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O ano de 2016 serviu definitivamente para escancarar crise institucional sem precedentes vivenciada no Brasil, pondo por terra análises que teorizavam sobre a “resiliência constitucional brasileira” ou mesmo expressavam a ideia eufemística de que as “instituições estão funcionando”. Prova disso fora a alucinante sequência de embates protagonizados pelos Três Poderes durante este período, expondo comportamento nocivo de auto deterioração das instituições brasileiras, em flagrante ofensa ao princípio da separação dos Poderes.
A partir desse cenário conflagrado, restou consenso entre a maioria dos especialistas de que apesar de algumas vitórias pontuais e da consecução de fugazes “aplausos das ruas” o STF se apequenou em meio a sua megalomania judicante. Certamente a maior “derrota simbólica” da Corte decorreu da recusa da Mesa do Senado Federal, de fazer cumprir decisão liminar, nos autos da ADPF 402, do ministro Marco Aurélio, que determinava o imediato afastamento do senador Renan Calheiros (PMDB-AL) das suas funções de presidente de um Poder da República, exigindo dos ministros a construção da esdrúxula “Solução Renan”.
Cabe ressaltar, entretanto, que todas essas investidas do STF na busca por maior protagonismo institucional – e por que não pessoal – se deram no pantanoso terreno político, na qual alguns reveses seriam esperados, visto que a própria Corte, apesar de sê-lo, não se considera “Poder Político” e deste não ser o seu “habitat” natural.
Coincidentemente ou não, a mais recente decisão ignorada do STF também foi de relatoria do ministro Marco Aurélio. Trata-se de decisão cautelar no julgamento da ADPF 347/DF-MC[2], de 09 de setembro de 2015, na qual se reconheceu a ilicitude e a indignidade estrutural do sistema penitenciário brasileiro e se declarou o “Estado de Coisas Inconstitucional” (ECI), em adoção do experimentalismo judicial promovido pela Corte Constitucional da Colômbia (CCC)[1].
Naquela oportunidade, segundo o ministro relator, diante da nítida e generalizada violação de direitos humanos, bem como da incapacidade, inércia e descaso do poder público representado pelas variadas instituições envolvidas “apenas o Supremo revela-se capaz, ante a situação descrita, de superar os bloqueios políticos e institucionais que vêm impedindo o avanço de soluções, o que significa cumprir ao Tribunal o papel de retirar os demais Poderes da inércia, catalisar os debates e novas políticas públicas, coordenar as ações e monitorar os resultados.” Isso é o que se aguarda deste Tribunal e não se pode exigir que se abstenha de intervir, em nome do princípio democrático, quando os canais políticos se apresentem obstruídos, sob pena de chegar-se a um somatório de inércias injustificadas. Bloqueios da espécie traduzem-se em barreiras à efetividade da própria Constituição e dos Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos.
Todavia, a despeito do ministro relator em seu voto reconhecer e reforçar a legitimidade da atuação judicial em face da situação de violação generalizada de direitos fundamentais vivenciada no sistema penitenciário brasileiro, dos oito pedidos cautelares pleiteados apenas dois foram deferidos liminarmente, dentre eles, a imposição do imediato descontingenciamento das verbas existentes no Fundo Penitenciário Nacional – FUNPEN[2] e a consequente vedação à União Federal de realizar novos contingenciamentos, até que se reconheça a superação do “Estado de Coisas Inconstitucional” do sistema prisional brasileiro.
Chama a atenção, entretanto, que a determinação do STF de imediata liberação de recursos do FUNPEN para investimentos em presídios restou sem qualquer efetividade. Passado mais de um ano a União para além de não cumprir a decisão[3] resolveu “driblá-la” ao publicar no dia 19 de dezembro de 2016, véspera do encerramento do Ano Judiciário – por sugestão do ministro da Justiça, Alexandre de Morais – a Medida Provisória MP n° 755, que promove uma série de alterações na política penitenciária nacional, incluindo o desvio da verba destinada ao setor para arcar com custos de segurança pública.
