quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Sobre o abismo

(Foto: Reprodução/Página 13)
Por Cynara Menezes
http://www.carosamigos.com.br/

Tem um trecho de um poema do guerrilheiro Alex Polari, escrito quando estava preso e sendo barbaramente torturado pela ditadura, que povoou minha adolescência e sempre me vem à cabeça nos momentos em que penso em cuidar da vida e desistir de lutar por um País melhor. Como agora.

“Depois a situação foi melhorando
e foi possível até sofrer
ter angústia, ler, 
amar, ter ciúmes
e todas essas outras bobagens amenas 
que aí fora reputamos
como experiências cruciais”


O poema se chama “Os Primeiros Tempos da Tortura” e está no livro Inventário de Cicatrizes, publicado em 1978. Diante das dores do pau de arara, como não pensar que as agruras, os percalços cotidianos, são meras trivialidades, coisas sem importância? Mas como não desejar, neste momento, trocar a angústia infinita de ver nossa pátria-mãe ser subtraída (para citar outro poeta) por uma dessas deliciosas bobagens amenas?

Tudo o que sinto neste instante (e sei que, como eu, muitos brasileiros mais) é vontade de deixar o barco seguir seu curso. “Deixa a vida me levar, vida leva eu...” Que bom seria. Amar, curtir meus filhos e minha família, ler um bom livro, ir ao cinema. Bobagens amenas. O problema é que o temporal continua a cair lá fora, sem cessar, e o desejo de normalidade não é nada além de uma miragem.
Pode ser que o desastre que se anuncia sirva de lição para os desavisados que estão caindo no conto do vigário da direita de que teremos um País melhor daqui para a frente. Será? Da outra vez em que uma ruptura destas ocorreu, estivemos presos num falso milagre que durou vinte anos, enquanto Alex Polari e outros tantos sucumbiam nos calabouços do regime. Naquela época, teve gente que optou por “viver sua vida”, também. Ignorando o monstro.
"Durante a ditadura militar só havia três tipos de pessoas: os que lutaram contra ela, os que se beneficiaram dela e os que simplesmente viveram como se nada estivesse acontecendo. Hoje compreendo os que fugiram."
Durante a ditadura militar só havia três tipos de pessoas: os que lutaram contra ela, os que se beneficiaram dela e os que simplesmente viveram como se nada estivesse acontecendo. Hoje compreendo os que fugiram. Não é fácil imaginar que, nos próximos anos, estaremos assistindo ao desmonte do Brasil enquanto nação soberana, o País entregue aos vendilhões do templo e aos sabujos do capital estrangeiro. Ah, como seria confortável apenas deixar rolar...
Já sinto saudades dos tempos nem tão longínquos em que a gente não precisava ocupar escolas porque a educação pública não corria o risco de acabar. Já sinto saudades de quando protestávamos contra o aumento de 20 centavos no transporte coletivo. Agora é cada dia uma luta, cada dia maior a luta, e maior a repressão a ela. O cansaço é inevitável e eu sinto na carne a fadiga do presente e do futuro. Malditos golpistas.
Minha natureza otimista se dobra à realidade dos fatos: não consigo enxergar no horizonte dias melhores. O governo ilegítimo tem a faca e o queijo na mão. Conta com maioria absoluta no Congresso para suas tramas malévolas, ameaçando o destino dos pobres, das mulheres, dos LGBTs, dos negros, dos sem-terra, dos sem-teto, achacando as riquezas nacionais. Nada de bom pode sair daí, mas ninguém parece disposto a escutar. Todos estão surdos.
Fala-se nas teorias mais conspiratórias possíveis e, diante do que estamos vivendo, não se pode duvidar de nada. Que pretendem dar um golpe dentro do golpe. Que planejam aprovar o parlamentarismo e permanecer no poder por mais vinte anos. Que não vai haver eleição em 2018. Jamais, nem em meus piores pesadelos, imaginei que seria possível um novo golpe e que o retrocesso que vivemos poderia se concretizar. Portanto, tudo é possível.
O surreal virou realidade: arrancaram o PT do poder em nome da luta contra a corrupção para colocar corruptos em seu lugar. Massacraram a esquerda para elevar ao poder políticos que só de escutar causam vergonha alheia. A mídia celebra a vitória de seus apaniguados nas eleições municipais enquanto chora ter sido derrotada na segunda maior cidade do País por um bispo fundamentalista, mas apenas por ele ser ligado ao canal de televisão que ameaça sua hegemonia.
"O que será de nosso País com a direita no poder? Eu respondo que a luta continua. Que precisamos nos rediscutir, encontrar novos caminhos, novas soluções. Nos reaproximar da classe trabalhadora"
Cidadãos progressistas atônitos bombardeiam-me com perguntas nas redes sociais: qual a saída para a esquerda no Brasil? Voltaremos? O que será de nosso País com a direita no poder? Eu respondo que a luta continua. Que precisamos nos rediscutir, encontrar novos caminhos, novas soluções. Nos reaproximar da classe trabalhadora. Defendo que a esquerda se junte em uma frente para que consiga governar – ao mesmo tempo em que vejo os políticos de esquerda continuarem a se digladiar e atacar. Desânimo.
Não há como fugir, não há outra saída senão lutar. Pelos nossos filhos, pelo País que queremos para os jovens, por todos aqueles que necessitam do Estado mais do que nós, pelos que nem sabem que lutamos por eles e nem se importam. Esquerda é para isso, para lutar. Quem disse que ia ser fácil questionar o mundo do consumo desenfreado, da alienação, da exploração do homem pelo homem, das falácias de “prosperidade” do capitalismo?
Continuarei aqui, onde sempre estive, durante a tormenta que se avizinha. Não me esconderei sob o cobertor. Mas a vontade que tenho agora mesmo é de jogar tudo para o alto, ignorar o noticiário, a política, os políticos, a imbecilidade generalizada em que mergulhamos, esquecer que estamos com os dois pés em uma pedra, cambaleando em cima do abismo. E viver minha vidinha sossegada. Que pena que não consigo.

 Cynara Menezes é jornalista e editora do blog Socialismo Morena (socialistamorena.com.br)

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