sábado, 7 de janeiro de 2017

DOSSIÊ – ELEIÇÕES ESTADOS UNIDOS // A DESORIENTAÇÃO DA INTELLIGENTSIA

Deixado de lado pela mídia conservadora, mas apoiado pela da “direita alternativa” , Donald Trump deve sua vitória aos estados do Rust Belt (Cinturão da Ferrugem), que abandonaram Hillary Clinton, considerada distante pelos operários rancos e desprezada pelos não diplomados

por: Serge Halimi



Existe pelo menos um país onde as eleições têm efeitos rápidos. Desde a vitória de Donald Trump, o peso mexicano desmorona, o custo dos empréstimos imobiliários se eleva na França, a Comissão Europeia aperta o cerco orçamentário, os pesquisadores eleitorais se mostram mais discretos, o pouco crédito concedido aos jornalistas agoniza, o Japão se sente encorajado a se armar novamente, Israel espera a mudança da embaixada norte-americana de Tel-Aviv para Jerusalém e o Acordo de Parceria Transpacífica está morto.
Esse turbilhão de acontecimentos e de conjecturas desperta um mar de inquietude: se um homem quase universalmente descrito como incompetente e vulgar pôde se tornar presidente dos Estados Unidos é porque, a partir de agora, tudo é possível. Um contágio do pleito norte-americano parece plausível, já que seu resultado imprevisto foi notado no mundo inteiro, e não somente pelos especialistas em política externa.
Há dez anos, não se contam mais as surpresas eleitorais desse tipo, quase sempre seguidas por três dias de arrependimento dos líderes vistos como culpados, depois pela retomada plácida das políticas reprovadas. A persistência de um mal-entendido – ou a repetição de tal simulacro – é mais facilmente compreendida quando se pensa que a maior parte dos eleitores que protestam reside com frequência bem longe dos grandes centros de poder econômico, financeiro, mas também artístico, midiático, universitário. Nova York e São Francisco deram ampla vitória a Hillary Clinton; Londres se pronunciou maciçamente contra o Brexit em junho último; há dois anos, Paris restaurava sua municipalidade de esquerda na sequência de uma votação nacional que foi um triunfo para a direita. Isso equivale a dizer que, logo depois de passada a eleição, é permitido às pessoas felizes continuarem a governar numa convivência emoliente com os seus, sempre bastante atentos às recomendações da imprensa e da Comissão Europeia, sempre prontos a imputar aos revoltados das urnas carências psicológicas ou culturais que desqualifiquem sua ira: eles não passariam no fundo de retardados manipulados por demagogos.
Esse tipo de percepção é antigo, em particular nos cenáculos cultos – a tal ponto que a análise da “personalidade autoritária” do eleitor popular de Trump feita há meses parece o retrato psicológico que os guardiões da ordem intelectual faziam dos “subversivos” tanto de direita como de esquerda durante a Guerra Fria. Analisando a prevalência destes últimos no mundo operário mais que nas classes médias, o cientista político norte-americano Seymour Martin Lipset concluía em 1960: “Em resumo, uma pessoa oriunda dos meios populares pode ter sido exposta a castigos, a uma ausência de amor e a uma atmosfera geral de tensão e de agressividade desde a infância que tendem a produzir sentimentos profundos de hostilidade, os quais se expressam na forma de preconceitos étnicos, autoritarismo político e fé religiosa milenarista”.1
Em abril de 2008, oito anos antes de Hillary Clinton colocar a maior parte dos 62 milhões de eleitores de Trump numa “cesta das pessoas deploráveis”, Barack Obama tinha atribuído o paradoxo do voto republicano em meios populares ao fato de as pessoas votarem contra o interesse delas, quando, “para exprimir sua frustração, elas se apegam a seus fuzis ou à sua religião, ou a uma forma de antipatia em direção àqueles que não são como elas, ou a um sentimento hostil em relação aos imigrados ou ao comércio internacional”. Frustração contra razão: as pessoas cultas, quase sempre convencidas da racionalidade de suas preferências, são confundidas pelos filisteus que as desafiam.
Nada reflete melhor o que o sociólogo Pierre Bourdieu chamava de “racismo da inteligência”2 – cada vez mais marcante entre os neoliberais de esquerda, mas também entre muitos intelectuais e universitários radicais – que um comentário sobre a eleição norte-americana publicado no site da prestigiada revista Foreign Policy. Supondo-se que o título – “Trump ganhou porque os eleitores são ignorantes, literalmente” – não desvele instantaneamente a proposta, a introdução de duas linhas acaba com as dúvidas: “A democracia tem por vocação colocar em prática a vontade popular. Mas o que dizer se o povo não sabe o que faz?”.3
Como seria de esperar, uma bateria de dados e reflexões poderosas apoia a argumentação. O autor, Jason Brennan, professor de Filosofia, ataca com força: “E então, o que aconteceu? Donald Trump sempre se beneficiou do apoio maciço dos brancos pouco instruídos e mal informados. Uma pesquisa da Bloomberg Politics indicava que em agosto Hillary Clinton dispunha de uma vantagem maciça de 25% entre os eleitores de nível universitário. Em contraste, na eleição de 2012, estes favoreceram levemente Barack Obama em relação a Mitt Romney. Na noite passada, vivemos algo histórico: a dança dos burros. Nunca antes as pessoas cultas haviam rejeitado tão uniformemente um candidato. Nunca antes as pessoas menos instruídas haviam apoiado tão uniformemente outro”.
Brennan se mostra mais galvanizado que aturdido por uma constatação que o conforta em seu credo antidemocrático. Apoiado em “mais de 65 anos” de estudos conduzidos por pesquisadores de ciência política, ele já adquiriu a certeza de que a “aterradora” ausência de conhecimentos da maior parte dos eleitores desqualifica sua escolha: “Eles sabem em geral quem é o presidente, mas não muito mais. Ignoram que o partido controla o Congresso, o que o Congresso fez recentemente, se a economia se comporta melhor ou pior”.
No entanto, alguns se dedicam mais que outros. Republicanos ou democratas, eles são também os mais diplomados. E, por acaso, as pessoas cultas se mostram mais favoráveis, como Brennan, ao livre-comércio, à imigração, a um aumento dos impostos para reduzir os déficits, aos direitos dos homossexuais, à reforma – progressista – do sistema penal e àquela – conservadora – do Estado de bem-estar social. Isso equivale a dizer que, se a informação, a educação e a inteligência tivessem vencido no dia 8 de novembro, um indivíduo tão grosseiro e pouco preocupado em se instruir como Trump, “cujo programa, hostil ao comércio internacional e à imigração, se opõe ao consenso dos economistas de esquerda, de direita e do centro”, não se prepararia para deixar seu tríplex em Nova York rumo à sala oval da Casa Branca. Em um de seus comícios, o bilionário teria, aliás, exclamado: “Eu gosto de pessoas pouco cultas”.