Causa espécie a tamanha discrepância nas respostas institucionais dos Poderes Executivos, em especial entre os Ministérios da Justiça do Brasil e da Colômbia, frente às decisões judiciais proferidas por suas respectivas Cortes Constitucionais que declararam o “Estado de Coisas Inconstitucional” nos seus sistemas prisionais.
Apesar de ambas compartilharem praticamente o mesmo timinginstitucional[4], enquanto a iniciativa legislativa brasileira, em flagrante descumprimento de decisão judicial, fragiliza o sistema prisional ao desviar recursos e descaracterizar quaisquer tentativas de implementação de “sentença estruturante” e dialógica por parte do STF, o projeto de lei colombiano apresenta tentativa de modernização do sistema prisional colombiano e fortalecimento da política criminal e penitenciária do país.
Ainda em relação à MP, especialistas apontam tratar-se do maior retrocesso na política penitenciária brasileira sob a vigência da Lei de Execuções Penais de 1984, especialmente em razão da obrigatoriedade prevista no texto da MP de que no mínimo 30% do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) seja utilizado para construção, ampliação e reforma de estabelecimentos prisionais, na contramão de programas penitenciários voltados a áreas como saúde, educação, trabalho e alternativas penais à prisão.
Com efeito, em meio à mais grave crise institucional do país desde a redemocratização, o STF tem sido cada vez mais alçado a superego da sociedade e ultima ratio da República, sendo chamado a deliberar recorrentemente acerca de inúmeras questões sócio-político-econômicas e institucionais relevantes.
Contudo, diante da respectiva avalanche judicializante vivenciada em 2016 e que o aguarda em 2017, emergem cada vez mais fortes as seguintes perguntas:
- O STF tem a capacidade institucional autoproclamada?;
- Nossa mais alta Corte tem garantido a propalada estabilidade das instituições republicanas?;
- O STF tem cumprido a contento a sua pretensa missão institucional de proteger e garantir a efetividade de direitos fundamentais?;
- Há mecanismos de accountability vertical ou horizontal a serviço da sociedade e das demais instituições perante o STF?;
- Qual(is) é (são) e quem concebeu o(s) parâmetro(s) e o(s) indicador(es) de desempenho institucional do Tribunal Constitucional brasileiro? e
- Se existe(m), qual(is) a(s) sua(s) funcionalidade(s)?
Entendemos que Cortes Constitucionais possuem uma dupla dimensão para o exercício do seu papel institucional: árbitro de conflitos políticos e defensor de direitos. Considerando o seu comportamento institucional ao longo do ano que se finda e projetando que estará sobrecarregado com inúmeras decisões hercúleas pendentes e novas demandas já pautadas quando do retorno do recesso, o STF corre sério risco de evidenciar a sua incapacidade de exercer ambos os papeis demandados pela sociedade, seja decidindo ou deixando de decidir.
Rafael Bezerra é Mestre em Teorias Jurídicas Contemporâneas – PPGD/UFRJ. Pesquisador do Observatório da Justiça Brasileira – OJB/UFRJ. Associado à Latin American Studies Association – LASA. É autor do livro recentemente publicado “Direitos para além da sala do tribunal: um estudo de caso comparado entre Brasil e Colômbia” (Ed. Lumen Juris, 2016).
José Ribas Vieira é Professor Titular de Direito Constitucional – UFRJ. Professor Titular aposentado de Direito – UFF. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGD/UFRJ. Professor Associado da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC Rio. Membro da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-americano – Brasil. Coordenador do Observatório da Justiça Brasileira – OJB/UFRJ.
[3] Apesar do instituto jurídico do “Estado de Coisas Inconstitucional” (ECI) haver sido tratado com uma inovação da jurisdição constitucional do STF a partir do ajuizamento da ADPF 347, o referido conceito já fora abordado incidentalmente pelo ministro Luís Roberto Barroso nas ADIs 4357 e 4425. Ver VIEIRA, José Ribas e BEZERRA, Rafael. Estado de Coisas fora do lugar: uma análise comparada entre a Sentencia T-025 e a ADPF 347/DF-MC. In: VIEIRA, José Ribas; LACOMBE, Margarida; LEGALE, Siddharta. (Org.). Jurisdição constitucional e o direito constitucional internacional. 1ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2016, v. 1, p. 203-223.
