terça-feira, 13 de dezembro de 2016

O financismo no interior do estado

O objetivo final é a destruição da previdência social pública e sua transferência para os agentes privados. Mais uma investida do capital sobre o trabalho.

               Paulo Kliass * // www.cartamaior.com.br

A capacidade dos representantes do sistema financeiro em tornar a sua agenda a pauta a ser defendida pelos dirigentes do Estado brasileiro sempre foi muito conhecida. Impressiona também a sua habilidade em convencer os demais segmentos das classes dominantes para que aceitem as diretrizes encaminhadas pelo financismo como sendo também a de seus próprios interesses. É o caso, por exemplo, da burguesia industrial, que se deixou levar a reboque de uma política econômica que tinha como característica essencial a tendência da desindustrialização. Estranho esse caminho seguro rumo à autodestruição.

O mesmo fenômeno deu-se com a aceitação passiva das proposições intrínsecas ao chamado austericídio. Uma inacreditável postura de concordância meramente ideológica com uma pauta que se propõe a destruir o país e os interesses econômicos de quem quer pense no Brasil a médio e longo prazos. Esse é o sentido da combinação perversa de liquidação do Estado por meio do ajuste radical da austeridade nas contas públicas com a manutenção da política monetária de juros nas alturas. Trata-se de uma evidente revanche nas políticas adotadas anteriormente ao golpeachment, mas que se sustenta apenas nas ideias mais radicais de um certo doutrinarismo mercadista que sobrevive no interior do sistema financeiro.

O fato concreto é que a hegemonia política e ideológica do pensamento financista sempre esteve presente na formação dos quadros de nossas elites. Desde os atrasos característicos de nosso agronegócio tupiniquim até os setores industriais que se acomodam à sujeição da posição subalterna de nosso País na divisão internacional do trabalho. Assim, vangloriam as virtudes de um modelo financeiro de vanguarda com práticas de trabalho escravo para reduzir o chamado “custo Brasil” e destruição do meio ambiente em nome da elevação da produtividade da safra de “commodities”.

A sujeição passiva à dominação do financismo.





O projeto de Nação foi completamente abandonado em favor de uma auto imolação desejada no altar da globalização descontrolada, onde são cada vez mais evidentes os efeitos perversos dessa genuflexão aos desejos dos grandes oligopólios internacionais e dos Estados mundialmente dominantes. As nossas classes dominantes se consideram iluminadas pelas ideias e práticas que levam em consideração apenas os seus próprios interesses imediatos. Praticam todas cheias de muito orgulho uma espécie de tiro ao alvo aos respectivos pés, sempre na ilusão de que estão surfando nas ondas da pós-modernidade da vanguarda contemporânea. Acham o máximo passar as férias em Miami e se consideram deveras espertas ao encher suas malas com produtos chineses comprados bem baratinhos em qualquer praça do exterior.

Vale também lembrar que a receita tão martelada pelos órgãos de comunicação para o controle da inflação foi incorporada pelos dirigentes políticos dos mais variados matizes como a verdadeira panaceia para os problemas econômicos do Brasil. E dá-lhe reafirmação estratégica da importância do sistema financeiro, dogma que não poderia ser questionado em nenhum momento. Desde Fernando Henrique até Dilma, passando por dois mandatos de Lula, a geração do superávit primário foi sempre considerada como a solução absoluta e inescapável para a estabilização macroeconômica, não importando os vários trilhões de reais que foram sendo sistemática e generosamente transferidos do orçamento público para os cofres dos bancos.

Em nome de uma suposta neutralidade da “técnica” sobre a “política”, os meios de comunicação lograram êxito na campanha de desinformação a respeito de qual seria o perfil mais adequado para ocupar os cargos estratégicos do Estado, com o intuito de exercer o comando da economia. E assim os interesses das instituições financeiras se viram permanentemente protegidos pelos indicados para tais postos. Em 2003, a coisa fica um pouco mais escandalosa com a nomeação de um presidente internacional do Bank of Boston para ocupar a presidência do Banco Central. O exercício do poder pelo financismo não mais é delegado a terceiros de confiança, mas fica explícito. Lula nomeia Henrique Meirelles, que abre mão de uma promissora carreira como deputado federal, eleito para primeiro mandato pelo PSDB de Goiás.

O ex futuro quadro tucano fica por exatos 8 anos à frente da instituição que deveria cuidar da regulação e fiscalização do sistema financeiro. A imagem da “raposa tomando conta do galinheiro” não poderia ser mais apropriada para o caso. Esse talvez tenha sido o momento em que, pela primeira vez, o financismo passou a operar em nome de seus interesses a partir de dentro do próprio Estado. Não precisava nem mesmo fazer “lobby”, pois a partir de então contava com o poder e a caneta para implementar as suas próprias políticas públicas. Tudo de forma direta, sem a incômoda necessidade de intermediários.

Meirelles e Goldfajn: sem mais intermediários.

