A prática da tortura é um câncer que se propaga de Norte a Sul. Apesar do que se pensa, ela não foi erradicada com a redemocratização.
Leneide Duarte-Plon, de Paris* // http://cartamaior.com.br/
Nem em pesadelo pensei ler um dia uma recomendação de emprego de tortura por parte de um juiz brasileiro, em pleno século XXI, contra jovens que estão lutando contra uma lei que ameaça a Educação. Já não sendo ideal, a educação no Brasil pode piorar consideravelmente.
Pois agora, a realidade é pior que o pior dos pesadelos. Um juiz recomendou a tortura. E por escrito. Nem a ditadura militar ousou tanto: a tortura era praticada - contra os opositores do regime, os revolucionários que combatiam a ditadura com ou sem armas e eram tratados de « « subversivos » ou de « terroristas » - mas sua prática era permanentemente negada.
Banida nos textos das democracias, inclusive no Brasil, a prática da tortura é, hoje, um câncer que se propaga de Norte a Sul. « Ninguém será submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. » Esse é artigo 5° da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Esse mesmo texto é o artigo 5°, inciso III, da Constituição Federal do Brasil.
Apesar do que se pensa, ela não foi erradicada com a redemocratização.
Cito um trecho do prefácio que o filósofo Vladimir Safatle fez para o meu livro « A tortura como arma de guerra, da Argélia ao Brasil », lançado no Rio, em junho deste ano :
« Se lembrarmos que, no Brasil, tortura-se mais hoje do que na época da ditadura militar (segundo estudos da socióloga norte-americana Kathryn Sikkink), ficará claro como tal tanatopolítica é base normal de nossos modos de governo mesmo para além de situações explícitas de ditadura. Ela se baseia em uma concepção de tortura que não é vista sob a ótica moral, mas como uma “arma de guerra” como outra qualquer no interior de uma batalha cujo inimigo interno é composto por setores da própria população ».
Depois que vim morar na França, em 2001, passei a acompanhar de perto o trabalho da ACAT – Action des Chrétiens pour l’Abolition de la Torture – e me engagei na causa de combate à tortura e à pena de morte.
A tortura é considerada um crime contra a humanidade e, como tal, imprescritível. Mesmo assim, na França, no fim da Guerra da Argélia, e no Brasil, em 1979, recorreu-se a um instrumento legal para anistiar militares que torturaram.
Os militares torturadores brasileiros eram fiéis seguidores da « doutrina francesa », como mostrei no livro citado. A « doutrina francesa », que está no DNA das ditaduras latino-americanas, teorizou todo o aparato no qual se funda o terrorismo de Estado posto em prática nas ditaduras sangrentas da Argentina, Brasil e Chile.
Hoje e sempre, é preciso que se denuncie a tortura onde existir, seja em Guantânamo, seja nas escolas ocupadas, seja nas delegacias e prisões brasileiras.
Por um Brasil mais justo
No livro « Um homem torturado », co-escrito com Clarisse Duarte de Meireles, contamos a história de frei Tito de Alencar, que precisa ser conhecida das novas gerações de brasileiros. A maioria dos jovens ignoram a história dos que morreram sob tortura, desapareceram, sofreram prisão e exílio porque lutavam por um Brasil mais justo.
Tito atuou com um grupo de frades dominicanos que davam apoio à Aliança Libertadora Nacional, grupo revolucionário criado por Carlos Marighella ao deixar o Partido Comunista Brasileiro, pelo qual tinha sido eleito deputado na década de 40. Alguns frades do Convento das Perdizes, em São Paulo, ajudavam a esconder pessoas perseguidas pelos órgãos de repressão. Frei Betto, no Rio Grande do Sul, fazia parte de um esquema para ajudar revolucionários a deixar o Brasil pela fronteira.
Como presidente do diretório acadêmico do Instituto de Filosofia e Teologia (IFT) Tito participou do 30° Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), que foi invadido pela polícia. Todos os mais de 700 estudantes que se encontravam no sítio, em Ibiúna, naquele dia 12 de outubro de 1968 foram presos, inclusive Tito.
Preso novamente em 1969, foi mais brutalmente torturado porque a polícia descobriu que intermediara a cessão do sítio para aquele congresso.