[2] Criado pela Lei Complementar n° 79/94 e regulamentado pelo Decreto 1.093/94, trata-se de fundo de natureza contábil que integra o orçamento fiscal da União, constituindo-se como principal fonte de recursos do sistema penitenciário brasileiro para as ações governamentais de grande parte dos entes federados, por meio de transferências voluntárias, via convênios e, no caso de obras públicas, por contratos de repasse. Ver CONTI, José Maurício. Solução para a crise carcerária tem significativo reflexo orçamentário.Via: Consultor Jurídico.
[3] Ressalte-se que em face do descumprimento desta decisão em relação ao segundo pedido cautelar deferido liminarmente, qual seja, o reconhecimento da aplicabilidade imediata dos arts. 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, determinando a todos os juízes e tribunais que passem a realizar audiências de custódia, no prazo máximo de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão, fora recentemente ajuizada Reclamação Constitucional (Rcl) nº 23.872[5] pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) perante o Supremo Tribunal Federal. Dentre outras alegações, os advogados públicos que assinam a petição – Isabela Marrafon, Ilton Norberto Robl Filho e Grandinetti Castanho de Carvalho – afirmam que: “ultrapassado o prazo de noventa dias fixado por este Supremo Tribunal, a realidade da grande maioria dos presos brasileiros pouco mudou, já que continuam a não ter acesso imediato ao Poder Judiciário e, por consequência, sofrem flagrante violação das normas advindas de tratados internacionais de direitos humanos, devidamente incorporadas ao ordenamento jurídico nacional e que densificam relevantes direitos fundamentais previstos na Constituição brasileira”. No entanto, a referida Reclamação, de relatoria do ministro Dias Toffoli, teve seu seguimento negado em 19 de maio de 2016, ficando, por consequência, prejudicado o pedido liminar, nos termos do art. 21, §1°, do RISTF, sob o argumento de que a reclamante não logrou êxito em comprovar nos autos o efetivo descumprimento da decisão da Corte por parte das autoridades reclamadas, uma vez que se limitou a alegar abstratamente a falta de adoção das medidas necessárias à implementação da audiência de custódia para a preservação da autoridade da decisão cautelar proferida pelo Pleno na ADPF nº 347/DF. A ausência de indicação de qualquer ato concreto passível de confronto com a decisão paradigma impossibilita a análise do caso por esta Suprema Corte em sede reclamatória (grifo nosso). Ver GLEZER, Rubens; MACHADO, Eloísa. Decide, mas não muda. STF e o Estado de Coisas Inconstitucional. Jota, Brasília, 09 de setembro de 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015.
[4] No caso brasileiro, a declaração do Estado de Coisas Inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro pelo STF ocorreu em 2015 – ADPF nº 347/DF – e resposta do Poder Executivo em 2016 – MP n° 755 enquanto que no caso colombiano a declaração da permanência do Estado de Coisas Inconstitucional “nas prisões e no sistema penitenciário e carcerário” ocorreu em 2015 (anteriormente a CCC já havia declarado o ECI através das Sentencias T-153/1998 e T-388/2013) – Sentencia T-782 – com a resposta do Poder Executivo em 2016. VerMás acceso a permisos y a prisión domiciliaria: propuesta de Minjusticia para crisis carcelaria. Disponível em: <http://www.elespectador.com/noticias/judicial/mas-acceso-permisos-y-prision-domiciliaria-propuesta-de-articulo-656323>. Acesso em: 12 nov. 2016 e Gobierno radicó proyecto de ley que moderniza el sistema carcelario en Colombia. Disponível em: <http://www.senado.gov.co/sala-de-prensa/noticias/item/25470-gobierno-radico-proyecto-de-ley-que-moderniza-el-sistema-carcelario-en-colombia?tmpl=component&print=1>. Acesso em: 22 dez. 2016.
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