Na sequência vimos a nomeação de um diretor do Banco Bradesco para o comando do Ministério da Fazenda. Joaquim Levy foi nomeado por Dilma, logo depois de Trabucco ter recusado o convite. Ao recusar o convite, o presidente do maior banco privado indicou um subalterno seu para a função. Dilma aceitou de forma entusiástica, com a triste ilusão de que o gesto asseguraria seu trânsito livre no interior da elite do capital. Erro fundamental de quem se achava recoberta de malandragem e esperteza. Ao renegar o desejo manifesto nas urnas de outubro de 2014, o caminho da ortodoxia burra para o impeachment ilegal foi um passeio.

Temer voltou ao financismo da matriz. Em mais uma dessas ironias da história, aceitou a insistente sugestão de Lula e nomeou Meirelles para a Fazenda. Com ele veio o diretor mais importante do Banco Itaú para o cargo de xerife do BC: Ilan Goldfajn. Formaram a dupla dinâmica mais autenticamente identificada com o sistema financeiro em seu próprio DNA. Permaneceram inabaláveis os princípios da hegemonia dos bancos no comando da economia. Tanto que esse ramo de atividade é o único que segue apresentando ganhos bilionários em seus balanços, ao passo que o resto todo da economia oferece perdas, prejuízos ou falência. Isso para não falar dos trabalhadores, ceifados de seus empregos e com renda diminuída drasticamente em razão do austericídio programado e desejado como meta de governo.

O caso mais recente da prática do financismo no interior do Estado deu-se durante a elaboração do projeto da reforma da previdência do governo Temer. No bojo das absurdas mudanças na estrutura da administração pública federal, uma das aberrações foi a transferência da Secretaria da Previdência para o Ministério da Fazenda. Uma loucura aparentemente irracional, mas que respondia plenamente aos interesses do sistema financeiro em controlar o desmonte da previdência social. Eles nunca esconderam sua intenção de se apropriar dessa massa volumosa de recursos envolvida no Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e que tem sido gerida pelo INSS desde a sua criação há muitas décadas atrás.

Pois o titular da pasta colocada sob a interferência hierárquica de Meirelles passou alguns meses para elaborar esse projeto que há poucos dias veio a público. Uma proposta que conseguiu o mérito de desagradar a praticamente todos os setores da sociedade, com exceção obviamente do sistema financeiro. A verificação dos compromissos oficiais divulgados na página da Secretaria da Previdência evidencia quais os setores da economia e da sociedade que foram ouvidos preferencialmente com suas contribuições para a tão aguardada reforma constitucional.

Reforma da previdência: sob encomenda para o financismo.

Em mais um capítulo da aparentemente interminável novela de incorporação do financismo para dentro do Estado, ali estão registradas as reuniões com a essência das instituições financeiras privadas nacionais e estrangeiras. De julho a dezembro foram realizados encontros com bancos de varejo, bancos de negócio, bancos de investimento, empresas de rating, entidades patronais, Fundo Monetário Internacional, empresas de previdência privada, entre tantas outras entidades que não escondem sua parcialidade no tratamento de assunto tão sensível quanto polêmico. Ali podem ser vistos diariamente os horários em que foram recebidos no gabinete representantes de Bradesco, Santander, Fórum das Empresas Transnacionais, CNI. FIESP, JP Morgan, IBMEC, Itaú, American Chamber of Commerce, entre tantos outros.

Finalmente, na véspera da divulgação da proposta da maldade já fechada internamente no governo, foram recebidos representantes das Centrais Sindicais em 5 de dezembro. Ao que tudo indica, apenas em um gesto protocolar e nada diplomático de comunicar a péssima notícia do pacote das maldades já concluído, sem oferecer nenhum espaço para diálogo ou negociação.

A julgar pelas características da proposição em sua versão final, os interesses do financismo foram, mais uma vez, exitosos em ver seus interesses apresentados a partir do interior do próprio Estado. A reforma da previdência protocolada oferece de bandeja o desmonte e o descrédito da previdência pública. A proposição comporta a impressionante simultaneidade de retirada dos direitos de quem já está participando do sistema, assim como o lançamento de dúvidas generalizadas a respeito das vantagens para as novas gerações em aderir ou não ao regime.

Longe de resolver os falaciosos problemas do falso déficit estrutural, a proposta aponta apenas para a inviabilização do modelo do INSS no futuro. Não é por mera coincidência que as editorias de economia dos órgãos de comunicação apressaram-se a chamar os especialistas em previdência privada para oferecer suas opiniões. E um dos “consensos” criados para esse pessoal do mercado financeiro é que a alternativa mais recomendada para quem quiser ver sua aposentadoria ao longo das próximas décadas é buscar os fundos privados. Bingo!

Esse é o grande serviço que o Estado brasileiro está prestando, mais uma vez, ao financismo a partir de seu próprio interior. O objetivo é a destruição da previdência social pública e sua transferência para os agentes privados. Mais uma investida do capital sobre o trabalho. Mais um passo do sistema financeiro em sua trajetória de dominação do conjunto do tecido social.

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Créditos da foto: Beto Barata/PR

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