Discurso identitário e burguês da democrata
De que adianta levantar uma objeção, assinalando, por exemplo, que Obama, professor de Direito da Universidade de Chicago, foi eleito e reeleito graças ao voto de milhões de indivíduos pouco diplomados ou não diplomados, que muitas mentes brilhantes recém-saídas de Harvard, Stanford e Yale pensaram sucessivamente a Guerra do Vietnã, prepararam a invasão do Iraque, criaram as condições da crise financeira do século?4 No fundo, uma análise do pleito norte-americano que conduza a desconfiar da falta de julgamento do povo tem por principal interesse refletir o humor da época e por principal vantagem confortar o sentimento de superioridade da pessoa forçosamente culta que vai lê-la. Mas ela comporta um risco político: em tempos de crise, o “racismo da inteligência”, que pretende privilegiar o reino da meritocracia, dos especialistas, com frequência abre o caminho para homens de pulso forte mais preocupados em doutrinar do que em educar.
A maior parte dos comentaristas preferiu apontar os holofotes para a dimensão racista e sexista da votação. No fundo, pouco importa que, apesar do caráter histórico da candidatura de Hillary Clinton, a diferença entre o voto dos homens e das mulheres tenha mudado pouco e que aquela, abissal, entre eleitores brancos e negros tenha ligeiramente regredido (ler artigo na pág. 9). O cineasta Michael Moore, que tinha previsto a vitória de Trump, não deixou de destacar a questão na MSNBC em 11 de novembro: “Vocês têm de aceitar que milhões de pessoas que tinham votado em Barack Obama desta vez mudaram de opinião. Elas não são racistas”.
Negro, progressista, muçulmano, deputado pelo estado de Minnesota, Keith Ellison logo aprofundou essa análise: “Não conseguimos um bom resultado entre os latinos e afro-americanos. Em consequência, essa visão que quer imputar tudo à classe trabalhadora branca é errônea”.5 Ellison foi um dos três únicos parlamentares que apoiaram Bernie Sanders nas primárias e é, com o apoio deste, candidato à direção do Partido Democrata. Dirigindo-se a estudantes democratas, Sanders convocou os apoiadores de Hillary Clinton a irem “além das políticas identitárias”. E acrescentou: “Não é o bastante dizer a alguém: ‘Sou mulher, vote em mim’. Não, não é suficiente. Precisamos é de uma mulher que tenha a coragem de se opor a Wall Street, às companhias de seguro, à indústria de energias fósseis”. Sendo a universidade norte-americana um dos lugares onde a preocupação com a diversidade é com frequência mais importante que aquela relativa à igualdade, Sanders não necessariamente pregou para convencidos nesse dia.
No entanto, nada foi feito a esse respeito: para muitos democratas, todos pertencem a um grupo único, o qual nunca é econômico. Em consequência, se negros votaram contra Hillary, é porque eram misóginos; se brancos votaram em Trump, é porque eram racistas. A ideia de que os primeiros podem ser também empregados de siderúrgicas sensíveis ao discurso protecionista do candidato republicano, e os segundos, contribuintes abastados atentos a suas promessas de redução de impostos quase não parece ser capaz de se imiscuir em seu universo mental.
Este ano, o nível de instrução e de renda, no entanto, foi mais forte para determinar o resultado do que o gênero ou a cor da pele, já que é a variável que mais evoluiu de uma eleição a outra. No grupo dos brancos sem diploma, a vantagem dos republicanos foi de 25% há quatro anos e acaba de chegar a 39%.6 Até recentemente, um democrata não poderia ser eleito sem eles. Pelo fato de sua proporção na população norte-americana declinar,7 de seu enquadramento sindical se desfazer e de eles votarem cada vez “pior”, será que certos democratas, cuja insistência no tema da diversidade resume toda sua estratégia, vão a partir de agora se acomodar com a ideia de terem de ser eleitos contra eles próprios?
Esse desafio político não se apresenta apenas para os Estados Unidos. Evocando seus alunos das duas margens do Atlântico, o historiador italiano Enzo Traverso testemunha: “Ninguém jamais diria que votou em Trump. Todos têm mais ou menos o mesmo discurso: ‘Somos cultos, respeitáveis, inteligentes – e ricos; os outros, do outro lado, são simplórios, feios, sujos e malvados’, para citar o título de um célebre filme italiano. Esse era em outros tempos o discurso dos nacionalistas contra as classes populares”.8
