um problema conjuntural, mas estrutural e sistêmico.

O que a Operação Lava Jato fez – e faz – foi levar esse sistema de ilicitudes a quem ainda dispunha da garantia do devido processo legal, aos quais historicamente não se negavam os direitos constitucionais, ou seja, exatamente os que habitam o andar de cima da nossa sociedade e que, com poder político ou boa condição econômica, têm – ou pelo menos tinham – respeitados os seus direitos básicos no processo penal.

É inegável que a seletividade do sistema punitivo persiste, embora com novas nuances, o que deixa evidente que se trata de uma característica aparentemente inafastável do direito penal. A seletividade da Lava Jato foi logo detectada pelo maior penalista da América Latina, Eugenio Raúl Zaffaroni que, com propriedade, alertava ainda no início de 2015 para o seu indisfarçável objetivo político ao compará-la com a Operação Mãos Limpas, ocorrida no início dos anos 1990 na Itália, ao dizer em entrevista para a revista Carta Maior que diferentemente da Operação Lava Jato, “a Mãos Limpas não foi uma tentativa de golpe de Estado”.

Também é fato que, uma vez consumado o impeachment da Presidenta Dilma Roussef, a Operação Lava Jato passou a ter nova perspectiva de atuação, com iniciativas voltadas a outros objetos, agora não mais relacionados diretamente com sua meta inicial não declarada (o golpe de Estado a que se referia Zaffaroni). De tal sorte, pode-se hoje perfeitamente identificar a divisão histórica da Operação em dois momentos distintos, que poderíamos chamar de Lava Jato I e Lava Jato II. A primeira fase encerrou-se com o impeachment. A segunda, para não soar como mero rescaldo da primeira, busca dar ares de neutralidade à Operação. Mesmo sendo ainda indisfarçável o seu caráter seletivo, embora com um pouco mais de sutileza, segue a Lava Jato sob o mantra do combate à corrupção.

Contudo, independentemente da atuação enviesada da Lava Jato – o que já foi objeto de um sem-número de críticas, fundadas ou não – o fato que pretendo primeiramente destacar é que algumas pessoas outrora imunes à justiça criminal agora passaram a habitar o cárcere. Eis a grande novidade trazida pela Operação.

Embora tenha sido o processo do Mensalão (AP 470) o marco inicial que parece ter aberto o caminho para a punição de agentes políticos de alta patente, foi a autodenominada república de Curitiba quem registrou a marca “Lava Jato” para fazer valer aquele sistema repleto de violações, bem conhecido da costumeira clientela do sistema punitivo, para o pessoal que habita o andar de cima da sociedade. Isto, convém frisar, desde ações e decisões tomadas ainda no juízo de primeira instância. Embora sem amparo na legislação, a Operação não deixou também de inovar ao tornar regra a condução coercitiva sem prévia intimação da pessoa a ser ouvida, a divulgação de interceptações telefônicas, inclusive as obtidas ilegalmente, o grampo em escritórios de advocacia, a prisão preventiva voltada à obtenção da chamada colaboração (delação) premiada.

Daí a grita para os desmandos da Polícia Federal, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Daí a reclamação diante dos abusos praticados pelos procuradores e pelo juiz da Operação Lava Jato. Ocorre que até bem pouco tempo atrás, quando as ilegalidades já eram regra na condução do processo penal no Brasil, com centenas de milhares de mulheres e homens processados sem as mínimas garantias do devido processo legal, poucos levantavam suas vozes para denunciar tais abusos. Os movimentos de direitos humanos ficavam a bradar ao vento as contínuas violações de direitos praticadas por décadas contra os réus pobres que desde sempre foram – e são – vítimas do autoritarismo processual penal.

Ao alcançar pessoas de alto poder político e econômico, a Lava Jato oportunizou a setores antes insensíveis aos problemas do cárcere no Brasil conhecer bem de perto essa realidade vexatória e cruel. Mesmo sem descer às sarjetas mais imundas que fazem dos presídios brasileiros verdadeiras sucursais do inferno, preservados que são os réus da Operação em lugares menos inóspitos do que os de costume, importantes políticos e alguns dos mais ricos empresários do país passaram a experimentar o sofrimento na prisão.

Ocorre que o processo penal do tipo Lava Jato é ilegal e sempre foi ilegal. Ao suprimir o devido processo e inverter a natural ordem dos atos processuais – denúncia, instrução, sentença, prisão – o que se tem é a arbitrariedade com a chancela judicial. Nada mais do que isto. E, repita-se, não se trata de algo novo, pois o processo penal Lava Jato, como visto, já existia há tempos. Só não tinha esse nome ainda.

