Dona Marisa e morte como triunfo
por Aldo Fornazieri
Escrever ou não escrever acerca da morte de Dona Marisa tornou-se um dilema e um risco, seja qual for a opção. Escrever pode representar apenas o acréscimo de mais um texto dentre tantos textos que foram escritos. Não escrever pode parecer omissão, dada a gravidade das circunstâncias humanas e desumanas que sua morte suscitou e os aspectos políticos que ela assumiu. Neste caso, o mais recomendável é não pecar por omissão, mesmo correndo o risco da irrelevância.
Não conheci Dona Marisa. Apenas a vi em alguns encontros políticos quando se fazia presente. Assim, nada há que falar acerca do que os outros já contaram da sua luta, da sua perseverança ao lado de Lula, da sua coragem, etc. Há que se dizer apenas da impressão, e isto é subjetivo, que sua fisionomia suscitava. Lembrava sempre uma mãe, muitas mães, todas as mães. Ela parecia integrar aquele grupo de pessoas dotadas de espíritos que se identificam com a mansuetude dos cordeiros, com a inocência das pombas, com a leveza suave das rosas.
E se esta era a expressividade do seu semblante aqui já começa um enorme problema. O que fez Dona Marisa ou por que teve sua dignidade profanada no leito de morte, por médicos, por um procurador da República ou por violentadores que se esparramam pela internet e pelas ruas deste triste país? Nada! Dona Marisa não fez absolutamente nada para merecer este inominável sacrilégio de seres que não merecem ser qualificados nem de humanos e nem de animais, pois os animais ostentam mais dignidade do que eles.
Praticamente todas as religiões ensinam que é preciso se deter diante da morte. Até mesmo nas cruentas guerras existem estes códigos. As tragédias gregas antigas ensinavam a mesma coisa. Creonte, que não quis permitir que Polinices, filho do rei Édipo, fosse enterrado dignamente foi severamente punido pela tragédia por não se conter diante da morte. Quis que o corpo Polinices fosse jogado a esmo para ser devorado pelas aves de rapina e pelos cães. Ninguém merece isto e Antígona, irmã do morto, deixou claro que lutaria para dar um destino digno ao corpo do irmão, mesmo que fosse necessário violar as leis humanas, pois as leis divinas são superiores à aquelas. Estava disposta a pagar com a própria vida por esta última demanda de dignidade humana.
Ter dignidade na morte faz parte das leis divinas e este é um limite que todo ser humano precisa respeitar. Não foi o que se viu no caso de Dona Marisa. A punição dos profanadores da sua dignidade precisa ser severa. Os médicos precisam ter seu registro caçado pelo Conselho de Medicina, caso contrário, o Código de Ética Médica não vale nada. O procurador da República deve ser destituído do cargo, caso contrário também não haverá ética e nem República. Esses violadores da dignidade humana merecem viver pelo resto da vida com o castigo, assim como Creonte teve que conviver com o suicídio do filho e da esposa por conta da sua tirania e pelo sacrilégio cometido contra um morto.
Lula afirmou que Dona Marisa se foi triste. Foi como se ela tivesse requisitado a morte em face do seu sofrimento. Sofrimento por Lula, pelos seus filhos e por ela. Existem duas atitudes em face das falsas acusações: os belicosos, como Lula, lutam até o fim para provar a sua inocência e combater seus acusadores. Os mansos, como era o caso de Dona Marisa, sofrem em silêncio e muitos definham até a morte. Vejam as crianças e mulheres, vítimas de violências inauditas, o quanto sofrem caladas.
Dona Marisa foi vítima de uma violência moral e psicológica indizível por parte de procuradores, do juiz Moro, da mídia e das hordas fascistas que pululam em vários ambientes. Conferiram uma escandalização de grandes proporções aos pedalinhos dos seus netos, que custavam dois mil reais, e do barquinho de latão que comprou a custo de quatro mil e quinhentos reais. Foi como se Dona Marisa tivesse assaltado os cofres do Banco Central.
Empalaram Dona Marisa publicamente porque ela foi ver um triplex de uma cooperativa habitacional que, no final das contas, terminou nem comprando, ou por ter frequentado um sítio dos amigos da família. Esses mesmos empaladores da dignidade e da moral alheias calam-se covardemente em face dos maiores corruptos da República, que hoje estão no governo. Os inocentes que carregam a mansuetude na alma preferem morrer a viver com as canalhices humanas, principalmente quando são vítimas dessas canalhices.
Nestes casos, a morte não é uma perda, uma derrota, mas um triunfo. Em sua morte Dona Marisa triunfou sobre o juiz Moro e seus procuradores que deveriam sentir o gosto dos cadáveres morais em suas bocas como castigo por sua arrogância, pela sua vaidade e pelo seu narcisismo que não se detém na destruição de reputações, não porque há convicções morais mesmo que sem provas, mas porque há a ambição da fama e dos benefícios materiais que ela pode proporcionar. Em sua morte, Dona Marisa triunfou sobre boa parte da mídia que a vilipendiou num massacre inescrupuloso para atingir objetivos políticos e econômicos. Em sua morte Dona Marisa triunfou sobre os médicos e carniceiros em geral que profanaram a sua dignidade quando ela estava no leito da morte.
A politização da morte
Tanto políticos ligados ao governo, quanto políticos ligados ao PT e ao PC do B viram nos encontros, nas solidariedades, nas condolências e nos abraços suscitados pelo desenlace como que um sinal dos céus para que se restabeleça o diálogo no Brasil entre as forças que alimentaram contendas em torno do golpe para uns e do impeachment para outros. "Mais do que nunca o Brasil precisa de diálogo", proclamaram alguns.
Se este governo é fruto de um golpe não pode haver um diálogo pelo diálogo em nome de uma tese abstrata dos chamados "interesses do Brasil" que ninguém sabe quais são. Quando se conversa com um inimigo é preciso estabelecer pré-condições. As pré-condições de conversas com esse governo devem exigir: a) a suspensão da tramitação da reforma da Previdência; b) a suspensão da reforma trabalhista que revoga direitos dos trabalhadores; c) a busca de mecanismos para anular a PEC do teto; d) a garantia de que esse governo, por ilegítimo, não encaminhará nenhuma proposta que represente a supressão de direitos. Estes são os verdadeiros interesses do Brasil porque são os interesses do povo.
Qualquer "diálogo" com esse governo que não tenha os pré-requisitos, não é diálogo, mas capitulação. É uma aceitação tácita de que esse governo é legítimo, o que é inaceitável. Qualquer aceitação de conversas sem pré-requisitos consiste em promover o velho conciliábulo das elites para enganar o povo e fazer com que ele pague o custo da crise, como já está pagando com mais de 12 milhões de desempregados. Qualquer diálogo sem pré-requisitos, o abraço entre Lula e Fernando Henrique foi apenas um abraço pessoal, solidário, necessário, nesses momentos tristes. Ademais, os calços que estes pré-requisitos devem ter não estão nos gabinetes, nas mesas dos palácios, mas nas lutas das ruas.
Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política.
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