No entanto, para comandar de maneira útil os “simplórios”, seria melhor que seus censores dispusessem de algum crédito junto a eles. Quanto mais se fecham em discursos abstratos e opacos, mais eles se afundam num verbalismo radical-chique e menos se fazem ouvir pela América tranquila das pequenas cidades ou aquela dos condados devastados, onde a taxa de suicídio aumenta e as pessoas se preocupam antes de tudo com suas condições de existência.
Resultado: a direita conseguiu transformar o anti-intelectualismo em arma política eficaz, em identidade cultural reivindicada.9 Em 2002, num texto largamente difundido, os republicanos, que “enxergavam vermelho” (a cor associada a seus mapas eleitorais), retornavam, para sua vantagem, ao estigma do “simplório”: “A maior parte dos habitantes da América vermelha não sabe desconstruir a literatura pós-moderna, dar as instruções necessárias a uma governanta, escolher um Cabernet com sabor de alcaçuz. Mas sabemos criar nossas crianças, colocar cabos em nossas casas, falar de Deus com facilidade e simplicidade, consertar um motor, utilizar um fuzil ou uma serra elétrica, cultivar aspargos, viver tranquilos sem previdência social nem psicanálise”.10
A maior parte dos habitantes da América não lê mais o que publica a imprensa, que Trump considerou “distorcida”, “corrompida”, “desonesta” e que fez vaiar em seus comícios. Como havia mentido descaradamente durante toda a sua campanha, o candidato republicano merecia ser desmentido pelos jornalistas. Mas, além de a verdade não constituir a produção mais universal da imprensa norte-americana nem a mais lucrativa, o engajamento dos meios de comunicação em favor de Hillary Clinton e sua incompreensão dos eleitores de Trump resultam também nesse caso de fechamento social e cultural. O editorialista do New York Times Nicholas Kristof se explicou a respeito disso em 17 de novembro na Fox News: “O problema do jornalismo é que ele favorece todo tipo de diversidades à custa da diversidade econômica. Não contamos com muitas pessoas oriundas de comunidades operárias e rurais”. Tendo em vista que esse viés sociológico vem sendo documentado e comentado nos Estados Unidos há um quarto de século, podemos apostar que quanto a esse ponto a mudança não vai acontecer da noite para o dia.
Daqui em diante, porém, os candidatos “fora do sistema” não vão hesitar em se prevalecer do ódio que inspiram à mídia. Na Itália, Giuseppe (“Beppe”) Grillo tirou da eleição norte-americana uma lição reconfortante para ele e seu partido: “Eles querem dizer que somos sexistas, homofóbicos, demagogos e populistas. Eles não percebem que milhões de pessoas não leem mais seus jornais e não assistem mais à sua televisão”.11
Alguns estão finalmente percebendo. Em 10 de novembro, na France Inter, Frédéric Beigbeder, ex-publicitário que se tornou escritor e jornalista, admitia com apaziguadora lucidez sua perda de influência e a de seus congêneres: “Na semana passada, eu explicava, com toda a segurança dos ignorantes, que Donald Trump ia perder a eleição presidencial norte-americana. […] Nenhum intelectual conseguiu escrever nada para impedir sua vitória. […] O governo do povo, pelo povo e para o povo é o único sistema no qual eu tenho vontade de viver, mas, no fundo, o que eu conheço do povo? Eu moro em Paris e estou aqui em Genebra; convivo com escritores, jornalistas, cineastas. Vivo completamente desconectado do sofrimento do povo. Não é uma autocrítica, é uma simples constatação sociológica. Eu viajo pelo país, mas as pessoas que encontro se interessam pela cultura – uma minoria de intelectuais não representativa da revolta profunda do país”.
A Califórnia votou maciçamente em Hillary Clinton, que obteve pontuações espetaculares entre as populações diplomadas dos condados mais prósperos, quase sempre inteiramente brancos. Revoltados com o resultado nacional, certos moradores reclamam uma secessão de seu estado, um “Calexit”. Gavin Newsom, vice-governador da Califórnia e ex-prefeito de São Francisco, cidade onde Trump só obteve 9,78% dos votos, não compartilha esse ponto de vista, mas pretende combater as políticas do novo presidente aproximando-se dos “líderes esclarecidos” do mundo ocidental. Só falta encontrá-los.