Outro aspecto relevante é a natureza espetacular da Operação Lava Jato, cuja repercussão midiática integra o seu próprio conteúdo, onde juiz e Ministério Público não hesitam em apontar a importância da opinião pública para o sucesso da Operação. Também aí não há nada de novo, uma vez que o crime desde sempre foi uma das principais atrações em qualquer programa televisivo vespertino. Acontece que a superexposição da Lava Jato, principalmente na sua fase I, acabou por impor um bloqueio, uma espécie de campo de força, à atuação constitucional da justiça criminal no Brasil, de sorte que qualquer decisão superior que viesse restringir algum procedimento ilegal da Operação trazia imediatamente consigo o escárnio público ou mesmo ameaças e intimidações. É o que se viu, por exemplo, no episódio de 22 de março/2016, em que a casa de um ministro do Supremo Tribunal Federal chegou a ser cercada por manifestantes em Porto Alegre. Por decidir contrariamente ao que vinha sendo feito em Curitiba, o mesmo ministro ainda seria satirizado, dias depois, com um boneco inflável em protesto na Avenida Paulista. A ordem era explícita: a Operação Lava Jato não deveria ter limites.

Por incrível que possa parecer, a carta branca à Lava Jato veio formalmente. O reconhecimento do tratamento judicial excepcional e sua aceitação veio expressa em decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, segundo a qual a Operação Lava Jato não precisaria seguir as regras dos processos comuns. A Lava Jato tornou-se abertamente um juízo de exceção.

Embora as violações de direitos contra acusados em geral sejam banais nos quatro cantos do país e, de uma forma ou de outra, legitimadas em decisões de juízos das mais variadas instâncias, não havia ainda, na vigência da Constituição de 1988, o reconhecimento jurisprudencial expresso da possibilidade da atuação do juízo criminal fora da legalidade estrita, como despudoradamente aconteceu na decisão do TRF da 4ª Região.

O processo penal Lava Jato revela-se agora, entretanto, um imbróglio, quase uma aporia. Se o processo penal brasileiro desde sempre conviveu com violações de direitos e o desrespeito a garantias constitucionais, já não há mais condições para deixar de reconhecer tais problemas. Agora será preciso enfrentá-los.

Diante dessa equação de difícil resolução, eis que aparece o projeto das 10 medidas contra a corrupção (http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/). Elaborado pelo Ministério Público Federal e repleto de boas intenções, o projeto não se ocupa, todavia, de enfrentar as ilegalidades históricas que marcam o processo penal no Brasil. Pelo contrário, em busca de uma certa eficiência no combate à corrupção, joga por terra direitos e garantias constitucionais. Sem qualquer pudor, o projeto chega a propor, dentre outras medidas questionáveis sob o prisma constitucional, a aceitação de provas obtidas por meio ilícito, a restrição do instituto do habeas corpus, o aumento das hipóteses de prisão e a diminuição das nulidades. É o Código da Acusação, como bem observou Marcelo Semer aqui mesmo no Justificando.

Na prática, as 10 medidas institucionalizam o processo penal Lava Jato, e o faz em pacote combo, que se propõe ao combate à corrupção custe o que custar, mesmo que para tanto seja preciso romper com garantias constitucionais e com uma série de princípios fundamentais do direito penal.

De outro lado, tramita no Congresso Nacional o PL 8.045/2010, um projeto mais abrangente de reforma do Código de Processo Penal que vem sendo submetido a exaustivas discussões e que pode perfeitamente sistematizar a matéria sem prejuízo da pretendida eficiência punitiva, guardando sintonia com os princípios constitucionais que devem orientar o processo penal em um país democrático. Em suma, um projeto que não responde somente à emergência pretendida pelo Ministério Público Federal em seu pacote de medidas bem intencionadas contra a corrupção.

Ainda não tivemos no Brasil a experiência de um processo penal que funcione dentro dos limites éticos de uma democracia. A própria democracia anda cambaleante por aqui. Direitos e garantias processuais jamais passaram de promessas para a grande massa de mulheres e homens que são levados às barras da justiça criminal brasileira, não se podendo olvidar, ainda, dos milhares de adolescentes recolhidos em prisões juvenis que padecem dos mesmos problemas daquelas destinadas aos adultos. De sua parte, o processo penal Lava Jato flerta com o populismo penal e tem naturalmente a simpatia da população, que conferiu mais de dois milhões de assinaturas ao projeto das 10 medidas e que parece não se incomodar diante da institucionalização de procedimentos típicos de regimes autoritários.

O momento atual designa uma das mais importantes crises – se não a principal, certamente a de maior visibilidade – já vividas no processo penal brasileiro. E é justamente em situações de crise que são possíveis avanços e mudanças de paradigmas, embora estejam presentes também os riscos de possíveis retrocessos, travestidos de avanços, eventualmente apresentados como soluções.

De duas, uma: ou o Brasil assume definitivamente o processo penal Lava Jato, mediante o atalho das 10 medidas contra a corrupção, que nivela por baixo o sistema de garantias processuais em prol de uma pretendida eficiência punitiva a qualquer preço; ou, dialogando com a reforma mais ampla da legislação correlata, resgata o ideal democrático de um processo penal constitucional, que possa servir de instrumento para a institucionalização do alcance do sistema punitivo às elites políticas e econômicas, mas sem prejuízo das garantias que devem ser estendidas a todos, indistintamente, especialmente aos de sempre, aos suspeitos pretos e pobres.
Haroldo Caetano, é promotor de Justiça do Estado de Goiás, mestre em Direito (UFG) e Doutorando em Psicologia (UFF).

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