Na introdução que fez para o livro, o dominicano Xavier Plassat, escreveu :
« Sem a elucidação constante da verdade, particularmente em relação às sombras mais trágicas da nossa história, tornam-se incompreensíveis e insuperáveis as recorrentes e brutais manifestações de violência, de barbárie, que continuam pontuando nosso tempo, nos presídios, nas delegacias, nos morros, nas fazendas: a matança de jovens, de posseiros, de negros, de índios, de migrantes, de travestis, de prostitutas; a comercialização de gente e sua escravização; a confiscação da esperança; a negação do bem-viver. »
É inevitável ver na trajetória daquele que foi o amigo mais próximo no último ano de vida de Tito um claro legado do frade brasileiro. Desde 1989, é numa pequena cidade no meio da Amazônia, no estado do Tocantins, numa região de constantes conflitos de terra, que pode ser encontrado o francês Xavier Plassat, hoje coordenador da Campanha Nacional da Comissão Pastoral da Terra – CPT - pela Erradicação do Trabalho Escravo.
Marx e Cristo
Tito foi um revolucionário profundamente habitado pelo Evangelho de Jesus Cristo. E, como ele, vejo o Evangelho como uma mensagem de libertação e de Justiça.
Os frades dominicanos das Perdizes, assim como outros em toda a América Latina nos anos 60 e 70, tentavam conciliar Marx e Cristo, dois discursos radicais de transformação e justiça social. Basta ler os Evangelhos para constatar que Jesus não prometia prosperidade a quem entregasse todo seu dinheiro aos « representantes » de Deus.
A Teologia da Libertação nasceu como uma resposta aos anseios de Justiça, mostrando que Jesus Cristo se interessava pelo homem encarnado, por sua vida na terra e não apenas por almas.
Apesar das dificuldades, Tito prosseguiu no exílio que começou em janeiro de 1971 as denúncias contra a ditadura e as torturas. Nesse dever de testemunhar colocava toda sua energia. Em agosto de 1971, seu texto “A situação da Igreja no Brasil” foi publicado no Boletim da Frente Brasileira de Informação. O texto é uma profissão de fé no Evangelho e na Revolução.
Nele, Tito revela a mesma visão do Evangelho que impulsionou o padre colombiano guerrilheiro Camilo Torres:
“A igreja do Brasil mostra sinais de uma profunda transformação que nasce de uma consciência evangélica que se desenvolveu nos homens em coerência com sua missão terrena. Nós não existimos para salvar as almas, mas para salvar as criaturas, os seres humanos vivos, concretos, no tempo e no espaço bem definidos. Temos uma compreensão histórica profunda de Jesus. (...) Para nós quem é o povo de Deus, concretamente? São os trabalhadores, os operários, os explorados, os oprimidos, enfim, toda a massa imensa que tem uma condição de vida desumana. Entre tais, Jesus toma o nome de Zeferino ou Antônio, um qualquer”.
Na prisão, ele havia visto Zeferinos e Antônios sendo torturados porque queriam mudar a sociedade. Seu texto continua falando da perseguição dos religiosos pelo engajamento na busca “de um mundo mais justo e mais humano”:
“O cristianismo não pode se calar diante das injustiças pois calar é trair. Seu dever é tornar-se sal da terra, luz do mundo”.
A esquerda comunista, que acusava a religião de « ópio do povo » segundo a fórmula de Marx, viu que tinha na Igreja progressista um aliado para as profundas transformações sociais de que o Brasil necessitava. Carlos Marighella foi quem melhor compreendeu isso.
Ao acompanhar a atuação da Igreja Católica no Brasil de hoje, percebo que parte dela continua fiel ao Evangelho e à tradição profética que consiste em denunciar os desvios do opressor, como faziam os profetas do Antigo Testamento.
Por isso, sei que ela não adotará um silêncio omisso diante da tentativa de legalizar a prática de tortura.
* Leneide Duarte-Plon é autora de « A tortura como arma de guerra-Da Argélia ao Brasil : Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado » (Editora Civilização Brasileira, 2016)
Créditos da foto: Rovena Rosa
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