1    Seymour Martin Lipset, Political Man: The Social Bases of Politics [Homem político: as bases sociais da política], Doubleday, Nova York, 1960.

2    Pierre Bourdieu, Questions de sociologie [Questões de sociologia], Éditions de Minuit, Paris, 1981.

3    Jason Brennan, “Trump won because voters are ignorant, literally” [Trump ganhou porque os eleitores eram ignorantes, literalmente], Foreign Policy, Washington, 10 nov. 2016.

4    Cf. Lambert Strether, “Three myths about Clinton’s defeat in election 2016 debunked” [Desmascarados três mitos sobre a derrota de Hillary Clinton em 2016], Naked Capitalism, 14 nov. 2016. Disponível em: www.nakedcapitalism.com

5    “Vice News”, HBO, 16 nov. 2016.

6    Thomas Edsall, “The not-so-silent white majority” [A não tão silenciosa maioria branca], The New York Times, 18 nov. 2016. Em contrapartida, a diferença favorável aos republicanos foi menor entre os brancos diplomados, passando de 14% para 4%.

7    Ela passou de 83% em 1960 para 34% em 2016.

8    Politis, Paris, 17 nov. 2016.

9    Ler “Stratagème de la droite américaine: mobiliser le peuple contre les intellectuels” [Estratagema da direita norte-americana: mobilizar o povo contra os intelectuais], Le Monde Diplomatique, maio 2006.

10    Blake Hurst, “Seeing red” [Enxergando vermelho], The American Enterprise, Washington, mar. 2002.

11    Citado por The International New York Times, 14 nov. 2016.

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